Tema bastante instigante, a capitalização de juros no Brasil tem sido objeto de acaloradas discussões, sendo o histórico de sua aplicação em nosso ordenamento jurídico um enredo digno de uma novela de televisão. E, justamente para ser possível entender a atual situação acerca do tema, torna-se necessária a análise de seu histórico.
Preliminarmente, é importante a conceituação de capitalização de juros, o que é também conhecido pelo nome de anatocismo. Eduardo de Oliveira Gouveia define assim este instituto:
Anatocismo, capitalização, juros compostos ou juros sobre juros representam invólucros linguísticos do mesmo fenômeno jurídico-normativo, que ocorre tendo como pano de fundo o contrato de mútuo vencido e não pago, vindo, assim, a incidirem as rubricas atinentes ao inadimplemento relativo aos juros de mora.
Assim, o anatocismo ocorre sempre que os juros vencidos sejam incorporados ao capital dimensionando a base de cálculo para vindouros encargos moratórios, criando, em linguagem coloquial, fidedigna ‘bola de neve’ ou ‘efeito cascata’.[1]
Desta forma, juros capitalizados pressupõem a cobrança de juros sobre o juro vencido e não pago, que se incorporará ao capital desde o dia do vencimento.
O Código Comercial não admitia a capitalização, em seu artigo 253, com exceção da anual em conta corrente:
Art. 253 - É proibido contar juros de juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano. Depois que em juízo se intenta ação contra o devedor, não pode ter lugar a acumulação de capital e juros.
A partir de 1916 com a promulgação do Código Civil, a capitalização de juros entre as partes contratantes foi permitida. Isto se dava pelo fato deste dispositivo legal ser de característica individualista e patrimonialista, além de encarar o princípio do pacta sunt servanda (acordos devem ser mantidos) de forma bastante literal.
Esta liberdade de pactuação dos juros se dá de forma expressa no art. 1.262 do referido código legal:
Art. 1.262. É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis.
Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem capitalização.[2]
O caráter liberal da capitalização de juros durou até 1933, com o advento do Decreto 22.626/1933, também conhecido como Lei de Usura, que visava dar cabo a todas as práticas abusivas ocorridas nas cobranças de juros, admitindo, apenas em caráter extraordinário, a situação já descrita no Código Comercial, em seu art. 253.
A vedação que coibia os excessos da capitalização de juros vinha descrita no art. 4º da lei acima descrita:
Art. 4º. É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.
O STF à época deu a este artigo uma interpretação ainda mais restritiva, por meio da Súmula nº 121: É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.[3]
Entretanto, as questões envolvendo a legalidade da capitalização de juros no ordenamento jurídico brasileiro nunca foi pacífica, gerando muitas controvérsias. Estas vieram a se intensificar com o advento da Súmula nº 596 da Suprema Corte:
As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional.[4]
Esta súmula, ao determinar que a Lei nº 4.595/1964, conhecida como a Lei de reforma Bancária, derrogou a Lei da Usura no tocante ao limite da taxa de juros para instituições financeiras, gerou a interpretação de que a proibição de capitalização de juros descrita no artigo 4º da Lei de Usura não se aplicaria aos empréstimos concedidos por instituições financeiras, liberando-as, portanto, a proceder com esta modalidade de cobrança.
Todavia, a Lei de Reforma Bancária não derrogou a Lei de Usura nas questões relativas à capitalização de juros, ao determinar que esta só seria possível por meio de uma lei especial, como as que disciplinam o crédito rural, crédito industrial e crédito comercial, ainda assim tal condição teria que estar expressamente pactuada.
Com base na situação acima descrita, o STJ vinha tomando os seguintes posicionamentos:
a) REsp 192.985/RS STJ: salvo expressa previsão em lei específica, é vedada a instituições financeiras a capitalização de juros.
b) REsp 182.057/PR STJ: somente nas hipóteses em que expressamente autorizada por lei especiais, a capitalização de juros se mostra admissível. Nos demais casos é vedada, mesmo quando pactuada.
c) REsp 175.868/RS STJ: em regra, ao mútuo bancário não se aplica a limitação dos juros em 12% ao ano, estabelecida na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33, art.1º). No tocante à capitalização dos juros, permanece em vigor a vedação contida na Lei de Usura, exceto nos casos excepcionados em lei, o que não ocorre com o mútuo bancário comum.
d) REsp 189.426/RS STJ: aplicação da Súmula 596/STF quanto ao limite de juros remuneratórios e da Súmula 121/STF tocante à capitalização.
