I - Introdução
A questão do reconhecimento legislativo do direito à legítima defesa, materializado na possibilidade de acesso legal a armas de fogo, vem sendo uma das pautas que permeiam os diversos debates no cenário político nacional.
Com efeito, o direito à vida, à dignidade, ao patrimônio e demais inerências da dignidade humana são garantias constitucionais cuja manutenção pode eventualmente depender, em última instância, da autodefesa que é materializada pelas armas de fogo. Essa razão já seria suficiente, por si só, para que não houvesse óbices legais e administrativos ao acesso às armas, cumpridos requisitos razoáveis.
Ademais, é estatisticamente comprovado que não há relação entre a posse legal de armas por civis e o aumento da criminalidade social e, na maioria dos casos, ocorre o contrário: quanto mais armas legais, menos criminalidade. Isso porque não são os cidadãos de bem proprietários de armas legalmente registradas que praticam crimes.
Há ainda divulgações infundadas sobre supostos número de mortes que a maior restrição às armas, cujo nexo de causalidade não se verifica. É impossível contabilizar mortes evitadas e quanto às que ocorreram sempre há um agente causador. Armas não atiram sozinhas. Desde a entrada em vigor do Estatuto, em 2003, o Brasil tem presenciado constante aumento de vítimas da violência.
O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) traz diversas aberrações jurídicas e não atende aos anseios sociais. Porém, devido à opção da população pela não proibição do comércio de armas e munições no referendo de 2005, há a possibilidade legal de posse de armas, ainda que extremamente burocrática.
Todavia, a Administração Pública tem indeferido muitos pedidos de registros com base na análise da declaração de efetiva necessidade, que é um dos requisitos para a obtenção do registro da arma. A ilegalidade está no fato de que o legislador não atribuiu a isso caráter discricionário: a lei tão somente exige que o interessado declare. Para a concessão do porte da arma, que tem natureza jurídica de autorização, aí sim é exigida a demonstração de efetiva necessidade.
Declaração e demonstração são duas categorias que não se confundem, porquanto a demonstração está sujeita à análise discricionária pela autoridade pública, a quem compete, nesse caso sim, avaliar o mérito das alegações prestadas pelo requerente.
Se obtida a autorização para aquisição de arma de fogo o proprietário obterá o registro e, a cada cinco anos, por força do art. 16, § 2º, do Decreto 5.123/04 (Regulamento do Estatuto do Desarmamento), deverá comprovar novamente as condições pessoais necessárias para sua obtenção a fim de renová-lo. Se indeferido irrecorrivelmente, deverá entregar sua arma.
Daí surge a seguinte reflexão: é coerente qualquer exigência legal de que esses registros sejam periodicamente sujeitos à renovação?
Ainda que a imensa maioria da população seja contra o desarmamento civil por entender que o ser humano tem direito à autodefesa, poucos discordam que é prudente que o interessado em adquirir uma arma de fogo tenha o mínimo de instrução técnica e aptidão psicológica (e a comprovação desses requisitos é uma exigência tanto no atual Estatuto quanto no Projeto de Lei 3.722, diploma legal substituto, que está em tramitação no Congresso Nacional).
Logo, pode-se pensar que a partir do momento em que a pessoa não tiver mais condições de manter a arma (porque deixou de reunir condições técnicas e psicológicas mínimas para tal) seria razoável a lei exigir a devolução da arma. Sem entrar no mérito dessa questão, há outro fator a ser levado em consideração: seria o registro da arma um título de propriedade?
II – Considerações quanto à natureza do registro
Se o registro for um título de propriedade, não pode estar sujeito à limitação temporal de sua validade, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do direito à propriedade privada, o qual só encontra mitigação em situações muito específicas como, por exemplo, as desapropriações de terreno por interesse público, no âmbito dos atos de império da administração pública.
Nesses casos, existe uma indenização definida por lei, com base no valor do patrimônio expropriado. Em regra, o direito à propriedade é pleno e por essa razão não há limitação temporal. Se o sujeito é dono de algo, o é indeterminadamente até que transmita por ato inter vivos ou causa mortis o direito de propriedade.
