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Responsabilidade jurídica do cirurgião plástico:

um panorama da questão no ordenamento brasileiro

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19/04/2005 às 00:00
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2. Responsabilidade civil do médico

A medicina, historicamente, sempre foi considerada mais próxima de uma arte que de uma ciência com aplicações técnicas. O médico, por sua vez, não era tido como um mero operador de conhecimentos científicos orientados no sentido de minorar os males que afligem a saúde humana. Ao contrário, consagrou-se por uma imagem refletora de um profissional revestido de uma certa sacralidade; detentor de um "poder" de cura bastante diferente da atual concepção que temos dos médicos modernos.

O médico, nesse passado distante mas não tão remoto, em nada se aproximava do especialista moderno que quase nunca conhece o paciente, de fato. O médico desse passado era o clínico-geral que acompanhava o indivíduo, em muitas vezes, desde o seu nascimento até a idade adulta; era o "médico da família", amigo do paciente e, não raro, até mesmo seu confessor.

Imaginar – quanto mais cogitar – a idéia de erro médico mais soava como uma "traição" a esta amizade tão sólida. Era inconcebível pensar em um paciente acusando um médico pela culpa em determinado dano decorrente de suas intervenções. Imperava a idéia de se o "Doutor" não pôde fazer, então o resultado danoso era, de fato, um desígnio de Deus.

Esse médico, porém, desapareceu. A evolução das ciências médicas e a confluência das profundas mudanças no paradigma social fizeram com que essa categoria de profissionais (assim concebida) desaparecesse, dando lugar ao médico detentor de conhecimentos específicos que, no mais das vezes, não firma uma relação mais íntima com o paciente.

O termo mais adequando para determinar o que se deu com a medicina não poderia ser outro que não "dessacralização".

Esse processo de declínio do status médico, por sua vez, causou o surgimento de um segundo campo de atuação jurídica novo: a responsabilidade civil do médico, baseada nos danos decorrentes de intervenções médicas mal-sucedidas.

A gênese da referida responsabilidade deu-se na jurisprudência francesa de meados do século XIX. Kfouri Neto (1996: 37) narra o caso fundador:

"O caso, em resumo, foi o seguinte: O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se a presentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir, notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro.. Como conseqüência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal circunstância, a família Foucault ingressa em juízo contra o médico. Nasceu daí um dos mais famosos processos submetidos à Justiça Francesa.

A sociedade dividiu-se. A Academia Nacional de Medicina da França pronunciou-se a favor do médico e, solicitadapelo tribuanal, nomeou quatro médicos, dos maiores obstetras da época. O resultado do laudo foi o seguinte: 1. nada provado que o braço fetal estivesse macerado; 2. nada provado que fosse impossível alterar a versão manual do feto; 3. não havia razões recomendáveis para a amputação de braço direito e, muito menos, do esquerdo; 4. a operação realizada pelo Dr. Helie deverá ser considerada como uma falta grave contra as regras da arte.

Apesar da imparcialidade do laudo, a Academia impugnou-o e outro é emitido por outros médicos, que chegam a conclusão contrária à primeira manifestação dos Delegados da Academia.

O tribunal de Comfront condenou o Dr. Helie ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos.

Doutrinou, então, o Procurador Dupin [que atuou no processo] – e a ensinança ainda hoje revela-se atual: "(..) do momento em que houve negligência, de um médico ou cirurgião, toda a responsabilidade de fato recai sobre ele, sem que seja necessário, em relação à responsabilidade puramente civil, procurar se houve de sua parte intenção culposa".

2.1 Direito Comparado

Aproveitando as lições de Kfouri Neto (1996: 40) faz-se interessante um panorama da questão da responsabilidade civil no direito alienígena. Como assevera o autor supra citado, o "princípio da responsabilidade aquiliana, advindo do Direito Romano, continua a ser o mesmo em todas as codificações dos povos cultos".

No direito francês, padrão para a formação de quase todas as legislações modernas, aplica-se o critério subjetivo de aferição da culpa na responsabilidade médica. Vale, entre os franceses, a teoria clássica da responsabilidade extracontratual, fundada na culpa, consagrada e difundida por juristas como Domat e Porthier.

