O DESACATO DE CIVIL A MILITAR NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO

14/03/2018 às 13:01
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O ARTIGO DISCUTE A PRÁTICA DE DESACATO COMETIDA POR CIVIL CONTRA MILITAR.

O DESACATO DE CIVIL A MILITAR NO EXERCICIO DA FUNÇÃO

Rogério Tadeu Romano

Consoante o site do STF, em 14 de março de 2018,  a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus (HC 141949) a um civil condenado pelo crime de desacato a militar que se encontrava no exercício de suas funções. Segundo entendimento da maioria do colegiado, a tipificação do delito (artigo 299 do Código Penal Militar) não é incompatível com a Constituição Federal e com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

O civil foi condenado à pena de seis meses de detenção, em regime aberto, e obteve o benefício do sursis (suspensão condicional da pena) pelo prazo de dois anos e o direito de apelar em liberdade. Conforme a denúncia, ele desacatou um 2º sargento que se encontrava no exercício de sua função na 4ª Seção do Batalhão da Guarda Presidencial, em Brasília, ao chamá-lo de “palhaço” na presença de outros militares. A condenação foi mantida pelo Superior Tribunal Militar (STM) ao julgar apelação.

O relator do HC, ministro Gilmar Mendes, explicou que o sujeito passivo do crime de desacato é o Estado, sendo o funcionário público vítima secundária da infração. Segundo o ministro, a tutela penal no caso visa assegurar o normal funcionamento do Estado, protegendo-se o prestígio do exercício da função pública. Mendes destacou ainda que é essencial para a configuração do delito que o funcionário esteja no exercício da função ou, estando fora, que a ofensa seja empregada em razão dela.

Para o ministro, da leitura do dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos não se infere qualquer afronta na tipificação do crime de desacato. Ele observou que o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica dispõe claramente que o exercício do direto à liberdade de pensamento e de expressão, embora não sujeito a censura prévia, deve assumir responsabilidades ulteriores expressamente fixadas em lei para se assegurar o respeito aos direitos ou a reputação das demais pessoas. “A liberdade de expressão prevista na Convenção não difere do tratamento conferido pela Constituição ao mesmo tema, não possuindo esse específico direito, como todos os demais direitos fundamentais, caráter absoluto”, ressaltou. Para o relator, o direito à liberdade de expressão deve se harmonizar com os demais direitos envolvidos – honra, dignidade, intimidade –, e não eliminá-los.

O ministro destacou ainda que o desacato constitui importante instrumento de preservação da lisura da função pública e, indiretamente, da própria dignidade de quem a exerce. “A figura penal do desacato não tolhe o direito à liberdade de expressão, não retirando da cidadania o direito à livre manifestação, desde que exercida nos limites de marcos civilizatórios bem definidos, punindo-se os excessos”, afirmou. Ao contrário do que alegado pela defesa, o relator concluiu que não há constrangimento ilegal e, por isso, votou pela denegação do habeas corpus.

Os ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator.

Ao divergir do relator, o ministro Edson Fachin defendeu que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos é incompatível com as leis que criminalizam o desacato. “Os órgãos do sistema interamericano registraram, em diversas oportunidades, que os chamados delitos de desacato são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão e pensamento, tal como expresso no Artigo 13 do Pacto de São José”, afirmou. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos assentou ainda, segundo o ministro Fachin, que a penalização de qualquer tipo de expressão só pode ser aplicada em circunstâncias excepcionais, nas quais exista uma ameaça evidente e direta de violência anárquica.

A decisão historiada acima diverge de outra emanada do Superior Tribunal de Justiça.

Por unanimidade, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, na noite do dia 15 de dezembro de 2016, que não é crime o ato de desacato, por considerar que a legislação sobre o tema tem como objetivo silenciar ideias e opiniões. Além disso, os ministros entenderam que a tipificação do crime de desacato é incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
“A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário”, defendeu o ministro Ribeiro Dantas.

Prevê o artigo 331 do Código Penal o crime de desacato com a seguinte redação: ¨Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela¨. A pena é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo.

  O Código Penal do Império considerava agravada a calúnia(artigo 231)  e a injúria(artigo 237, parágrafo segundo) se fossem praticadas contra qualquer depositário ou agente da autoridade pública, em razão de seu oficio, seguindo a linha das Ordenações Filipinas(Livro V, título 50).

  Com o Código francês de 1810(artigo 222) a ofensa e o desrespeito a certos funcionários, no exercício de suas funções, passaram a constituir o crime autônomo, com o nome de outrage. No direito italiano, o crime tomou no nome de oltraggio. No entanto, para doutrinadores como Carrara(§ 1.792), haveria um crime contra a honra agravado.

  O Código Penal de 1890, com o nome de desacato (classificado entre os crimes contra a segurança interna da República) punia o fato de desacatar qualquer autoridade ou funcionário público, em exercício de suas funções, ofendendo-o, diretamente, por palavras ou atos, ou faltando à consideração devida e à obediência hierárquica (artigo 134). Por sua vez, o crime seria qualificado se fosse praticado em sessão pública ou dentro de repartição pública.

