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A possibilidade de alteração das cláusulas pétreas

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5 – AS VÁRIAS CONCEPÇÕES DE CONSTITUIÇÃO 

Não existe um conceito absoluto e imutável de Constituição, quando relacionado à noção de lei fundamental. A sua definição deve ser obtida a partir da análise de cada texto constitucional e dos valores por eles considerados como fundamentais.

Para entender as várias concepções de Constituição, Canotilho (1997, p.52) a conceitua de maneira ampla como sendo a ordenação sistemática e racional de uma comunidade política, mediante um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Destarte, diversas são as formas para se entender a essência ou conceito de uma Constituição, podendo ser sociológica, política ou jurídica.

5.1 – CONSTITUIÇÃO SOCIOLÓGICA DE FERDINAND LASSALE 

Ferdinand Lassale, principal defensor da visão sociológica das normas constitucionais, assevera que a Constituição é a soma dos fatores reais de poder que predominam em uma comunidade.

Assim, nas palavras de lassale (2002, p.48):

Colhem-se estes fatores reais de poder, registram-se em uma folha de papel, se lhes dá a expressão escrita e, a partir desse momento, incorporados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas que se erigiram em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado.  

Ainda segundo Lassalle, a Constituição seria produto da realidade social de um país (Estado), das forças de natureza social que detém poder de influência sobre os rumos da sociedade, os chamados “fatores reais de poder” que são uma espécie de “força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são” (LASSALLE, 2009, p. 22).

É possível deduzir que tais fatores reais de poder são forças que atuam de maneira predominantemente política e legítima, exercendo papel singular na determinação e conservação das instituições jurídicas em um determinado contexto social, tais como, na ótica de Lassalle, a monarquia, a aristocracia, a grande e pequena burguesias, os banqueiros, a classe operária e até mesmo, implicitamente, a consciência coletiva e a cultura geral.

Para Lassale, existiria, então, em uma sociedade duas espécies de Constituição: a real, que retira seu sustentáculo dos fatores reais de poder, e a escrita, a folha de papel, que é um mero documento, a materialização da Constituição real. A Constituição escrita, pois, somente será boa e duradoura quando corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país, pois se a primeira não corresponder à segunda, inevitavelmente haverá um conflito que resultará na sucumbência da Constituição escrita perante a Constituição real e as verdadeiras forças vitais do país (LASSALLE, 2009, p. 43).

É interessante perceber que Lassalle enxerga a Constituição real como uma expressão de ser, e não de dever ser, porque sempre que a Constituição escrita se projetar para modificar a realidade não surtirá qualquer efeito, ante a ausência de sua força de alterar a sociedade que se organiza e se regula, conforme os fatores reais de poder.

Em síntese a Constituição real será sempre um fato pré-normativo, sendo que “os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder” (LASSALLE, 2009, p. 51). Portanto, pode-se deduzir que para Lassale, a Constituição deve refletir as forças sociais que estruturam e determinam o poder, ou seja, o comportamento do povo.

5.2 – CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DE CARL SCHMITT

Carl Schmitt se destacou como o maior expoente da concepção política da Constituição, em sua obra Teoria da Constituição (1828), esse autor considerou que o momento político de elaboração de uma norma sempre antecede a juridicidade da mesma.

Para Schmitt, citado por Santos (2014), a Constituição é uma decisão política sobre o modo e a estrutura de determinada unidade política, para ele o Poder Constituinte é formado por um ato que se originou de uma decisão política.

Desta forma pode-se extrair do pensamento de Schmitt, conforme dito por Varella (2010, p.131) que:

A Constituição não tem sua validade fundada na justiça de suas normas e muito menos em uma norma hipotética fundamental, como defendido por Hans kelsen, mas funda-se na decisão política que lhe confere existência, isto é, no ato do poder constituinte que dita politicamente como o Estado, equivalendo-se, nesse caso, o poder constituinte à vontade política.

Dessa forma, a Constituição passa a possuir sentido político absoluto, já que sua essência não se encontra em nenhuma lei ou norma, mas tão somente em seu profundo valor existencial. Sob essa ótica podemos afirmar que “a Constituição não vale porque vale ou porque uma norma hipotética diz que vale, mas porque é produto de uma decisão constituinte” (SAMPAIO, 2004, p. 5).

