O abuso de direito sob o viés civil-constitucional

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Estudo da teoria do abuso de direito sob o viés civil e constitucional, passando por uma breve análise de sua evolução histórica, natureza jurídica e elementos caracterizadores de forma que se possa compreender o alcance normativo do termo.

1 - Introdução

Em tempos modernos, torna-se imprescindível reconhecer a existência de um fenômeno de constitucionalização, que vem se solidificando no ordenamento jurídico pátrio. A cada dia mais, a eficácia das normas constitucionais irradia seus efeitos para as relações de direito privado, estabelecendo um limite à autonomia da vontade e consequentemente ao exercício dos direitos subjetivos.

Observa-se que, nos dias atuais, há uma preocupação em valorizar o social, de trazer para o ordenamento jurídico, fundamentos éticos, que possibilitem um exercício mais equilibrado dos próprios direitos individuais. Neste contexto, pode-se citar a inserção na Constituição de 1988, do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.

Ainda neste paradigma, estabelece a Carta Cidadã, que a construção de uma sociedade livre, justa e solidária constituem um dos objetivos fundamentais da sociedade.

Em consonância, com a nova ordem constitucional, surgiu o Código Civil de 2002 (CC/02), abalizado nos princípios da operabilidade, eticidade e sociabilidade. Tendo como desdobramento os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.

Foi o atual Código Civil que trouxe a positivação da chamada teoria do abuso de direito de forma expressa em seu artigo 187 nos seguintes termos: "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002).

Objetivou o legislador infraconstitucional, ao positivar a teoria do abuso de direito, criar mecanismos para impedir o exercício abusivo dos direitos subjetivos, estabelecendo valores éticos a serem observados como fator de limitação. No entanto, o real entendimento do que seja caracterizador do abuso de direito estará a depender da definição dos significados pelo aplicador da norma.

A despeito da positivação da citada teoria, surgem indagações no sentido de definir qual seria a sua natureza jurídica. Seria o abuso de direito uma espécie de ato ilícito ou seria uma categoria autônoma? Seria possível a existência de uma espécie de ato ilícito que prescinda do elemento subjetivo, ou seja, dolo e culpa, caracterizando-se, pois, de forma objetiva?

Para se ter uma ideia da dimensão da discussão, há autores que negam a própria existência de um abuso de direito, pois, argumentam que o direito cessa onde o abuso começa, sendo que um mesmo ato não pode ser ao mesmo tempo conforme e contrário ao direito.

O objetivo deste trabalho é, justamente, analisar o instituto do abuso de direito sob o prisma do direito civil constitucional, estabelecendo a sua natureza jurídica, bem como, fornecer elementos, doutrinários e jurisprudenciais, para que se possa compreender o alcance do instituto.

Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais, o que possibilitou a realização de um trabalho subdividido nos seguintes capítulos: introdução, desenvolvimento (evolução histórica do abuso de direito, principais teorias sobre o abuso de direito, alcance do termo abuso de direito) e conclusão.


2 - Desenvolvimento

2.1 - Evolução Histórica Do Abuso De Direito

É possível dizer que a teoria do abuso de direito desenvolveu-se no final do século XIX e início do século XX, “com a recuperação dos atos emulativos - aemulatio -desde sua sede no direito medieval e seu desenvolvimento pela jurisprudência francesa desta época” (MIRAGEM, 2007, p.75).

Tem-se como um marco inicial o célebre caso de Clement Bayard, que fora julgado por um tribunal francês. Neste caso, aconteceu que “o proprietário de um imóvel, sem razão justificável, construiu altas hastes pontiagudas para prejudicar o voo de aeronaves no terreno vizinho. Cuidava-se de nítido abuso de direito de propriedade” (GAGLIANO, 2014, p. 498). Este julgado foi um grande marco na evolução do instituto, principalmente diante da prevalência do absolutismo dos direitos subjetivos.

