Apontamentos sobre o mínimo existencial como pressuposto dos direitos fundamentais no Estado contemporâneo brasileiro

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16/03/2018 às 11:34
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O SUCATEAMENTO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO COMO INIBIDOR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Em observações anteriores já demonstramos haver distância entre o que se deseja para atingir ao respeito pleno dos direitos fundamentais e a distância existente para a realidade existente no Estado Contemporâneo brasileiro.

Do que se observa, do que já se disse até aqui, é que houve, desde o advento de nossa Constituição vigente, que ousou ampliar o que alguns chamam de rol de direitos e garantias individuais, um sucateamento do Estado brasileiro, que não vem atendendo nem mesmo às necessidades básicas (ditas fundamentais) e até mesmo o quanto ao “mínimo vital” anteriormente comentado, que estaria ligado apenas ao conceito de sobrevida, enquanto o que se busca é a dignidade humana preconizada em nosso texto magno.

O certo, do que já se disse e dos fatos de amplo conhecimento público, é que o Estado encontra-se em crise, pelos mais variados motivos, notadamente porque com o texto constitucional de 1988 sua intervenção se acentuou, como assevera Leila Cuéllar (2001, p. 55), permitindo-nos, em apertada síntese, observar, quanto ao Estado Contemporâneo brasileiro, haver uma combinação desastrosa de má gestão, gigantismo e ineficiência[21] como registra em seus comentários ao tratar de uma necessidade de reforma do que se convencionou chamar de Estado Social,[22],[23]:

O crescimento desmesurado do Estado Social, determinado pela ampliação de suas atribuições (passou o Estado a assumir responsabilidade por inúmeras atividades e serviços, como as grandes infraestruturas de transporte e comunicação, por exemplo) e de sua atividade interventiva, a forma burocrática de organização, os níveis elevados de gastos públicos, a crise financeira, dentre outros fatores, acarretaram a ineficiência do Estado no desempenho de muitas de suas atividades. Esse quadro traduz-se na crise de um modelo de Estado, apontado a necessidade de sua revisão.

Também observando esse crescimento desmesurado do Estado social de Direito e suas consequências negativas, assim se pronunciou Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1999, p. 21): [24]

Verificou-se um crescimento desmesurado do Estado, que passou a atuar em todos os setores da vida social, com uma ação interventiva que coloca em risco a própria liberdade individual, afeta o princípio da separação dos Poderes e conduz à ineficiência na prestação de serviços.

Acrescentemos ainda ao quadro apresentado as dificuldades de atendimento de funções mínimas de cunho social do Estado, que chegaram a um estágio preocupante pelas dificuldades financeiras do Estado Brasileiro, que são somados, evidentemente, a outras causas, mas que produzem uma preocupação natural para se atravessar essa crise e induzem à busca de soluções de curto, médio e longo prazo.[25]

Essa precariedade de nosso Estado atual já era observada por Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 1988, p. 55-57) quando de sua tese de doutorado, quando analisou o complexo de Jacarezinho (RJ) e a estrutura de um Estado paralelo ao Estado de Direito, naquilo que o autor lusitano chamou de “Direito de Pasárgada”[26], em evidente observação ao poema de Manuel Bandeira.

No caso do direito de Pasárgada, os instrumentos de coerção ou são inexistentes ou muito incipientes. Mesmo com a possibilidade de a associação se valer de destacamento policial local, não o faz pela razão de que o envolvimento policial deslegitima a própria associação. Neste modelo, a coerção se dá pelo discurso da violência, da ameaça. Entretanto, como raras são as ocasiões aonde de fato a violência é colocada em prática, este discurso não passa de retorica de força, de um topos de intimidação.

A partir de SANTOS (1988, P. 57), em referência ao seu estudo datado de 1977, encontramos uma intrigante afirmação, que, em condições normais, soaria anacrônica, mas considerando um distanciamento evidente entre a teoria e a práxis do nosso Estado Contemporâneo brasileiro, apresenta, exatos 40 (quarenta) anos passados, uma terrível e indisfarçável realidade e que nos alertam para a urgência de se voltar às origens pretendidas em busca dos pretendidos direitos fundamentais típicos de um Estado Democrático de Direito:

...resulta com clareza que nas sociedades que o direito apresenta baixo nível de institucionalização da função jurídica e instrumentos de coerção pouco poderosos, o discurso jurídico tende a caracterizar-se por um amplo espaço retórico.