Schmitt (1932), citado por Varella (2010, p.131), também traz em sua obra a distinção entre Constituição e leis constitucionais, segundo ele:

A Constituição se destina a estabelecer normas unicamente sobre matérias de grande relevância jurídica, fruto da decisão política fundamental, quais sejam: a organização do Estado, o princípio democrático, os direitos fundamentais, etc. As demais normas integrantes do texto constitucional, portanto, denominam-se leis constitucionais.

Essa distinção acima repercute especialmente no aspecto da rigidez quanto à possibilidade de alteração das normas, pois enquanto as leis constitucionais estão sujeitas à modificação, por se tratarem de assuntos de menor importância, a Constituição não, pois além de ser oriunda da decisão política fundamental e, conseguintemente, intangível ela trata de assuntos de maior importância. (SCHMITT, 1992, p. 49-50, apud Varela, 2010, p.131)

5.3 – CONSTITUIÇÃO JURÍDICA DE HANS KELSEN  

Hans Kelsen, criador da Teoria Pura do Direito e precursor do positivismo jurídico, defende que o Direito é por si só autossuficiente, alheio à moralidade, religião, sociologia, cultura, etc.

Segundo Kelsen: “O Direito é sempre Direito positivo, e sua positividade repousa no fato de ter sido criado e anulado por atos de seres humanos, sendo, desse modo, independente da moralidade e de sistemas similares de normas” (KELSEN, 1992, p. 118).

Sendo o Direito uma estrutura unicamente normativa, Kelsen funda sua teoria na ideia da hierarquia das normas, uma vez que para ele o Direito é um sistema dinâmico de normas, ou seja, um sistema que se baseia na identificação de seus próprios elementos basilares por atos próprios de vontade de indivíduos autorizados, e não por evidência, próprio dos sistemas estáticos.

De acordo com o autor, a moral, como sistema estático de normas, pode ditar que não se deve mentir, sendo tal norma deduzida a partir de outra mais abrangente que dita que se deve ser honesto (operação intelectual de dedução); já o sistema jurídico, como sistema dinâmico de normas, pode conter normas de qualquer espécie e com qualquer conteúdo, desde que as normas sejam criadas em conformidade com o que foi definido em uma norma fundamental (KELSEN, 1992, p. 117-118).

A partir dessa estrutura hierarquizada do Direito, na qual se percebe que o fundamento de validade de uma norma será sempre outra norma superior, identificam-se vários graus no processo de criação do Direito, já que a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, mas sim um sistema cuja unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma e assim sucessivamente até se chegar à norma última, chamada de norma fundamental (KELSEN, 2000, p. 247).

Dessa forma, Kelsen tem duas concepções diferentes de Constituição: o lógico-jurídico e o jurídico-positivo. O sentido lógico-jurídico se refere à norma fundamental hipotética, que é pressuposta, não positivada, e serve de fundamento lógico para a validade da Constituição jurídico-positiva. O sentido jurídico-positivo, por sua vez, se refere à norma positiva superior, o conjunto de normas que regulam a edição de outras normas jurídicas (Constituição material) e ao conjunto de normas que, apesar de não tratar propriamente da elaboração de outras normas, merecem um modo especial de alteração (Constituição formal). A utilização de ambas as concepções se justifica uma vez que Kelsen não admite interferência no sistema do Direito de valores morais, políticos, religiosos, culturais e dentre outros, pois para ele o Direito se funda em norma pura.

Porém, Kelsen não ignora por completo o fenômeno social, ele o admite como condição de validade das normas (não como fundamento), sendo a eficácia da ordem jurídica total, uma vez que a validade de uma ordem jurídica depende de sua concordância com a realidade. Assim, por se basear o Direito em norma, a justificação da validade da Constituição deve ser a norma fundamental hipotética pressuposta, porque sem essa pressuposição de validade todas as normas do sistema não fariam sentido, já que “nenhum ato humano poderia ser interpretado como um ato jurídico e, especialmente, como um ato criador de Direito” (KELSEN, 1992, p. 121).

Bobbio, por sua vez, afirma que a norma fundamental hipotética pressuposta é para o sistema jurídico o que os postulados são para os sistemas científicos: proposições primitivas de que se deduzem as outras, mas que por sua vez não são dedutíveis, sendo postos por convenção ou por suposta evidência. O conteúdo da norma fundamental, portanto, seria algo como “o poder constituinte é autorizado a emanar normas obrigatórias para toda a coletividade ou a coletividade é obrigada a obedecer às normas emanadas do poder constituinte” (BOBBIO, 2008, p. 208).