À época, a questão central girava em torno do ato emulativo, aquele que é animado apenas com a intenção de lesar terceiros, não trazendo benefícios úteis ao seu praticante. Percebe-se que inicialmente, a teoria era puramente subjetiva, pois, a intenção de lesar é que a configurava, ainda que não ocorresse o dano.

Com o passar dos anos ficou evidente que o abuso de direito arreigado apenas em critérios subjetivos, intenção de prejudicar, seria insuficiente para solucionar as constantes demandas sociais, tendo-se em vista, principalmente, a dificuldade de se provar fatores que demandam a persecução da vontade.

A partir da tese do francês Josserand, que destaca a importância de se fixar um critério para identificação do ato abusivo, vai-se aos poucos abandonando o critério subjetivo, para inserir, como parâmetro caracterizador do ato abusivo, a violação da finalidade da norma, caminhando, assim, para adoção de critérios unicamente objetivos.

Entre nós, o Código Civil Brasileiro de 1916 (CC/16) não previa expressamente a teoria do abuso de direito, no entanto, é defensável a presença da citada teoria em uma interpretação a contrario sensu do inciso I do artigo 160 que assim dizia: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido” (BRASIL, 1916). Assim, seria possível afirmar que o exercício anormal de um direito configuraria ato ilícito.

Além do dispositivo citado, existiam outros dos quais, também, era possível extrair a ideia de vedação ao abuso de direito. Como exemplo, cita-se o artigo 526 que trazia a vedação ao proprietário de se opor a trabalhos realizados a uma altura ou profundidade da qual não lhe seria útil.

Observa-se que o CC/16, na possível interpretação dos artigos citados, já vinculava o abuso de direito à ideia de ato ilícito. Ademais, a doutrina fazia uma interpretação puramente subjetiva do instituto enquanto os tribunais o aplicavam de forma tímida dada a ausência de positivação da teoria do abuso de direito, como observa Miragem[1] ao analisar pensamento crítico de Pontes de Miranda.

No que se refere à objetivação do abuso de direito, a chegada do Código de Defesa do Consumidor (CDC) muito contribuiu, pois, trouxe o abuso prescindido do elemento dolo e culpa, como se verifica da previsão das cláusulas abusivas (artigo 51) e práticas abusivas (artigo 39). Não se nega que a objetivação do abuso de direito no caso do CDC visou a maior proteção do consumidor face sua vulnerabilidade na relação jurídica.

A positivação expressa do abuso de direito veio logo em seguida com o artigo 187 do CC/02, nos seguintes termos: "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (BRASIL, 2002).

Nota-se que o legislador vinculou a figura do abuso de direito à do ato ilícito, o que se constata facilmente pela localização do dispositivo e por sua redação ao dizer que “também comete ato ilícito...”, ou seja, tratou ambos como sendo ato ilícito. Esta situação, no entanto, gerou alguns descontentamentos, vez que, o ato ilícito, em sua essência, não prescinde do elemento culpa, tendo este como indispensável para sua caracterização.

Na visão atual, o abuso de direito, em consonância com a nova ordem constitucional e seus paradigmas, deve ser analisado de forma objetiva, dispensando a análise do dolo ou da culpa para se configurar; como, aliás, se verifica do voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (2014) em recente julgamento do REsp. 1.341.135-SP pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:

Note-se que, enquanto o artigo 186 do CC⁄02, ao enunciar o conceito clássico de ato ilícito, fala em dolo e em culpa, exigindo a presença de um ato voluntário, negligência ou imprudência, por sua vez o enunciado do artigo 187 limita-se a estatuir que também comete ato ilícito quem se excede manifestamente no exercício do seu direito. A exigência legal é apenas a caracterização de um excesso manifesto no exercício de um direito, não havendo necessidade que este ato seja necessariamente doloso, malicioso ou praticado com má-fé. Outro ponto fundamental é que a regra do art. 187 do CC⁄02 faz uma ligação com os princípios fundamentais do Direito Privado, ou seja, quem excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Assim sendo, diante da evolução do instituto do abuso de direito, que, inicialmente, como se verificou, era puramente subjetivo, há de se questionar se seu tratamento como espécie de ato ilícito não seria um retrocesso, pois é patente sua autonomia uma vez que se difere do ato ilícito por ser objetivo e, sobretudo, por possuir cláusulas gerais valorativas, o que configuraria uma antijuridicidade material e não apenas formal.