Se, todavia, o registro da arma não for um título de propriedade, caberia aí discutir se a validade temporal é cabível. Isso porque nem todos os bens são passíveis de título de propriedade formalmente registrável, embora possam ser objeto de contrato. Um sujeito que adquire uma televisão, por exemplo, é proprietário mas não existe um papel conferindo a ele esse título.
E a pergunta que poderia surgir é: e a nota fiscal? A nota fiscal não é título de propriedade mas sim uma obrigação tributária acessória que, por via reflexa, pode demonstrar a propriedade. Mas sua emissão, por si só, não transfere o bem – apenas ampara uma transferência de propriedade que já aconteceu.
Automóveis e imóveis, por exemplo, são bens suscetíveis a registro formal. O sujeito efetua a compra e, ato contínuo, deve efetuar o registro no Detran e no Cartório de Imóveis, respectivamente, para formalizar sua propriedade, a qual foi adquirida no ato da compra e é oponível erga omnes pelo registro, tendo assim validade jurídica.
Em ambos os casos, sucede ao registro o instrumento notarial. Aquisições sem o competente registro nos termos da lei, quando tal formalidade é exigida, não têm validade jurídica e, em alguns casos, podem sequer reunir indícios que possam levar à declaração de sua existência.
Se um indivíduo alega, por exemplo, que existe um contrato meramente verbal com alguém do qual é credor e não se tem nada escrito nem indício nenhum nem qualquer testemunha, não há como trazer isto ao universo jurídico para ter êxito ao pleitear qualquer direito decorrente desse contrato.
O mesmo ocorre, na seara do direito público, com atos praticados e não formalizados. Veja-se como exemplo um crime do qual ninguém tomou conhecimento: não será objeto de boletim de ocorrência nem de inquérito e muito menos de denúncia. Inexiste no universo do direito.
Da mesma forma, sempre que o contribuinte pratica um fato gerador de tributo nasce no mesmo instante, ex vi legis, o direito do ente público ao crédito tributário. Porém, se ninguém efetuar o lançamento esse crédito não será constituído e com o tempo decairá.
Para bens insuscetíveis de registro formal, a nota fiscal é um forte indício de propriedade. Porém, nada impede que tais bens sejam vendidos posteriormente, em segunda mão e de modo não habitual, sem nota fiscal (até porque pessoa física não emite nota fiscal). E nem por isso a venda é inválida.
Seria a arma de fogo um bem suscetível ou insuscetível a registro formal? Se for suscetível, o CRAF – Certificado de Registro de Arma de Fogo, documento padrão emitido pelo Sinarm para armas de uso permitido, tem natureza de título de propriedade. Se for insuscetível, o CRAF não é um título de propriedade mas sim uma autorização para que o proprietário (que o é independente de haver ou não título em sentido estrito) possa manter a posse da arma em seu domicílio.
A lei também permite que a arma fique no local de trabalho, nesse caso (mas desautoriza o trânsito da mesma arma entre esses dois locais sem prévia autorização para cada deslocamento por meio de guia de tráfego emitida pela Polícia Federal, ou seja: na prática é inviável esse transporte).
Tratando-se de um bem sujeito a registro que valha como título de propriedade, a lei permitiria sua posse ainda que o titular deixasse de reunir as condições para exercer o direito de usá-lo? É essa uma polêmica reflexão.
Arma mantida em condição irregular, com registro vencido, por exemplo, é ilegal e configura crime de posse ilegal de arma de fogo. Embora o STJ tenha entendido que se trata de mera infração administrativa (sendo crime apenas se a arma nunca esteve legalmente sob propriedade do agente), a não renovação do registro relega à ilegalidade o proprietário da arma e não há solução jurídica diferente da devolução da arma. Ou seja: se indivíduo requer renovação do registro mas deixou de satisfazer as condições técnicas e psicológicas, o registro será indeferido e ele terá de devolver a arma, deixando de ser o proprietário e recebendo uma módica indenização.
