CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A PRETEXTO DA TEMÁTICA ESCOLHIDA
Ao iniciarmos o tema acima proposto, a pretexto de compreensão da opção pela verticalização do tema, temos como pretensão, sob a ótica do ICMS de maneira exclusiva, demonstrarmos o quão rico o mesmo se apresenta para o estudioso do direito tributário pátrio, notadamente porque embora nos proponhamos a tecer considerações sob a ótica da legalidade e da moralidade tributárias, o mesmo permitiria inúmeras possibilidades, que se fossem trazidas nesse contexto proposto, não nos permitiria chegarmos a bom termo dada a infinidade de considerações possíveis, inclusive de natureza contrárias ao nosso entendimento.
Bastaria que optássemos também pela abordagem do chamado pacto federativo, que de certa forma, é o que justifica a existência desse Conselho, onde são produzidos os Convênios e Protocolos, bem como Ajustes SINIEF e outras normas complementares, que são figuras constantes da nosso ordenamento legislativo[2] nacional para darmos uma amplitude inimaginável ao tema, inviabilizando nosso propósito, que é, antes de tudo, um viés, absolutamente, crítico, embora lastreado na devida fundamentação constitucional e legal.
Ao tentarmos traçar um parâmetro entre os princípios da legalidade e da moralidade tributária, o fazemos de forma proposital em nossos comentários, a fim de pontuarmos a área de pesquisa de predileção do nosso homenageado na presente obra, sabendo-se de antemão que a temática proposta é muita mais ampla que isso.
Tal escolha pela delimitação, além de imperiosa para não tornar o tema assaz modorrento, ocorre por obra e graça de nosso homenageado, por intermédio do qual, constatamos que o tema “moral tributária”, também é extremamente amplo, e, segundo o alemão Klaus Tipke[3], tratado ainda como sinônimo de ética tributária, sendo que são, segundo o referido autor, sinônimos entre si:
“Como sinónimos de moral tributaria se utilizan también los términos ética tributaria o situación Ética y moral de la fiscalidad.”
Evidentemente que a própria obra oferece inúmeras possibilidades de análise e a mera citação introdutória de suas ponderações preambulares não sintetizam a amplitude possível que se pode dar ao tema moralidade no contexto tributário (e explorado pelo autor), sob pena de estarmos horizontalizando nossa pesquisa e não conseguirmos expor nosso pensamento.
Desta forma, há, segundo nossa ótica, uma análise possível entre a legalidade e essa mesma moralidade, tentando-se aqui abordar um viés um pouco diferenciado daquele explorado pelo Professor Demétrius Macei[4] em seu estudo intitulado “TRIBUTAÇÃO, MORALIDADE E SUSTENTABILIDADE”, quando observou, além da necessidade de sustentabilidade do tributo, o pressuposto de que o tributo, visto sob a ótica estatal, seja moralmente aceito.
Segundo Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos, “o dever dos súditos de contribuir para com o Estado, por meio de tributos, para que este exerça adequadamente sus funções, ganhou notoriedade no Iluminismo, a partir da obra de Adam Smith”.[5]
Segundo a autora, até para nossa sustentação da conexão que entendemos existir entre a exigência legal e o respeito ao contribuinte, destaca-se o fato de a exigência de tributos, pressupõe critérios e princípios mínimos, uma vez que se deve perseguir uma justiça fiscal, havendo, naturalmente, um conflito entre a eficiência arrecadatória e o justo.
A nosso ver, tais pensamentos, redundam no entendimento de Klaus Tipke[6], segundo o qual, no contexto dessa justiça fiscal, há limites à imposição tributária, deixando-nos, na liberdade de desenvolvimento que o tema sugere, antever que a própria segurança jurídica estaria afetada sem que tais limites fossem respeitados, notadamente ao decantado princípio da legalidade que adiante exploraremos no contexto dos Convênios e Protocolos ICMS.
É nesse sentido que pretendemos desenvolver nosso tema, chamando a atenção para o uso em nosso raciocínio, para o que alguns docentes costumam chamar de topoi, que em síntese, a despeito das inúmeras discordâncias (mais pela complexidade de seu correto enquadramento), permitem, a partir de premissas válidas e verossímeis, criar-se um efeito de verdade, superando-se eventuais antinomias.
Segundo o Professor Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro[7], há um inequívoco caráter político-ideológico da atividade decisória do magistrado, permitindo-se aqui entender, em síntese, os fins sociais da lei, que neste caso, seriam os princípios garantidores da constituição, em especial o da moralidade aplicado à legalidade quanto ao contexto dos referidos Convênios e Protocolos no âmbito do ICMS.