2.2 - Principais Teorias Sobre O Abuso De Direito

É possível constatar algumas teorias que se destacam quando da análise do instituto do abuso de direito, dentre elas a subjetivista, a negativista e a objetivista, as quais, de forma sucinta, passa-se a analisar.

2.2.1 - Teoria Subjetivista

A primeira teoria seria a que mais se aproxima do conceito de ato emulativo, pois alicerça suas bases na intenção de prejudicar, sem interesse concreto para o titular do direito. Consequentemente seriam três as características do abuso para esta teoria: “exercício regular de um direito, intenção de prejudicar e inexistência de interesse” (FIUZA, 2014, p.298).

Há quem defenda a existência de resquícios desta teoria no artigo 1.228 do Código Civil de 2002 quando dita em seu parágrafo segundo que ”são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (BRASIL, 2002).

Apesar da contribuição dada por esta teoria, é patente que uma análise puramente subjetiva seria insuficiente para solucionar os problemas sociais dos dias atuais. Ademais, a aplicação desta teoria torna-se inviável à medida que dificulta a prova da ocorrência do ato abusivo, o que poderia contribuir para a sua ineficácia.

2.2.2 - Teoria Negativista

Esta teoria tem como principal defensor Planiol e tem seu fundamento básico na contrariedade lógica existente entre os termos “abuso” e “direito”, pois, seus defensores argumentam que seria contraditório admitir a existência do abuso de direito, tendo-se em vista que o direito existiria apenas até o momento que não se constituiria em abuso.

Assim, questiona-se a impropriedade técnica do termo utilizado e, consequentemente, nega-se a existência do abuso de direito. Adverte Oliveira (2013) ao citar entendimento de Planiol apud Vilas Bôas que não se pode ser enganado pelas palavras, pois, “o direito cessa onde o abuso começa, e não pode haver ‘uso abusivo’ de um direito, qualquer que seja, pela razão irrefutável de que um só e único ato não pode ser ao mesmo tempo conforme o direito e contrário ao direito”.

Apesar da plausibilidade dos argumentos utilizados, a teoria negativista não prevalece em dias atuais, pois, é quase que unânime, na doutrina e na jurisprudência, o reconhecimento do abuso de direito.

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2.2.3 - Teoria Objetivista

A essência da teoria objetiva é a ausência do elemento subjetivo para configurar o ato abusivo, assim, torna-se irrelevante ter o agente querido ou não praticar o ato, ou ainda, se foi negligente, imprudente ou imperito. Em outras palavras, não se parte de uma análise interior, mas sim, da exteriorização da conduta.

Nesta perspectiva, basta que o ato exceda os limites impostos pelos fins econômicos ou sociais, pela boa-fé ou pelos bons costumes que estará caracterizado o abuso.

Na tentativa de diferenciar a teoria subjetivista da teoria objetivista MARTINS, citado por Fiuza (2014, p. 339-340), diz que:

A teoria subjetiva inverte os princípios em que se funda o método científico de interpretação: ao invés de partir do ato exterior para qualificar a intenção e a vontade do agente, parte da intenção e da vontade para a qualificação do ato exterior. O ato, ordinariamente, é a extrinsecação da vontade. Ato e vontade constituem, por conseguinte, um só e mesmo fato suscetível de duas interpretações diversas. O método subjetivo, partindo da investigação da vontade para qualificar o exterior, impossibilita a prova do abuso, transformando-o num conceito puramente psicológico. O método objetivo, ao contrário, faz decorrer a intenção do próprio ato danoso, das próprias circunstancias em que foi praticado, isto é, de elementos materiais, de dados concretos, suscetíveis de uma demonstração imediata.