Na mesma esteira vem o direito alemão, que adota o subjetivismo no § 823 do BGB. Kfouri Neto (1996: 41) cita o clássico Ennereceus, "o grau de diligência que se considera suficiente para pessoas sagazes e conscientes, segundo a esfera social de que se trata". Neste trecho, o jurista alemão faz menção ao quantum de diligência que é o critério aferidor da culpa do agente.

Já no direito inglês e no anglo-americano, não possuidores do princípio geral de responsabilidade civil – como o encontrado no art. 186 do Novo Código Civil – desenvolveu-se a noção de reparação do dano através de writs, ações judiciais concedidas às vítimas do delito civil (rot), destinadas ao ressarcimento.

Vale dizer que, a despeito do pioneirismo do direito francês, ao direito americano deve-se a notável construção de uma doutrina de reparação do dano médico, denominada medical malpractice. Kfouri Neto (1996: 43) fornece alguns dados estatísticas:

"Quanto à freqüência com que as vítimas recorrem à Justiça, nos EUA, os dados a seguir transcritos, apesar de antigos, são eloqüentes: (...) nos últimos anos, a situação é a seguinte: em todo o país, em cada sete médicos um está sedo ou já foi processado; em Los Angeles, sete em dez; especialidades como neurocirurgia apresentam 50% de seu quadro processados; anualmente, duas mil sentenças judiciais são favoráveis aos doentes; os médicos pagam, anualmente (em 1976 deve ser o dobro) um bilhão de dólares para se precaverem contra riscos de erros profissionais; de quatro a nove bilhões de dólares serão gatsos, em 1976, com testes, Raios X etc, na prevenção de erros. (...) Segundo Howard P. House, um conceituado procurador declarou que, nos EE.UU., ação contra médico is the bread and butter of the legal professions" [2]

No direito soviético dá-se situação bastante distoante do restante do cenário internacional. O código civil soviético confere aos tribunais o poder de decidir quanto ao ressarcimento do dão mesmo não havendo responsabilidade do médico (agente da ação ou omissão causadora do dano). O que se avalia, nesse caso, é a situação patrimonial do autor do ato e de sua vítima. Em suma: o princípio da culpa deixa de ter significação e a obrigação de indenizar é imposta ainda que não haja responsabilidade do agente do dano.

No ordenamento suíço há um Código de Obrigações que, segundo Kfouri Neto (1996: 43) dispõe em seu art. 41: "quem causar antijuridicamente um dano a outro, seja intencionalmente, seja por negligência, estará obrigado, para com ele, à indenização. Iguialmente estará obrigado à indenização quem, a um outro, de modo contrário aos bons costumes, causar, intencionalmente, um dano".

Entre os suíços, portanto, vigor a responsabilidade subjetiva.

O modelo italiano é bastante semelhante ao nosso, apresentando a culpa como fundamento da responsabilidade civil (art. 2.043 do Código Civil Italiano).

Na Argentina, bem como nos demais países latinos, vale também a responsabilidade subjetiva, onerando-se a vítima com o encargo da prova. Kfouri Neto (1996: 45) menciona Jorge Mosset Iturraspe:

"O ato médico, do qual se origina a responsabilidade civil, deve-se revestir de antijuridicidade: quando, por ação ou omissão culposas, o médico causa dano ao paciente, viola o dever jurídico que lhe é cometido, de não agravar o estado de saúde do enfermo. Surge, então, na esfera civil, a obrigação de indenizar".

E, por fim, ao analisarmos o modelo espanhol, verificamos a presença da responsabilidade civil subjetiva, assentada na culpa. O Código Civil Espanhol em seus arts. 1.101 (ilícito contratual) e 1.902 (responsabilidade aquiliana) consagra o subjetivismo.

2.2 Relação médico x paciente: obrigação de meio ou de resultado?

A doutrina é quase unânime no cuidado que tem ao tratar da natureza da relação obrigacional que se estabelece entre o médico e o paciente.

Os autores não parecem discordar em um ponto fundamental: o caráter contratual da relação. Aguiar Dias (1983: 281) afirma com segurança: "Ora, a natureza contratual da responsabilidade médica não nos parece hoje objeto de dúvida (...) acreditamos, pois, que a responsabilidade do médico é contratual, não obstante sua colocação no capítulo específico dos atos ilícitos". Modernamente, o Novo Código Civil inclui a referida responsabilidade no capítulo específico da Responsabilidade Civil.