Nesta pretensão, mas sob uma visão crítica do modelo brasileiro atual, sem esgotarmos o tema tal a profundidade de discussões que o mesmo sugere, procuraremos demonstrar o uso, no contexto do ICMS, das figuras dos Convênios e dos Protocolos, que são instrumentos largamente usados pelo CONFAZ[8][9], frequentemente usados para atender interesses do poder tributante, dito sujeito ativo, fazendo as vezes, frequentemente, de poder legiferante e usurpando, também com extrema frequência, essa função porque nosso poder legislativo simplesmente não legisla adequadamente, dando espaço para que os Estados e o Distrito Federal o façam de maneira supletiva, extrapolando, em muitas vezes, a função atribuída a esse órgão.[10]
O CONFAZ, SUA RAZÃO DE EXISTIR E O LIMITE DE ATUAÇÃO DOS CONVÊNIOS E PROTOCOLOS EM MATÉRIA DE ICMS
O Conselho Nacional de Política Fiscal é órgão deliberativo, instituído em decorrência de preceitos constitucionais, com a missão de promover o aperfeiçoamento do federalismo fiscal e a harmonização tributária entre os Estados.[11]
A participação da União em órgão aparentemente de interesse das Unidades Federadas, além dos fundamentos constitucionais que trataremos adiante, justifica-se pelo fato de que a esse órgão, dentre outras finalidades, cabe a função de regulamentar todo o documentário fiscal utilizado pelos contribuintes do ICMS, o que envolve não só o comércio, como os prestadores de serviço oneroso de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal, mas também as indústrias, que são contribuintes do IPI.[12]
Originalmente tais Convênios e Protocolos, em matéria de ICMS, encontram respaldo nos artigos 155, § 2º, XII, “g” de nosso texto constitucional vigente, que, por sua vez, veio previsto no texto do artigo 23, § 6º[13] da Constituição de 1969, que, por sua vez, lastreava-se[14] na Lei Complementar nº 24/75[15].
Segundo Maria Lúcia Américo dos Reis e José Cassiano Borges[16], a pretexto da referência feita à Fabio Fanucchi, entenderam que os convênios ora citados são de natureza semelhante à dos tratados e convenções internacionais[17],[18], ou seja, seriam fontes principais de Direito Tributário e não se confundiriam com os convênios citados no artigo 100, IV do CTN,[19] que por sua vez, seriam fonte secundária e serviriam, “apenas para trocas de informações fiscais, prática de uma política tributária comum e outros fins congêneres, porém, não se destinam a constituir direitos ou extinguir obrigações.[20]
Asseveram os autores ainda, os Convênios do antigo ICM (o que equivaleria ao ICMS atual), respaldados no artigo 44, I da Constituição Federal de 1969[21], visavam “à criação de direitos e à extinção de obrigações do ICM e, sendo assim, necessariamente teriam de observar a norma do art. 44, I da Constituiçãode 1969...”[22]
Este posicionamento, à luz do moralidade tributária e à bem da justiça fiscal, bem como dos limites constitucionais trazidos na principiologia tributária descrita no capítulo do sistema tributário nacional nos conduz a uma natural dicotomia, pois admitindo-se ainda a necessidade de arrecadação mencionada pelo Professor Demétrius[23] em seu estudo Tributação, Moralidade e Sustentabilidade, na busca do equilíbrio dessa equação com a segurança jurídica não podemos abrir mão de pressupostos básicos que esses vetores constitucionais produziram, em especial o da legalidade e os limites de atuação dos Convênios e Protocolos sob pena de não vivermos num Estado Democrático de Direito e voltarmos ao período do tributo como meio de sustentação do príncipe.
Neste contexto, até para se pontuar a necessidade de equilíbrio nesta relação sujeito ativo x sujeito passivo, extrai-se o importante ensinamento de Maria de Fátima Ribeiro[24]:
“O Estado de Direito, como assevera Francisco Campos, é o Estado em que todas as atividades, todos os atos e todas as divisões da autoridade pública, seja qual for o grau que ocupem na hierarquia política, ou a medida em que participem na elaboração da vontade do Estado, são regidos pela lei ou pelo Direito”.
Dando mostras da importância dessa discussão, Cassiano Borges e Maria Lúcia[25], na sequência do estudo anteriormente comentado, demonstram sua indignação e contrariedade da regra decorrente do artigo 4º da Lei Complementar 24/75[26], que a despeito do princípio da legalidade, “atribuiu ao Poder Executivo de cada Unidade da Federação competência para ratificar os convênios concessivos ou revogadores de isenções do ICM, mediante decreto.”
Formalmente, nunca é demais lembrar que, a palavra lei, no contexto jurídico desses Estados de Direito, representa um ato normativo (e formal por excelência) do parlamento, posteriormente sancionado pelo Executivo com o fim de se lhe dar a devida publicidade, podendo sim, eventualmente, ser promulgado pelo próprio legislativo quando inexiste a sanção do governante ou em decorrência de veto deste.
Daí o ensinamento do mestre Aliomar Baleeiro[27] ao destacar que o tributo é ato de soberania do Estado na medida em que sua cobrança é autorizada pelo povo através de representação.