A urgência aqui tratada, ante a insegurança econômica, não se limita aos fatos experimentados na atualidade brasileira, trazendo evidentes prejuízos à liberdade do cidadão como se pode observar do pensamento de Amartya Sen (2010, p. 30) ao falar dos problemas econômicos e da falta do seu desenvolvimento, que parece ser o ponto nodal de nosso Estado Contemporâneo:

O desenvolvimento econômico apresenta ainda outras dimensões, entre elas a segurança econômica. Com grande frequência, a insegurança econômica pode relacionar-se à ausência de direitos e liberdades democráticas.

Ante ao quadro atual, fica evidente que o papel do Estado e sua função social poderiam e precisam ser revistos, sabendo-se, no entanto, que essa seria uma dura empreitada, de indigesta discussão, e estaria vinculada a uma questão de fundo, que exigiria saber-se qual o nível de intervenção estatal desejado pelo cidadão (seja ela a mais privilegiada ou a dita ralé brasileira[27]), o que só seria possível após ampla discussão[28], e que certamente resultaria em uma eventual convocação de assembleia constituinte.

Evidentemente que isso se trata de solução de médio e longo prazo, que não atenderia ao desiderato de nossos comentários, uma vez que entendemos haver certa urgência de transição, existindo outros mecanismos passíveis de adoção e de resultado mais efetivo neste instante em que o imediatismo se sobrepõe ao idealismo[29], visando-se a um Estado de bem-estar social mais condizente com os princípios da Carta de São José da Costa Rica e de nossa Constituição vigente, de forma a atender ao preceito da dignidade humana que os circunda.

Para Emerson Gabardo (2009, p. 180-182) ao adotar-se a ideia de um Estado de bem-estar social, é preciso que se faça uso de uma interpretação moral da Constituição, evitando-se uma visão simplista de que o direito se limita ao contido ao texto escrito da lei, mas um pressuposto de validade que representa o verdadeiro substrato de uma sociedade digna e justa, que valoriza o ser humano e privilegia os direitos fundamentais mais lídimos e que estão mais próximos de um Estado dito subsidiário.

Segundo ele, os fundamentos éticos de um Estado de bem-estar seriam a tolerância e a solidariedade, tendo-se como fundamento implícito deste entendimento, a redistribuição de riqueza.

Nessa linha de raciocínio, Gabardo (2009, p.171) identifica três princípios básicos a serem considerados:

A partir desta relação indissociável entre a Constituição e o Estado, torna-se possível identificar três princípios básicos de ordenação das instituições políticas no regime democrático: a) o reconhecimento de direitos fundamentais, que o poder deve respeitar; b) a representatividade social dos dirigentes e da sua política; e c) a consciência de cidadania, do fato de pertencer a uma coletividade fundada sobre o direito.

A discussão sobre os novos papéis do Estado e de suas estruturas administrativas resultaram em doutrina nacional decorrente dos valores estabelecidos na Constituição Federal de 1988, que traz consigo princípios de verdadeiro exercício de democracia que é o verdadeiro telos aristotélico[30] do Estado Democrático de Direito.

No entendimento de Paulo Augusto de Oliveira (2016, p. 103), considerando a evolução histórica da figura do Estado brasileiro, transpusemos o estágio de um Estado executor (prestador) para um Estado de regulação justamente em função da escassez anteriormente comentada, buscando-se um aperfeiçoamento no modelo de governança pública, uma espécie de “renew deal”[31]:

O atual contexto de escassez vai acarretar uma substancial alteração comportamental do Estado Administrativo, em uma reforma/aperfeiçoamento da Administração Pública, do direito administrativo.

Emerge, assim, da atual conjuntura política, econômica e social, o direito administrativo da escassez, que enxerga notadamente no direito administrativo da regulação (Regulierungsverwaltungsrecht) um viés para alcançar os fins objetivados pelo Estado Regulador e Garantidor.

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Considerando as dificuldades do Estado Contemporâneo em cumprir com o seu papel constitucional, até mesmo para atender os mais básicos direitos, o cidadão se vê diante de situação que afeta à sua própria dignidade como outrora comentado, demonstrando que os direitos fundamentais têm sido relegados e desatendidos pelo Estado brasileiro de forma sistemática.