  A lição de Manzini, trazida por Paulo José da Costa Jr. (obra citada, pág. 511), é de que ¨os funcionários públicos e os empregados do serviço público devem ser respeitados, mas a lei não exige que sejam também venerados como pessoas sagradas e intocáveis, não se podendo interpretar como delitiva a mera reprovação, expressa de modo não injurioso, de seus atos.¨
  Assim a objetividade jurídica é o interesse em garantir o prestígio dos agentes do Poder Público e o respeito devido à dignidade de sua função, tendo-se em vista que a ofensa que lhes é irrogada, em sua presença, no exercício de sua atividade funcional ou em razão dela, atinge, em verdade, a própria Administração Pública. A lição de Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 461) é aqui repetida, no sentido de que não ha injúria, difamação ou desrespeito ao funcionário(que seria, eventualmente, crime contra a pessoa), mas atentado a um interesse geral, relativo à normalidade do funcionamento da administração pública. Mas, para que se possa afirmar a presença do funcionário, deve ele encontrar-se no local onde a ofensa é praticada. Não se exige que o ofendido veja o ofensor, nem que perceba o ato ofensivo, bastando que lhe fosse possível conhecimento diretamente do fato.

  Assim a censura justa mesmo que áspera não tipifica o crime. Portanto, não constitui desacato a critica e mesmo a censura que sejam veementes, desde que não se apresentem de forma injuriosa. Assim já se entendeu que não constitui desacato, a mera censura ou crítica, ainda que veementes e exaltadas, sobre a atuação de servidor público, quando não há adjetivação ofensiva (RT 695/334).

  Não há no crime de desacato apenas injúria, difamação ou desrespeito ao  funcionário, mas atentado a um interesse geral que diz respeito à normalidade do funcionamento da administração pública.

  Trata-se de um crime de expressão que representa a manifestação do pensamento por palavras ou gestos.

  O núcleo verbal do  tipo penal é desacatar, ofender, vexar, humilhar, espezinhar, menosprezar, agredir o funcionário, ofendendo a sua dignidade ou o decoro da função. É a ofensa direta e voluntária à honra, ao prestígio do funcionário público com a consciência de atingi-lo no exercício ou por causa de suas funções, tutelando-se a dignidade da Administração Pública.
  É crime formal de forma que o delito está consumado com a prática da ofensa, tal como ocorre nos crimes contra a honra. É irrelevante para a sua consumação o pedido de desculpas por parte do agente. O crime consuma-se no momento e no lugar em que o agente pratica o ato ofensivo ou profere as palavras injuriosas, desde que a ação se realize em presença do ofendido. Bem exposto por Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 464) que as consequências da conduta delituosa são irrelevantes, no  que concerne ao momento consumativo(crime formal), não cumprindo indagar se o funcionário se sentiu ofendido ou se foi abalado o prestígio da função que exerce, não se exigindo a publicidade da ação nem a presença de outras pessoas. Mas se exige que a qualidade de funcionário público seja atual. Aliás, a publicidade da ação será levada em conta na dosimetria da pena. Entende-se, por outro lado, possível a tentativa, salvo nos casos de ofensa oral, como aduziu Magalhães Noronha(Direito Penal, volume IV, pág. 423).

  Pode o desacato constituir-se em palavras ou atos. Assim é desacato: não tomar conhecimento da presença do agente público, do uso de sarcasmo, da injuria, do achincalhe brutal, nas ofensas morais seguidas de agressão física(RT 565/343), no insulto seguido de um tapa, na tentativa de agressão, no uso de palavras de baixo calão(RT 524/363), na gesticulação desrespeitosa, nas palavras ou atos que espezinhem o funcionário público, na forma grosseira, arrogante, de se dirigir ao funcionário público, na tapa no rosto ainda que não deixe vestígios, na afronta ao magistrado com irreverência ao mesmo, no amassar, atirar sobre balcão do cartório contrafé recebida e proferir expressões inamistosas contra o funcionário.

 Para tanto são necessários: o nexo funcional, que a ação ocorra quando o funcionário esteja no exercício da  função ou não estando, que a ação se verifique em função dela(que diga respeito a sua função);  a presença do funcionário por ocasião da ofensa(RT 602/405). Mas Nelson Hungria(obra citada, v. IX, pág. 421) ensina que não é necessário que a ofensa seja irrogada facie ad faciem, bastando que próximo o ofendido, seja por ele percebida. Mas é indispensável que o funcionário público veja ou ouça a injúria que lhe é assacada, estando no local(RT 491/323, dentre outros). Tal presença é um pressuposto do fato, uma condição indispensável do delito. Assim não se admite que o delito seja praticado por escrito, por telefone(RT 429/352), por e-mail, pelo twitter, por fax, por escrito, através de recurso ou petição.

  Pode o desacato constituir-se em omissão quando alguém não responder ao cumprimento do funcionário público.