Esta situação começou a ser alterada com a entrada em vigor da Súmula nº 93 do STJ: A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros.[5]
Além dessa súmula, duas medidas provisórias trataram do assunto. A primeira é a MP nº 2.160-25/2001, que, ao regular a cédula de crédito bancário, liberou a capitalização de juros apenas nas situações que dela tratam, conforme o disposto em seu art. 1º:
Art. 1º: A Cédula de Crédito Bancário é título de crédito emitido, por pessoa física ou jurídica, em favor de instituição financeira ou de entidade a esta equiparada, representando promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade.[6]
A segunda é a MP n° 2.170-36/2001, que, de forma mais radical e incisiva, dispõe em seu art. 5º que:
Art. 5º: Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.[7]
Estas medidas provisórias geraram muita polêmica. Deltan Dallagnol, procurador da república e conhecido por coordenar a força-tarefa da operação Lava-Jato, manifestou-se de forma incisiva sobre o tema:
Aliás, para tutelar os interesses dos banqueiros, o governo não se importou nem com os demais poderes, interferindo diretamente na competência do Poder Legislativo, com a edição de medida provisória sobre a matéria, e ainda desrespeitando e afrontando o Poder Judiciário, que, com o repúdio categórico ao anatocismo, tentou fomentar em seus julgamentos o resgate do equilíbrio na relação cliente/banco, já tão prejudicada com as abusivas taxas de juros praticadas, e que fica agora perdida com a imposição, pelo governo, da extorsiva cobrança de juros sobre juros.[8]
Além disso, há quem questione seriamente a inconstitucionalidade da MP n° 2.170-36/2001. O art. 192 da Constituição Federal tem a seguinte disposição:
Art. 192: O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.[9]
O art. 62, §1º, III, da Constituição Federal tem a seguinte disposição:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
(...)
§ 1º: É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
(...)
III - reservada a lei complementar;[10]
Diante desses dois artigos, com as devidas adaptações ao caso em tela, conclui-se, de forma clara e precisa, que a capitalização de juros pode apenas ser regulada por leis complementares, de forma medidas provisórias, como as aqui descritas, regulando tais tipos de matéria são completamente inconstitucionais, que se equipararem a leis ordinárias.
Diante desta contradição flagrante, o STJ tem adotado o seguinte posicionamento acerca do tema:
CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. AÇÕES REVISIONAL E DE BUSCA E APREENSÃO CONVERTIDA EM DEPÓSITO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS. JUROS COMPOSTOS. DECRETO 22.626/1993 MEDIDA PROVISÓRIA 2.170-36/2001. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. MORA. CARACTERIZAÇÃO.
1. A capitalização de juros vedada pelo Decreto 22.626/1993 (Lei de Usura) em intervalo inferior a um ano e permitida pela Medida Provisória 2.170-36/2001, desde que expressamente pactuada, tem por pressuposto a circunstância de os juros devidos e já vencidos serem, periodicamente, incorporados ao valor principal. Os juros não pagos são incorporados ao capital e sobre eles passam a incidir novos juros.
2. Por outro lado, há os conceitos abstratos, de matemática financeira, de "taxa de juros simples" e "taxa de juros compostos", métodos usados na formação da taxa de juros contratada, prévios ao início do cumprimento do contrato. A mera circunstância de estar pactuada taxa efetiva e taxa nominal de juros não implica capitalização de juros, mas apenas processo de formação da taxa de juros pelo método composto, o que não é proibido pelo Decreto 22.626/19933.
3. Teses para os efeitos do art. 543-C do CPC:
- "É permitida a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano em contratos celebrados após 31.3.2000, data da publicação da Medida Provisória n. 1.963-17/2000 (em vigor como MP 2.170-36/2001), desde que expressamente pactuada."
- "A capitalização dos juros em periodicidade inferior à anual deve vir pactuada de forma expressa e clara. A previsão no contrato bancário de taxa de juros anual superior ao duodécuplo da mensal é suficiente para permitir a cobrança da taxa efetiva anual contratada".