Veja-se que a reflexão gira em torno da perda de condições físicas e/ou psicológicas, pois há outras circunstâncias que impedem o deferimento do registro e a existência de maus antecedentes criminais é uma delas, e nessa situação a reflexão entra na seara das penalidades pois o indeferimento seria motivado por razão que o próprio requerente deu causa.
De outra feita, se o indivíduo adquire um automóvel, por exemplo, e tem habilitação cassada, não perde a propriedade do automóvel mas apenas perde o direito de dirigir qualquer automóvel. Se for um problema propter rem, por exemplo a falta de licenciamento, ainda assim ele não perde a propriedade. O máximo que acontece é o carro ficar sob proibição de trafegar em vias públicas até que seja regularizada a situação.
Se ele não pagar o IPVA durante anos e o Estado inscrever o débito em dívida ativa e posteriormente ajuizar execução fiscal, aí sim ele pode perder o patrimônio. Mas o Estado, nesse caso, penhora o automóvel justamente porque tal bem é de propriedade do devedor. Se ele não tivesse a propriedade, não haveria bem a ser penhorado na execução fiscal. Logo, irregularidade administrativa e perda da propriedade não se confundem.
Arma irregular implica perda de propriedade e carro irregular não. A sanção para o primeiro caso é a obrigatoriedade de o proprietário se desfazer do bem e no segundo caso é a proibição de o proprietário usufruir da finalidade para a qual o bem existe, ou seja: o carro, que serve para transporte, não poderá circular.
Por outro lado, seria incongruente uma sanção que proibisse o proprietário de arma eivada de irregularidade superveniente pelo indeferimento do registro de usufruir da finalidade para qual a arma foi adquirida pois, ao contrário do carro, que existe para rodar e deve ficar guardado se estiver irregular, a única razão de ser da arma é justamente ficar guardada em casa ou no local de trabalho. Se o porte de arma fosse uma regra, alguém poderia sugerir que armas irregulares não pudessem ser portadas na rua, mas o porte é extremamente excepcional para civis no direito brasileiro.
Da mesma forma, também não há como, mantendo-se a posse, proibir o proprietário apenas de usar a arma irregular, pois ela só será usada em estado de necessidade – o que excluiria a antijuridicidade de qualquer conduta criminosa ainda que administrativamente ele possa vir a perder a arma ou mesmo responder por posse ilegal de arma de fogo em outro feito na esfera criminal. Não há como proibir qualquer pessoa de fazer qualquer coisa quando se está diante de situações amparadas por inexigibilidade de conduta diversa.
Há então um dilema: ao mesmo tempo que instituir limitação temporal ao registro pode ferir o direito constitucional à propriedade, retirar essa limitação demandaria outras medidas para que se comprove periodicamente que o proprietário mantém a aptidão técnica e psicológica.
E, se eventualmente ele se tornou um transtornado mental que causa riscos a si mesmo e a outrem com a arma, isso implicaria na necessidade de recolhimento da arma ainda que de forma indenizada, ou seja: haveria um conflito em relação aos direitos plenos de propriedade, que é usar, gozar, fruir, dispor e reaver já que a expropriação seria compulsória.
III – Momento da aquisição da propriedade da arma de fogo
Devido ao fato de armas de fogo serem produtos controlados e os registros em si conterem todas as características pormenorizadas da arma e a qualificação do proprietário, bem como serem condição sine qua nom para que ocorra a tradição, é razoável entender que o registro tem natureza jurídica de título de propriedade.
Quando o cidadão opta por adquirir uma arma nova para defesa, deve formalizar um pedido de autorização de compra junto à Polícia Federal. Se deferido, deve dirigir-se à loja e comprar a arma. Porém, ela não será entregue nesse momento. Ele irá celebrar contrato de compra e venda, receber a nota fiscal (que é posterior ao negócio jurídico que transfere a titularidade do bem), dirigir-se à repartição e solicitar a emissão do registro, pagando a taxa.
