3. DIREITO À SEGURANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
O legislador constituinte de 88 ao legislar sobre o tema Segurança o fez inserir no título dos direitos e garantias fundamentais, precisamente em seu art. 6º, no rol específico dos direitos sociais, onde pontua SARLET[8] que a utilização da expressão genérica segurança faz com que o direito à segurança (também) possa ser encarado como uma espécie de cláusula geral, que abrange uma série de manifestações específicas, como é o caso da segurança jurídica, da segurança social, da segurança pública, da segurança pessoal, referindo-se as mais conhecidas.
Para o caso em análise, ou seja, a limitação do exercício do direito constitucional à livre manifestação do pensamento em colisão com o direito à segurança, interessa o direito à segurança pública, a qual, sendo uma espécie dos direitos sociais enquanto direito fundamental, possui disposição na Constituição Federal do Brasil em seu art. 144 que dispõe:
Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
A segurança pública enquanto dever do Estado e responsabilidade de todos demonstra ser um direito absolutamente difuso quanto à sua titularidade, devendo ser entendida como de todos e para com todos e, indistintamente, pertencente a todos os indivíduos.
Não se pode afastar ainda que sendo a segurança pública um direito e responsabilidade de todos os cidadãos, estes por sua vez, possuem o dever de contribuir para com o alcance dos objetivos de preservação da ordem e incolumidade das pessoas e do patrimônio, ou seja, um ambiente de convivência social harmônico onde os direitos humanos sejam respeitados e as leis observadas com vistas ao bem comum.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em seu art. 7º (Direito a Liberdade Pessoal) normatiza no inciso 1 que “toda pessoa tem direito à liberdade e segurança pessoal”. Em análise comparativa entre a Carta Constitucional Brasileira e o Pacto de São José da Costa Rica, Azevedo e Basso[9] (2008, p. 26) comenta que o comparativo remete ao estudo do § 2º do art. 5º da CF/88 o qual “permite afirmar que, mesmo sem estar expressamente prevista, a segurança pública ou pessoal pode ser considerada direito fundamental”.
Apesar do entendimento de Azevedo e Bastos que necessário seria a utilização do § 2º do art. 5º em uma interpretação gramatical de que os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes dos princípios por ela adotados, buscando assim afirmar o status do direito a segurança pública ou pessoal como direito fundamental, MORAES[10] (2010, p. 73) pontua que:
No direito constitucional pátrio a utilização da expressão “direitos e garantias fundamentais” foi uma novidade inserida pela Carta Política de 1988, pois as Constituições anteriores utilizavam a denominação “direitos e garantias individuais”. Quanto aos direitos fundamentais sociais, em razão de sua disposição no próprio capítulo dos direitos fundamentais demonstra, de modo inquestionável, que são verdadeiros direitos fundamentais, já que nas Constituições os mesmos se encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, o que com isso os tornava de eficácia limitada, pois ficavam caracterizados com direitos de conteúdo apenas programático.
O problema a ser enfrentado é admitir a segurança pública enquanto espécie do gênero segurança (direito social) como também um direito fundamental uma vez que trata-se de um dever prestacional do Estado, um dever de agir para assegurar aos cidadãos a garantia de poderem usufruir de seus direitos, em suas diversas manifestações.
Assim, não se pode afastar do Estado o dever de agir por representação dos seus órgãos com poderes para ofertar e garantir o serviço de segurança pública nas arenas de realização dos jogos olímpicos (ação positiva), atividade esta que de mesma sorte não poderia ser reclamada a restringir o exercício de um direito fundamental, ou seja, o Estado também não pode criar embaraços ao exercício de tal direito enquanto direito fundamental (ação negativa).
Ao lecionar sobre o assunto, ALEXY (2015) pautado na teoria analítica dos direitos, traz uma divisão tríplice das posições que devem ser designadas como direitos, e as classifica como direitos a algo, liberdades e competência. Demonstra que o direito a algo, considerando a relação do portador do direito, o destinatário e o objeto a ser garantido, e considerando a relação no âmbito dos direitos em face do Estado, os direitos a ações negativas correspondem aquilo que comumente é chamado de “direitos de defesa”, enquanto as ações positivas coincidem apenas parcialmente com aquilo que é chamado de “direitos a prestações”.
Assim, apesar do aprofundamento do autor sobre o tema, não resta dúvida que a norma que garante o direito subjetivo a segurança pública exige que o Estado adote a ação positiva com vistas a proteger o exercício dos demais direitos do cidadão, como, por exemplo, o exercício do direito a livre manifestação do pensamento em arenas e, as ações necessárias a serem adotadas pelo Estado podem ser exemplificadas por meio do aumento de agentes de segurança no ambiente, ou ainda, a exigência das instituições que promovem os espetáculos a colaborarem com a oferta de segurança privada em suas diversas formas, desde seguranças privados a utilização de ferramentas capazes de minimizar os riscos de conflitos e ameaças ao cidadão. Lado outro, no que tange a ações negativas é possível mencionar que deve o Estado abster-se de utilizar de sua força pública para reprimir o exercício de direitos consagrados pela constituição.
4. A COLISÃO ENTRE O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E À SEGURANÇA
A crise política vivenciada pelo Brasil desde o embate na eleição presidencial de 2014 e, ainda, dos diversos escândalos que afloraram com as ações judiciais instauradas por meio das atividades investigativas da Polícia Federal Brasileira envolvendo autores políticos provocaram uma série de manifestações da sociedade, ora em defesa, ora em oposição e crítica.