Ou seja, tanto no cotidiano em ações comuns ao Estado deve haver a preocupação no atendimento dos direitos fundamentais, como nas ações interventivas pontuais de forma a regular as atividades se não puder exercê-las diretamente e lançando mão, muitas vezes de agentes regulatórios criados para tais fins.

Para que tenhamos o desenvolvimento esperado, faz-se mister que o Estado seja minimamente eficiente, pois instituições fortes e desenvolvidas produzem resultados que voltam ao próprio mercado como já pregava Amartya Sen (2000, p. 169) em suas observações finais da Economia do Desenvolvimento:

Os indivíduos vivem e atuam em um mundo de instituições. Nossas oportunidades e perspectivas dependem crucialmente de que instituições existem e do modo como elas funcionam. Não só as instituições contribuem para nossas liberdades, como também seus papéis podem ser sensivelmente avaliados à luz de suas contribuições para nossa liberdade.

Não bastasse isso, Clayton Reis (2016, p. 109) nos lega como ensinamento a importância do respeito à função social evidente do Estado Contemporâneo e que deve se apresentar-se como reserva legal, nos seguintes termos:

A função social é reserva legal reforçada que utiliza da técnica de reenviar a matéria para o legislador futuro, e mesmo para o aplicador do direito, como espécie de mandato de ponderação objetiva de elementos a respeito da funcionalização em cada situação proprietária concreta ou a cada categoria de bens;

Na esteira das sugestões que demandariam longa discussão, ressuscitando o pensamento de Habermas anteriormente apresentado quanto a necessidade dialética, ante a escassez de recursos atual, além da própria revisão do papel do Estado (numa evidente diminuição de atribuições não consideradas essenciais) e aliado a uma revisão tributária (quando se trocaria a tributação do consumo pela tributação da propriedade), buscamos inspiração em Thomas Piketty (2014, p. 492)

Embora possa parecer tema desconexo, sempre é bom lembrar que o economista francês também entende pela importância do mínimo existencial, fornecendo outra alternativa para a revisão do caos em que se transformou nosso Estado Contemporâneo brasileiro.

É nítida a existência de um grande abismo de desigualdades sociais e de renda no Brasil e das próprias expectativas dos direitos fundamentais. Observa-se que os debates que envolvem males desse problema são inúmeros, mas sintetizados, como ponto de partida, na corrupção do setor público[32], bem como uma carga tributária desproporcional e extremamente mal distribuída, onerando os mais necessitados, quando o mundo mais civilizado já parte da tributação do patrimônio.

Importa observar que, considerando a realidade brasileira, a busca de um Estado de Direito terá que passar pelo fim das mazelas aqui apontadas, dentre as quais citamos a corrupção generalizada e a letargia conivente do cidadão, pois a construção de um verdadeiro Estado Social, em que se respeite os Direitos Fundamentais e em que o Mínimo Existencial não seja um engodo serão apanágio para aquilo que se vem sustentando no presente arrazoado, não havendo mais espaço, na lição do ítalo-argentino José Ingenieros[33] (1913) para a o exercício da mediocridade, pois ela só continuará existindo se optarmos por isso, pois não se confunde com incapacidade, mas com autolimitação espontânea.

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Sobre o autor
José Julberto Meira Junior

Advogado; Mestre em Direito Empresarial pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Curitiba (2018) e especialista em Direito Tributário (1999) pelo IBEJ/FESP; Professor Universitário nos cursos de especialização da UNICENP, FAE BUSINESS, FESP, ABDCONST (Curitiba), FAG (Cascavel e Toledo), CTESOP (Assis Chateaubriand); UniOPET EAD (Curitiba); Instituto Navigare / Faculdade Stª Fé (São Luis – Maranhão), UFPR/Ciências Contábeis (Curitiba), PUC (Curitiba); com estágio docente realizado na Universidade de Santiago de Compostela (USC/Espanha); Membro do Comitê Tributário da OAB/PR; membro honorário do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT); membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT); membro do Comitê de Estudos Tributários, Fiscais e Contábeis do CRC/PR e do Conselho Temático Tributário da Federação das Indústrias do Paraná (FIEP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2581196308704093 E-mail: [email protected]

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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