Quando a repartição emite a autorização, a expedição do CRAF (registro) é ato administrativo vinculado desde que o requerente compre a arma e pague a taxa. Aí sim essa propriedade, que foi adquirida desde a compra, adquire eficácia erga omnes e torna-se eficaz no mundo jurídico.
Se a loja entregasse a arma ao requerente sem a apresentação do registro, o que é vedado, ele se tornaria possuidor de um bem irregularmente, pois não haveria registro. Nesse caso – ausência de registro – sequer proprietário ele seria, posto que o contrato de compra e venda é negócio jurídico e como tal está sujeito às regras do art. 104 do Código Civil, que condiciona a validade dos negócios jurídicos à observância da licitude do objeto além da forma prescrita ou não vedada em lei.
Os contratos, exceção feita aos contratos reais, são acordos de vontade sujeitos ao consensualismo, ou seja: a partir do entendimento entre as partes, opera-se a transferência da propriedade. Como efeito, uma se torna devedora da entrega da coisa (tradição) à outra, que por sua vez se torna devedora do pagamento.
Após obter a autorização, quando o indivíduo vai à loja e fecha negócio na arma, adquire a propriedade, a qual, em se tratando de arma, é formalizada apenas depois do registro. Porém, a nota fiscal já é emitida porque já houve transferência da propriedade, sendo o registro um ato que não só formaliza isso como permite a tradição do bem.
Se a loja e o comprador fecharem negócio mas este não efetuar o registro e ainda assim receber a tradição arma, o que é proibido, sua propriedade, que no mundo fático existe, torna-se inválida no plano jurídico, dada a ilegalidade do objeto e a inobservância da forma exigida.
O mesmo não acontece com registro vencido: não se pode dizer que o direito de propriedade ficou eivado de ilegalidade do objeto, muito menos de forma, pois nesse caso não se trata de uma disposição contratual e sim de uma superveniência ocorrida por força de lei. Não há que se falar em negócio jurídico aí.
Igualmente não se pode dizer que a compra da arma na loja com a consequente emissão de nota fiscal é uma transferência de propriedade sob condição resolutória, qual seja o registro no Sinarm, que deve preceder a entrega do objeto, pois essas condições são derivadas exclusivamente da vontade das partes, nos termos do Código Civil. E a não entrega da arma no momento da compra, mas sim da apresentação do registro ao vendedor, é uma imposição legal.
IV - Conclusão
O registro, pelo exposto, é o título de propriedade que se constitui após a transferência do bem da loja para o cliente, operação essa amparada por nota fiscal. Feito o registro, pode-se tomar posse do bem. Sendo o registro um título de propriedade, não deve estar subordinado a qualquer renovação periódica.
Em não estando, seria razoável fundamentar no interesse público a possibilidade de eventual expropriação decorrente de inaptidão superveniente? Se assim o fizermos, estaríamos invocando o poder de império do Estado, que só existe quando o próprio Estado tem interesse no objeto (um lote através do qual pretende construir um trecho de rodovia, por exemplo).
Qual interesse o Estado teria em tomar para si uma arma de calibre permitido que muito provavelmente é diferente do padrão que as forças de segurança usam? É uma questão que deve ser considerada.
De qualquer forma, registro de arma de fogo tem natureza jurídica de propriedade, e como tal, não deve se condicionar a nenhum tipo de renovação temporal, sendo permamente. A legislação em vigor apresenta uma incongruência ao ignorar esse fato.
Se, porventura, o titular passar a não mais reunir condições para manter a posse, em situações excepcionais, e for razoável alijá-lo da arma de fogo por expediente de cautela, isso deveria ser feito apenas mediante contraditório e ampla defesa e sob eventuais indenizações compatíveis com o valor de mercado da arma.
Eis uma das poucas conclusões a que se pode chegar diante desta questão juridicamente complexa ,cuja solução invariavelmente envolverá o sopesamento de princípios.