Tendo o país se comprometido a sediar tanto a copa do mundo de 2014, bem como, os jogos olímpicos no Estado do Rio de Janeiro em 2016, cidadãos que se deslocaram para os Estádios para assistir aos jogos vislumbraram ali a oportunidade de, diante dos holofotes da impressa nacional e internacional, externar seu pensamento político e manifestar sua opinião sobre os fatos que vivenciavam.
O Projeto de Lei nº 2330 de 2011, transformado na Lei 12.663/2012 que dispôs sobre as medidas relativas a Copa do Mundo, ao ser submetido à apreciação da Presidência da República demonstrou que o fator motivador do projeto se traduzia na efetivação dos compromissos assumidos pelo Governo Federal perante a FIFA, quando da escolha do País como sede das competições. Tendo sido a lei sancionada, passou então esta a disciplinar as medidas relativas à copa das confederações FIFA 2013, à Copa do Mundo FIFA 2014 e aos eventos relacionados no Brasil. Em mesma sintonia, o Projeto de Lei 3221 de 2015, transformado na Lei Ordinária 13284/2016 que dispôs sobre medidas relativas aos Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos de 2016 também normatizou as medidas relativas ao evento.
Dentre as medidas normatizadas por ambas as leis mencionadas, apesar de em momentos distintos, chamou a atenção o disposto no mesmo art. 28 de tais normas o qual estabelecia condições de acesso e permanência nos locais oficiais de competição e, dentre as situações elencadas estava aquela inserida no inciso IV que dizia ser condições para o acesso e permanência de qualquer pessoa nos locais oficiais de competição “não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista, xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação.
Em uma interpretação extensiva da norma e sob a argumentação de uma arena limpa, agentes de segurança adotaram a postura de impedir a manifestação de torcedores, de cunho político, que ostentavam cartazes ou trajavam camisetas, manifestando assim sua opinião política, alguns em desfavor do governo, enquanto outros em opiniões contrárias, vindo então tais torcedores serem compelidos a se retirarem do estádio ou mesmo desfazer ou guardar os cartazes que traziam consigo
Conforme já pontuado, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal manifestou pela constitucionalidade da supracitada Lei, reclamando o argumento de que o exercício do direito da livre manifestação do pensamento, fazia emergir a possibilidade de confronto entre torcedores no estádio e, diante disso a colisão de princípios.
Para a resolução do conflito aparente de tais princípios constitucionais, livre manifestação do pensamento e direito a segurança, sustentou o Ministro Gilmar Mendes em seu voto na ADI 5136 MC/DF que as tensões entre os princípios precisam ser ponderadas a partir da aplicação do princípio da proporcionalidade, ou seja:
Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade.
Sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade e o estabelecimento do peso que deve ser pautado quando da ocorrência da colisão entre os princípios conforme o caso concreto, ALEXY (2015, p. 97) teorizando o assunto demonstra que:
A questão decisiva é, portanto, sob quais condições qual princípio deve prevalecer e qual deve ceder. Neste contexto, o Tribunal Constitucional Federal utiliza-se dá muito difundida metáfora do peso. Em suas palavras, o que importa é se os “interesses do acusado no caso concreto tem manifestamente um peso significativamente maior que os interesses a cuja preservação a atividade estatal dever servir.” (Grifo nosso)
A decisão de apontar o risco da ocorrência de lesões a segurança de outros cidadãos diante de um conflito entre aqueles que manifestavam a favor e aqueles que manifestavam contra, concedendo ao direito a segurança, direito este que reclama uma ação positiva do Estado como garantidor de tal direito por meio de seus órgãos de segurança pública, e ainda, possível de se exigir dos organizadores dos eventos, em detrimento do direito a manifestação do pensamento direcionou no sentido de diminuir a garantia que a Constituição concedia a liberdade de manifestação do pensamento.
Diante ao caso em comento, a decisão exarada em dar prevalência no caso das manifestações pacíficas de torcedores nas arenas de realização dos jogos da copa do mundo e olímpicos, do direito a segurança pública em detrimento da liberdade de expressão e do pensamento, serviu para demonstrar a dessintonia com a interpretação exarada pelo Tribunal Constitucional Alemão e a teorização dos direitos fundamentais de Robert Alexy, de que frente ao caso concreto o direito do cidadão deve prevalecer sobre os interesse a cuja preservação a atividade estatal deva servir.
Não resta dúvida que o direito à liberdade pensamento e de expressão nos termos da Convenção Americana, ou ainda, a livre manifestação do pensamento conforme da Constituição Federal não é absoluto, todavia, a aplicação de restrição deve estar em conformidade com a lei e, apesar da interpretação da Corte ao caso concreto, chamando a existência da colisão de princípios constitucionais, ao compararmos as restrições da própria Lei copa ou Olimpíadas, sendo esta não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista, xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação não se amoldava naquelas condutas dos torcedores e, tão pouco, se amoldava as possíveis restrições constitucionais ao exercício do direito.
Neste contexto é possível assegurar que a decisão exarada pela Suprema Corte transitou em uma decisão que atendeu aos interesse do Estado em detrimento da proteção a Constituição e seu ordenamento jurídico, principalmente na proteção aos direitos fundamentais traduzido pela liberdade de expressão e manifestação do pensamento sem previa censura.