4. Segundo o entendimento pacificado na 2ª Seção, a comissão de permanência não pode ser cumulada com quaisquer outros encargos remuneratórios ou moratórios.
5. É lícita a cobrança dos encargos da mora quando caracterizado o estado de inadimplência, que decorre da falta de demonstração da abusividade das cláusulas contratuais questionadas.
6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.[11]
Com isso, a capitalização de juros passou a ser proibida em contratos celebrados antes de 31 de março de 2000, sendo admitidos, desde que expressamente pactuado em contrato, após essa data.
Entretanto, o STF adotou o seguinte posicionamento:
CONSTITUCIONAL. ART. 5º DA MP 2.170/01. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS COM PERIODICIDADE INFERIOR A UM ANO. REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA EDIÇÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA. SINDICABILIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO. ESCRUTÍNIO ESTRITO. AUSÊNCIA, NO CASO, DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA NEGÁ-LOS. RECURSO PROVIDO.
1. A jurisprudência da Suprema Corte está consolidada no sentido de que, conquanto os pressupostos para a edição de medidas provisórias se exponham ao controle judicial, o escrutínio a ser feito neste particular tem domínio estrito, justificando-se a invalidação da iniciativa presidencial apenas quando atestada a inexistência cabal de relevância e de urgência.
2. Não se pode negar que o tema tratado pelo art. 5º da MP 2.170/01 é relevante, porquanto o tratamento normativo dos juros é matéria extremamente sensível para a estruturação do sistema bancário, e, consequentemente, para assegurar estabilidade à dinâmica da vida econômica do país.
3. Por outro lado, a urgência para a edição do ato também não pode ser rechaçada, ainda mais em se considerando que, para tal, seria indispensável fazer juízo sobre a realidade econômica existente à época, ou seja, há quinze anos passados.
4. Recurso extraordinário provido.[12]
Contudo, a despeito da decisão acima ter acatado a tese de que o art. 5º da MP nº 2.170/2001 não é inconstitucional por ausência de urgência, ela não atingiu o mérito da questão, que é a inconstitucionalidade da medida provisória aqui descrita.
Esta questão está sendo tratada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2316-1, que ainda está para ser julgada no STF.
Por tudo o que foi exposto, é possível perceber que a questão da constitucionalidade ou não da capitalização dos juros no Brasil não está pacificada, embora encontre-se muito perto de uma solução definitiva, com o julgamento da ADIn nº 2316-1.
O Art. 170 da Constituição Federal tem a seguinte disposição:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.[13]
Com base nisso, o julgamento desta ADIn, permitindo a capitalização de juros no país, seria um total e completo desastre, pois se estaria institucionalizando a agiotagem, colocando em xeque a função social dos contratos e o equilíbrio contratual, duramente conquistados na Constituição Federal e manifestas no Código de Defesa do Consumidor.
Cabe, portanto, à sociedade, ficar vigilante e cobrar dos ministros do Supremo Tribunal Federal a pacificação de uma vez por todas dessa questão, de modo que a capitalização de juros seja para sempre banida do nosso ordenamento jurídico.
Notas
[1] GOUVEIA, Eduardo de Oliveira. O anatocismo sempre esteve no ordenamento. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2018.
[2] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 3.071, DE 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 23 abr. 2018.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 121. É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 596. As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 93. As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2018.
[6] BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória nº 2.160-25, de 23 de agosto de 2001. Dispõe sobre a Cédula de Crédito Bancário e acresce dispositivo à Lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, para instituir a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível ou de direito. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2001/2160-25.htm> . Acesso em: 23 abr. 2018.
[7] BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória nº 2.170-36, de 23 de agosto de 2001. Dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2170-36.htm>. Acesso em: 23 abr. 2018.
[8] DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. Capitalização de juros no direito brasileiro, 2007. Disponível em:< http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4606>. Acesso em: 23 de ABR. 2018.
[9] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 23 abr. 2018.
[10] Op. Cit.
[11] STJ; REsp 973.827/RS; Rel. Min Luiz Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 08/08/2012.
[12] STF; Recurso Extraordinário 592.377/RS; Rel. Min Maro Aurélio Melo, 2ª Seção, julgado em 05/02/2015, publicado em 20/03/2015.
[13] OP. Cit.