Como não poderia deixar de ser, a teoria objetiva é a mais aceita pela doutrina e jurisprudência, neste sentido, já se manifestou o Conselho da Justiça Federal (2002) na I Jornada de Direito Civil que “a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

2.3 - Alcance Do Termo Abuso De Direito

Quando da tentativa de definir o termo “abuso de direito” percebe-se a inserção pelo legislador de cláusulas gerais que deverão ser preenchidas caso a caso pelo interprete no momento da análise do caso concreto, exigindo-se, assim, uma postura ativa a fim de atribuir concretude aos termos.

Não é à toa que o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo de Tarso Sanseverino (2014) afirmou que “o Código Civil de 2002 tem sido elogiado e criticado como sendo 'o Código dos Juízes', por estar repleto de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados”.

É evidente que o legislador ao utilizar cláusulas gerais, com modelos de linguagem mais abstratos, objetivou alcançar um maior número de casos, atribuindo versatilidade ao julgador durante sua análise, o que não significa que o magistrado estará dispensado de fundamentar suas decisões, pois a interpretação deverá ser feita com amparo nas técnicas interpretativas e nos princípios e valores norteadores da legislação civil e sua matriz.

Assim, passa-se à análise dos requisitos necessários para se caracterizar o abuso de direito nos termos do que dispõe o artigo 187 do Código Civil brasileiro.

2.3.1 - Do Exercício De Um Direito

Para que seja possível falar em abuso de direito, é necessário que exista realmente um direito. É preciso ter cuidado para não confundir o ato ilícito em sentido estrito (artigo 186), no qual o ato é desde sua origem contrário à ordem jurídica, com o abuso de direito (artigo 187) cujo ato, pelo menos inicialmente, tem roupagem de legalidade e conformidade com o direito.

Caso o indivíduo pratique um ato originariamente contrário ao direito, como é o caso, por exemplo, de um condutor avançar o sinal de trânsito, dirigir em alta velocidade ou até mesmo bater o seu veículo, não se estará diante de um excesso no exercício de um direito, visto não se ter o direito de avançar sinais, dirigir em alta velocidade ou causar acidentes.

No entanto, caso o condutor esteja dirigindo em baixa velocidade, dentro do permitido pela lei, mas causando grande congestionamento, apesar de estar aparentemente correto em sua conduta, violou o fim social da norma, que seria permitir uma boa fruição do tráfego. Assim, por “violação da boa-fé”, segundo Fiuza (2014, p. 297) se estaria diante de um abuso de direito.

Maria Helena Diniz (2014, p.616), com o brilhantismo que lhe é peculiar, cita o exemplo de um proprietário que constrói uma chaminé falsa em seu terreno objetivando retirar a luz solar de seu vizinho, sendo que, a construção em si, não encontra qualquer óbice legal ou administrativa, estando respaldada no direito de propriedade. No caso citado, há de se observar que se está diante de um abuso, pois, inicialmente a conduta de construir do proprietário é legítima, no entanto, foi maculada pela má-fé.

Assim, fica claro que quando se fala em exercício abusivo de um direito, o agente deve estar investido da titularidade de um direito subjetivo. Configurando-se o abuso, quando violado os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes como se verá.

2.3.2 - Dos Limites Impostos Pelo Fim Econômico Ou Social

Como já mencionado, todo direito possui uma finalidade que transcende a própria órbita de seu titular, assim, estando o indivíduo no exercício de um direito e, sendo este exercício excedido a ponto de violar a finalidade econômica e social do mesmo, ter-se-á a figura do abuso de direito.