  Quando o desacato se traduz em agressão física, subsiste apenas esse delito pela regra da consunção, absorvido o crime de lesões corporais(RT 440/463), 573/399). No mesmo se dá com relação a tentativa de agressão ou ameaça(RT 461/436). No entanto, há concurso formal se se tratar de lesões corporais graves e de calunia(RT 530/414), como ensinam Nelson Hungria(obra citada, v.IX, pág. 421 e 412) e ainda Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, volume III, pág. 472).

  Se o desacato atingir vários funcionários o crime é um só, uma vez que se trata de  uma conduta contra a Administração Pública. Mas poderá acontecer crime continuado, se a agressão se dá em atitudes sucessivas, podendo haver concurso material se ocorre o desacato, a resistência e a  desobediência.

  Sujeito ativo do crime é qualquer pessoa que desacata o funcionário publico. Pode ser qualquer pessoa, inclusive funcionário público, que exerça ou não a mesma função do ofendido.
  Mas, ainda pode ser autor do crime o funcionário público desde que despido dessa  qualidade ou fora de sua própria  função(RT 561/354, dentre outros).

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Mas, discute- se se é possível quando o agente é funcionário público e a ofensa se refere às funções públicas. Volta-se a lição de Nelson Hungria(obra citada, pág. 422), que é baseada em Vincenzo Manzini(Trattado di diritto penale italiano, Turim, 1950, v. V, pág. 422 a 425), e acompanhada por Antolisei, em seu Manuale, 648, para quem não há desacato na ofensa praticada por funcionário público contra outro funcionário público, já que o delito somente poderia ser cometido por extraneus em se tratando de crime cometido por particular contra a Administração Pública(RT 397/286, 452/384, dentre outros). Para outra corrente de pensamento haveria o crime de desacato quando a ofensa é praticada por servidor contra o seu superior hierárquico, não ocorrendo delito quando os sujeitos ativo e passivo são funcionários públicos em iguais funções e categorias(RT 241/413; 409/297). Mas há os que, com razão, entendem que não se pode fazer distinção ocorrendo o crime independente da função que exerçam o sujeito ativo e passivo ou da subordinação hierárquica(RT 656/334). Tem-se aqui a posição de Magalhães Noronha(Direito Penal, v. IV, pág. 417 a 418, na linha de Otorrino Vanini(Problemi relativi al delito de oltraggio, Milão, 1935, pág. 9). Em verdade, argumentação diversa seria pautada em sofisma, pois o desacato consiste numa ofensa à dignidade e ao prestígio da função, sendo totalmente irrelevantes as relações entre o agente e o ofendido. Assim não se cogita no crime de autoridade, mas em decoro da função diante do público.

  Nos delitos de desacato, o sujeito passivo é o Estado. Há, pois, crime de desacato se o agente destrata funcionário, no exercício do cargo, ou fora da função, mas em razão dela e na prática do ato que diz respeito ao interesse público(RT 510/336).

  O tipo exige como elemento subjetivo o dolo na vontade consciente de praticar a ação ou a proferir a palavra injuriosa com o objetivo de ofender ou desrespeitar o funcionário a quem se dirige. Há o chamado dolo especifico(RT 196/265).

Fala-se que o dolo no desacato exige um especial fim de agir(dolo específico), que consiste na vontade consciente de praticar a ação ou proferir a palavra injuriosa, com o propósito de ofender ou desrespeitar o funcionário a quem se dirige. Mas não se admite no desacato a exceção da verdade. Por sua vez,  não há crime se a ofensa constitui apenas repulsa a ato injusto e ilegal da vítima(RT 483/345; 495/352; 502/336). Assim não se pode dizer desacatado o funcionário que prova a repulsa ultrajante, como no caso em que o diretor da repartição chama alguém de imbecil, mas não se pode dizer desacatado, por haver este retrucado ao dizer: ele é um idiota. Se o funcionário público primeiro ofende a dignidade da função, não pode exigir seja ela respeitada. Assim já se entendeu que não constitui desacato se a ofensa constitui apenas repulsa a ato injusto e ilegal da vítima, que deu causa, assim, ao ultraje(RT336/277, 461/378, 483/345).

                         Discute-se o dolo nos casos de exaltação ou nervosismo do agente. Há, no que se entende por posição minoritária, afirmando-se que constituiria arrepio a qualquer lei psicológica que um indivíduo desacatasse outro a sangue frio, sem qualquer motivo antecedente, pelo simples prazer de desabafar, sendo irrelevante para configurar o delito o estado emotivo ou colérico do agente(RT 304/478, 327/397, 401/289, 417/285, 505/316, dentre outros). Por sua vez, há corrente, que se fundamenta no fato de que se exige o chamado dolo específico, afirmando estar excluído o dolo nos casos em que o agente está sob o efeito de cólera(RF224/289),ou ainda irritação(RT557/349, 706/357), ou ainda a conduta se deve a exaltação momentânea(RT 668/361, 683/326, 697/372; RSTJ 40/442; JSTJ 42/345), desabafo(RF238/298), incontinência de linguagem ou ainda falta de controle emocional(RT 526/356, 542/338).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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