Cabe ressaltar que Kelsen defende que a Constituição é “puro dever ser”, e não somente “ser” como defendido por Lassale, pois “se a validade do Direito é identificada com algum fato natural, torna-se impossível compreender o sentido específico em que o Direito é dirigido à realidade e, assim, se sobrepõe à realidade” (KELSEN, 1992, p. 125). Dessa forma o Direito deve-se fundar na norma hipotética fundamental que serve de base a Constituição e esta, por sua vez, será à base de todo o ordenamento jurídico.


6 – A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A separação dos Poderes se baseia na independência e na harmonia entre os seus órgãos. Isso significa que, não há entre eles qualquer relação de subordinação no que tange ao exercício de suas funções. Neste sentido a Constituição instituiu um mecanismo de controle mútuo, no qual um Poder tem, dentre as suas atribuições, o direito de fiscalizar e corrigir eventuais abusos dos demais, visando o estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos.

No Brasil, esse sistema de controle mútuo é revelado, por exemplo pela competência que têm os órgãos do Judiciário de controlar a constitucionalidade e a legalidade das leis e dos atos do Executivo, além de ter o poder de iniciar o processo legislativo em determinadas matérias. Fenômeno análogo ocorre na atuação atípica dos outros Poderes.

Conforme dito por Dirley da Cunha Júnior (2017, p.152) “o que caracteriza a independência entre os órgãos do Poder político não é a exclusividade no exercício das funções que lhes são atribuídas, mas, sim, a predominância no seu desempenho”. Isso significa que as funções legislativa, executiva e judiciária são exercidas prioritariamente pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, respectivamente, contudo não são exercidas exclusivamente por eles, visto que todos os três Poderes possuem as três funções, porém exerce apenas uma de forma típica, sendo o exercício das outras, atípica.

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Diante desse contexto, o Judiciário assume um caráter altamente político. A ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade fazem desse Poder um legislador negativo (no sentido de negar a existência de uma lei), em contrapartida a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção o tornam um legislador ativo (pois na falta da lei, o Judiciário é que regulamenta a matéria dentro do caso concreto).

Ante a inércia ou ineficácia dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento de suas funções típicas, a sociedade percebeu que as suas demandas podem ser resolvidas pelo Judiciário, passando, assim, a ocorrer uma politização da atividade do Juiz.

Nas palavras de Cappelletti, citado por Junior (2016):

Não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma ‘neutra’. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa. E a experiência ensina que tal abertura sempre ou quase sempre está presente.

 Essa politização do judiciário é fruto de sua independência aliado ao princípio do direito de ação previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 que aduz que, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, a politização do Juiz deve ser entendida como um aumento em suas possibilidades de escolha e não como forma de negar a legalidade de qualquer lei que seja, principalmente a Constituição.

Nesse sentido, Celso Campilongo, citado por Junior (2016) aduz que:

A função política do magistrado resulta desse paradoxo: o juiz deve, necessariamente, decidir e fundamentar sua decisão em conformidade com o direito vigente; mas deve, igualmente, interpretar, construir, formular novas regras, acomodar a legislação em face das influências do sistema político. Nesse sentido, sem romper com a clausura operativa do sistema (imparcialidade, legalismo e papel constitucional preciso) a magistratura e o sistema jurídico são cognitivamente abertos ao sistema político. Politização da magistratura, nesses precisos termos, é algo inevitável.

Com a crescente politização da justiça o Judiciário tem, cada vez mais, suprido a falta dos demais Poderes e essa nova perspectiva além de diminuir as atribuições do Legislativo e do Executivo, acaba por sobrecarregar o Judiciário o que pode, vir ferir a autonomia dos Poderes, vindo a ser prejudicial até mesmo a democracia, visto que esta se baseia no poder exercido pelo povo que o exerce através de seus representantes eleitos.

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Sobre os autores
René Vial

Possui graduação em Direito (2003), mestrado em Direito Internacional e Comunitário (2006) e especialização em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016). Atualmente é doutorando em Direito Privado, professor de graduação da Faculdade Kennedy de Minas Gerais e de pós-graduação do Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. Tem experiência na área jurídica, atuando principalmente nos seguintes temas: direito civil, direito constitucional, direitos humanos e direito internacional.

Igor Henrique Cardoso

Igor Henrique Cardoso, principal autor dessa obra, é bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIAL, René ; CARDOSO, Igor Henrique. A possibilidade de alteração das cláusulas pétreas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5561, 22 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65755. Acesso em: 26 abr. 2024.

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