Falar em finalidade econômica e social é, pois, transcender a mera positivação do direito, é analisar o direito de um ângulo superior, recorrendo-se à filosofia a fim de desvendar a razão de existência de determinado direito. Assim, por exemplo, quando o proprietário de um imóvel o utiliza de forma a prejudicar terceiros, estará cometendo abuso de direito por violação da finalidade social do direito de propriedade.

A respeito do direito de propriedade, a própria Constituição de 1988 menciona, em diversas passagens, que a propriedade deverá atender a sua função social, e a partir desta previsão, tem-se, por exemplo, os desdobramentos dos direitos de vizinhança que garantem a preservação da saúde, da segurança e do sossego das pessoas.

Cabe destacar que, a necessidade de se cumprir a finalidade econômica e social do direito não se restringe aos direitos reais, estando, também, presente nos direitos obrigacionais, uma vez que deixou o legislador de “conceber o contrato apenas como um instrumento de manifestação privada de vontade, para tomá-lo como elemento socialmente agregador” (GAGLIANO, 2011, p. 89).

2.3.3 - Dos Limites Impostos Pela Boa-Fé

A boa-fé dentro de um contexto atual se refere à uma conduta proba, honesta e não contraditória, sendo a própria efetivação do princípio da eticidade, um dos valores norteadores do atual Código Civil. Em síntese, é o comportamento adequado que gera confiança na outra parte da relação jurídica.

No que tange à diferença entre boa-fé objetiva e a subjetiva, tem-se que a última está ligada à intenção do agente em quanto a primeira se refere a um padrão de comportamento que reflete a ética social, o dever de lealdade que se espera dos atores sociais, sendo tratada como princípio geral do direito.

Dentre as diversas funções da boa-fé objetiva passa-se a analisar a sua aplicação como limite ao exercício de direitos.

2.3.3.1 - Atos Abusivos

Como desdobramento do princípio da boa-fé objetiva aparecem as figuras da proibição do venire contra factum proprium, da suppressio, da surrectio e, ainda a figura do tu quoque. Todas essas, objetivando amparar o exercício equilibrado de um direito, repelindo os atos que atentem contra a boa-fé objetiva.

A figura do venire contra factum proprium, em simples termos, é a vedação de comportamentos contraditórios, e busca, essencialmente, a coerência de comportamentos. Encontra-se exemplo desta figura no artigo 175 do Código Civil, no qual tem-se que caso a parte execute de forma voluntária negócio anulável terá extinta as ações e exceções das quais dispusesse.

Assim, verifica-se que, a parte que pratica um ato, gerando confiança na outra que de determinada forma se comportará, não poderá alterar seu comportamento causando frustração da confiança depositada, pois, estaria a cometer abuso de direito com consequente violação da boa-fé objetiva, visto não ser esta uma conduta reta e proba, a qual se espera de todas as partes na realização e execução dos negócios jurídicos de modo geral.

Neste sentido, o entendimento do Conselho da Justiça Federal (2006) que na IV Jornada de Direito Civil, por meio do enunciado 362, esclareceu que “a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”.

Em julgamento do Recurso Especial n° 1.040.606, o Superior Tribunal de Justiça (2012) reconheceu a aplicação da proibição do venire contra factum proprium sob a égide do código civil de 1916, ainda que neste preponderava o paradigma do Estado liberal e individualista.  No caso, a recorrente pretendia o não reconhecimento de distrato realizado verbalmente, tendo-se em vista a existência de contrato escrito que pretendia ver aplicado.

Reconhecendo a boa-fé como princípio geral, apesar de não expresso no CC/16, entendeu a Egrégia Quarta Turma que “não é dado à recorrente se valer da própria torpeza para, em atitude de patente abuso de direito, alegar nulidade na avença”. O caso citado ilustra a tendência e necessidade de se valorizar a conduta proba das partes nas relações jurídicas.