Ora, retirar tal papel de quem o detém constitucionalmente, e atribuir ao Estado que o cobra, é no mínimo suprimir garantias e direitos fundamentais estabelecidos em nosso artigo 5º da Constituição Federal, ferindo sentimentos mais legítimos de moralidade e ética, pois é inevitável que os interesses desses entes, ao melhor estilo absolutista do período pré-iluminismo, venham a prevalecer.
Não se questiona a importância e necessidade de tais instrumentos, mas sim a limitação que se pretenda dar a eles no papel de formalismo de arrecadação e instrumentalização de que necessita o Estado, notadamente ante ao fato de ser o ICMS um tributo com matizes pormenorizadas que envolvem peculiaridades de cada um dos 27 interessados, mas sim cumprir seu papel legal sem usurpar competência constitucional delegada exclusivamente à lei num momento em que o nosso legislativo não cumpre adequadamente com sua missão.
E a pretexto do nosso pretendido uso da tópica alhures[28] comentada, Cassiano Borges e Maria Lúcia[29] assim se posicionam, verbis:
“Assim, a Lei Complementar nº 24/75 entrou em rota de colisão com o texto constitucional, pois é absolutamente inadmissível que caiba ao Executivo, além do que lhe é próprio, a celebração de acordo, também a ratificação do ato.”[30]
Por mais que se professe aqui uma posição dentro das correntes dicotômica ou tricotômica sobre a função da Lei Complementar em matéria tributária, uma conferindo aplicação restrita às mesmas (corrente dicotômica) e outra lhe atribuindo alcance mais amplo (corrente tricotômica) como comenta Luciana Zechin Portas[31], o que se discute aqui é a absoluta invasão de competência de institutos como os Convênios e Protocolos (estes mais comuns em sede de substituição tributária e contendo particularidades em relação aos primeiros).
Em essência, é certo que estamos discutindo o princípio constitucional da legalidade tributária e a segurança jurídica, pois o limite que permeia a ação meramente regulamentadora e de harmonização que estes institutos trazem consigo (e para o que foram criados) e a instituição de obrigações que transitam entre a própria obrigação principal (tratando de hipótese de incidência, base de cálculo, dentre outros) é muito tênue e tem sido vilipendiada em vista da inação do legislativo brasileiro, seja em caráter nacional como no estadual.
Trata-se de tema fértil, bem ao gosto daqueles que nutrem pela ciência tributária o desiderato comum e incansável da busca de uma pretensa verdade absoluta, que sabemos não existir, mas que permite lançar luzes sob um assunto pouco debatido que é, no âmbito do ICMS, crescente substituição do poder natural legislativo federal, pelo Estados, no âmbito do CONFAZ, na tarefa de regulamentação do tributo, numa evidente afronta à segurança jurídica, pois a pretexto da uniformização de procedimentos e pretendida harmonização do tributo, está, por conta da inação de quem tem a obrigação constitucional de legislar, está se transferindo, numa expressão chula, com a devida licença do leitor, a tarefa de cuidar dos ovos de ouro (leia-se tributo) à raposa (os Estados e o Distrito Federal), demonstrando-se o liame possível entre o princípio legalidade com a moralidade pretendida (ou ética como dito por Klaus Tipke), pois o poder legislativo brasileiro[32], simplesmente não legisla, numa evidente crise de jurisdição legislativa, quando então, este papel vem sendo executado pelo CONFAZ, por meio de Convênios e Protocolos.
Basta, como argumento inicial provocativo, para tal intento, observar-se que o nosso texto constitucional invocou, não só no artigo 5º, II o princípio da legalidade, como, em matéria tributária, o fez também no artigo 150, II[33] e por mais que se apresse em sustentar-se que o mesmo se restringiria, numa interpretação gramatical, à exigência ou aumento de tributos, nunca é demais observar as regras do artigo 146 no tocante à função da Lei Complementar em matéria tributária, que nos permite, não só uma interpretação sistemática do texto como garantidor de direitos do contribuinte, mas também uma interpretação teleológica no sentido de entender ser necessário o equilíbrio de forças entre o sujeito ativo e o sujeito passivo dentro do contexto da moralidade tributária, que não pode se limitar ao contexto meramente arrecadatório, mas garantidor de limites máximos para tanto.
Não bastasse isso, para justificar-se a necessidade ética e moral do tributo, como observa historicamente Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos[34], desde o iluminismo, a partir da obra de Adam Smith, com o dever dos súditos em contribuir para o Estado, por meio de tributos, também se passou a exigir do Estado que exercesse suas atividades de forma adequada.
Neste contexto, a autora sustenta que “é importante destacar que a exigência de tributos deve sempre perseguir uma justiça fiscal, isto é, deve ser feita de forma justa, em que exista uma adequada distribuição do ônus tributário entre os indivíduos”.
Ressalta ainda, a pretexto da problemática da propalada e pretendida justiça fiscal, que há um conflito entre a eficiência arrecadatória e a justiça propriamente dita, que, por sua vez, segundo ela, referenciando-se em obra de Alessandra Machado Brandão Teixeira[35], não pode ser desprezada no âmbito da tributação sobre o consumo, onde enquadramos o ICMS.