A instituição familiar, no decorrer dos anos, sofreu inúmeras transformações, não mais podendo ter seu conceito limitado ao modelo convencional, qual seja: homem e mulher unidos pelo casamento, com o dever de gerar filhos, até que a morte os separe.
Em razão dessa evolução, surgiram novos modelos de famílias, mais democráticas nas relações de gênero e idade, flexíveis e menos sujeitas às regras legais de uma sociedade mais tradicional, e mais ao desejo de buscar a felicidade, priorizando a afetividade das relações. Assim como ocorreu com o reconhecimento da união estável e da união homoafetiva, a visão sobre a família evoluiu, não sendo mais baseada apenas por liames genéticos, biológicos e decorrentes do casamento civil. Por isso, a imprescindibilidade de flexibilizar a legislação, para que seja resguardada a devida proteção e cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana.
Devido a essa mudança da estrutura familiar, também se fez necessário ampliar o critério de paternidade ao ser reconhecido o vínculo estabelecido a partir de relação afetiva – ao invés da puramente biológica – em que são amparadas as relações formadas pelo afeto. Desse entendimento, decorre o reconhecimento da Multiparentalidade, que trata-se da possibilidade jurídica conferida ao genitor biológico e/ou do genitor afetivo de invocarem os princípios da dignidade humana e da afetividade para ver garantida a manutenção ou o estabelecimento de vínculos parentais. Dessa forma, além de constar o nome de ambos os pais biológicos no registro de nascimento do filho, incluem-se, também, o nome do pai ou mãe socioafetivo.
Cumpre ressaltar esclarecimentos sobre parentesco e filiação, trazidos por DINIZ, 2015, p. 491[1]:
“Parentesco é a relação vinculatória existente não só por pessoas que descendem uma das outras ou de um mesmo tronco comum, mas também entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro, entre adotante e adotado e entre pai institucional e filho socioafetivo. Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos. Vem a ser a relação de parentesco consanguínea em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida, podendo ainda (CC, arts 1593 a 1597 e 1618 e seguintes) ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo ou institucional e filho adotivo ou socioafetivo ou advindo de inseminação heteróloga.”.
Logo, nota-se que a família deixou de ser uma unidade de vínculo unicamente biológico, econômico, social e religioso, passando a basear-se na afetividade.
A ultiparentalidade reconhece a existência do direito à convivência familiar que a criança e o adolescente exercem, conjuntamente, da paternidade biológica com a socioafetiva, possibilitando que uma pessoa possua mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, e, consequentemente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles.
Tal assunto foi tema de Repercussão Geral 622{C}[2]{C}, da Relatoria do Ministro Luiz Fux, que envolvia a análise de uma eventual “prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica”[3]. Ao deliberar sobre o mérito da questão, o STF optou por não afirmar qualquer prevalência entre as referidas modalidades de vínculo parental, considerando a coexistência de ambas as paternidades.
A tese aprovada por maioria do plenário do Supremo Tribunal Federal tem o seguinte teor: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.".
Conforme esse entendimento, a Suprema Corte consagra, efetivamente, o reconhecimento da Multiparentalidade, gerando inúmeros efeitos no Direito de Família no Brasil, desde o registro de nascimento até os direitos sucessórios, decorrendo todos os efeitos cabíveis da filiação.
A obrigação alimentar consequente do reconhecimento da Multiparentalidade é aplicada tanto ao pai biológico quanto ao pai afetivo, sendo recíproca entre pais e filhos. Portanto, todos os pais poderão prestar alimentos ao filho, bem como este poderá prestar alimentos a todos os pais. Ou seja, os pais biológicos e afetivos seriam credores e devedores de alimentos em relação ao filho, respeitando, obrigatoriamente, o binômio possibilidade/necessidade (conforme disposto no artigo 1.694, § 1º, do Código Civil).
Concernente à guarda de filho menor, deverá ser analisado cada caso, considerando sempre o princípio do melhor interesse da criança. Quando tratar-se de criança considerada suficientemente madura, os Tribunais costumam considerar a sua preferência, em consonância com o princípio supramencionado.
Sobre os direitos sucessórios, no caso de Multiparentalidade, são garantidos tanto quando estiverem relacionados aos pais biológicos quanto aos pais afetivos. Falecendo os pais afetivos, o filho seria herdeiro em concorrência com os irmãos, ainda que estes sejam unilaterais, não havendo distinção entre irmãos bilaterais e unilaterais.
Conclui-se, por conseguinte, que, embora a Multiparentalidade resulte num bônus aos filhos contemplados pela dúplice paternidade, com "benefícios em dobro”, poderá também, futuramente, tornar-se uma obrigação dobrada, se for considerada a reciprocidade de alimentos e a capacidade sucessória. Logo, cada situação deve ser estudada criteriosamente, afinal, há inúmeras teses e entendimentos sobre o assunto.
O mais relevante é que, acerca desse tema, o STF reitera seu papel no campo do direito de família, ao não ignorar a realidade e a evolução do conceito de instituição familiar, acolhendo as diferentes formas de família já existentes na prática e que não se enquadram nos modelos conservadores que constam na nossa legislação. A tese aprovada na Repercussão Geral 622 representa, portanto, um importante passo ao encontro da consagração de um direito de família efetivamente plural e democrático no Brasil.
Notas
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Família – Vol5. 30ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
[2]A sessão que fixou a tese foi realizada no dia 21/09/2016, em deliberação do pleno do STF. O caso que balizou a apreciação do tema foi o RE 898060/SC, no qual o Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM atuou como Amicus Curiae.
[3] Esse trecho constava no acórdão do plenário virtual que reconheceu a repercussão geral do tema.