Figura bem assemelhada ao venire contra factum proprium é o tu quoque que também possui suas bases na vedação de comportamentos contraditórios e afronta à boa-fé objetiva. Sua aplicação se dá “...em situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, surpreende uma das partes da relação negocial, colocando-a em situação de injusta desvantagem” (GAGLIANO, 2011, p. 122).

Como exemplo do tu quoque pode-se citar o artigo 476 do CC/02 que faz a previsão da exceção de contrato não cumprido, pois, em prestígio à boa-fé, veda que uma das partes da relação contratual exija o implemento da outra, sem antes ter cumprido a sua obrigação.

Sendo consideradas como lados de uma mesma moeda, tem-se, também, as figuras do suppressio e surrectio como desdobramento da boa-fé objetiva. O primeiro instituto relaciona-se à perda da eficácia de um direito dado o seu não exercício, sendo o segundo, exatamente o oposto, ou seja, a aquisição de um direito dado à inércia de seu titular.

Para Neto (2011, p.16), pode-se entender a figura do supressio “como o impedimento da possibilidade de se exigir um direito por uma das partes do negócio jurídico”, sendo a surrectio “a criação de um direito, para a parte adversa, decorrente da mesma conduta reiterada, e que gerou a expectativa que seria mantida inalterada”. Assim, pretende-se proteger as partes da relação mediante o não rompimento abrupto do quadro fático já consolidado.

Verifica-se exemplo das figuras acima no recente julgado do recurso de apelação n° 1.0081.12.001218-2/001 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (2014), no qual os apelantes pretendiam a reintegração da posse de determinado imóvel alegando que a situação da Ocupante do imóvel era precária decorrente de ato de mera permissão. No caso, a décima Câmara Cível decidiu que, o transcurso de mais de vinte anos, somado à inércia do primeiro proprietário do imóvel e a posterior falta de oposição à posse por parte dos herdeiros, proíbe a pretensão de desocupar a apelada da parte do imóvel em que reside ao passo que cria para ela um direito subjetivo de continuar na posse direta de tal bem.

Percebe-se pelos termos do acordão supracitado a clara homenagem ao princípio da boa-fé, pois, vislumbra-se a ocorrência da supressio ao se proibir a pretensão de desocupação do imóvel, ocorrendo, portanto, a perda de um direito subjetivo pelo seu não exercício, e a surrectio, uma vez que surgiu para a apelada o direito subjetivo de continuar na posse do imóvel.

2.3.4 - Dos Limites Impostos Pelos Bons Costumes

A limitação imposta pelos bons costumes reflete os valores caros a uma determinada sociedade em uma determinada época. Não se está aqui a tratar do direito consuetudinário que se refere a práticas reiteradas que geram o dever de obrigatoriedade, mas sim de uma moral social.

A violação aos bons costumes pode estar presente em qualquer área do direito civil. Assim, em uma relação contratual, se uma das partes, objetivando cobrar o que lhe é devido, alugar um carro de som e, assim, expor ao ridículo o seu devedor, estará cometendo, abuso de direito, por violação aos bons costumes.

No direito de família pode-se, também, citar como exemplo de abuso do poder familiar, “a mãe que impõe, como castigo ao filho, que este fique para o lado de fora de casa nu, ou que vá à escola vestido com roupas feminina, a fim de que não torne a mexer em seus objetos pessoais” (LUNARDE, 2008, p. 13).

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Sobre os autores
René Vial

Possui graduação em Direito (2003), mestrado em Direito Internacional e Comunitário (2006) e especialização em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016). Atualmente é doutorando em Direito Privado, professor de graduação da Faculdade Kennedy de Minas Gerais e de pós-graduação do Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. Tem experiência na área jurídica, atuando principalmente nos seguintes temas: direito civil, direito constitucional, direitos humanos e direito internacional.

Edvaldo Pereira dos Santos

Edvaldo Pereira dos Santos, principal autor dessa obra, é bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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