Kfouri Neto (1996: 54), no entanto, acrescenta: "É claro que poderá existir responsabilidade médica que não tenha origem no contrato: o médico que atende alguém desmaiado na rua, v. g. A obrigação de reparar o dano, entretanto, sempre existirá, seja produzida dentro do contrato ou fora dele".

Silvio Venosa (2003: 95-96) também acrescenta à questão:

"Quando o paciente contrata com o médico uma consulta, tratamento, terapia ou cirurgia, o negócio jurídico é nitidamente contratual, oneroso e comutativo. Não se tratando de cirurgia plástica estética, a obrigação contraída pelo médico, quer no contrato, quer fora dele, é de meio e não de resultado. Quando a iniciativa do médico é unilateral, quando passa a tratar a pessoa, ainda que contra a vontade dela, a responsabilidade profissional emerge da conduta e não do contrato (...) como percebemos, a atividade múltipla do médico não pode ficar presa exclusivamente ao plano contratual".

Silvio Venosa (2003: 95) insiste que não há diferença ontológica entre a responsabilidade contratual e a extracontratual. A questão para o referido autor, assim como para Sílvio Rodrigues (1996: 24) se faz relevante apenas em matéria de prova.

Venosa (2003: 95), no entanto afirma: "também na atividade médica, a exemplo de outras profissões liberais, pode haver nitidamente um contrato, ainda que tácito".

Walter Bloise (1998: 88) defende a tese: "Há realmente entre o médico e o paciente um contrato de prestação de serviços. A sua responsabilidade é contratual, não obstante figurar no direito brasileiro como atos ilícitos, em casos de responsabilidade médica".

Pacificada na doutrina a questão do caráter contratual da responsabilidade médica, cumpre gora analisar a natureza da obrigação.

Em suma, os autores também concordam em um ponto: via de regra, trata-se de uma obrigação de meios, posto que o objeto do contrato não é a cura assegurada, mas sim o compromisso no sentido de uma prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica. Trata-se, portanto, de uma obrigação de meios, vez que o compromisso do médico é a acuidade no emprego dos meios adequados na busca da cura

Há, no entanto, casos em que o médico se compromete com o paciente no sentido de se alcançar um determinado resultado – que é o caso da cirurgia plástica meramente estética.. Nessa circunstância, o que se tem é uma obrigação de resultados, e não de meios.

É o que nos diz Silvio Venosa (2003: 90):

"Assim como a obrigação assumida pelo advogado no patrocínio da causa, como regra geral, é de meio e não deresultado, assim também contraída pelo médico em relação a terapia e tratamento do enfermo. O médico obriga-se a empregar toda a técnica, diligência e perícia, seus conhecimentos, da melhor forma, com honradez e perspicácia, na tentativa da cura, lenitivo ou minoração dos males do paciente. Não pode garantir a cura, mesmo porque a vida e a morte são valores que pertencem a esferas espirituais. Vezes há, no entanto, em que a obrigação médica ou paramédica será de resultado, como na cirurgia plástica e em procedimentos técnicos de exame laboratorial e outros, tais como radiografias, tomografias, ressonâncias magnéticas etc."

Silvio Rodrigues (1996: 246) corrobora:

"Ordinariamente, a obrigação assumida pelo médico é uma obrigação de meio e não de resultado. Com efeito, quando o cliente toma os serviços profissionais de um médico, este apenas se obriga a tratar do doente com zelo, diligência e carinho adequados, utilizando os recursos de sua profissão e arte, não se obrigando, portanto a curar o doente (..) já se tem proclamado que no campo da cirurgia plástica, ao contrário do que ocorre na cirurgia terapêutica, a obrigação assumida pelo cirurgião plástico é uma obrigação de resultado e não de meio. Ta concepção advém da posição do paciente numa e noutra hipótese. Enquanto naquele caso trata-se de pessoa doente que busca um cura, no caso da cirurgia plástica o paciente é pessoa sadia que almeja remediar uma situação que lhe é desagradável, mas não doentia. Por conseguinte, o que o paciente busca é um fim em si mesmo, tal como uma nova conformação do nariz, a supressão de rugas, e remodelação de pernas, seios, queixo etc. Do modo que o paciente espera do cirurgião, não que ele se empenhe em conseguir um resultado, mas que obtenha resultado em si".

Como se vê, portanto, a doutrina firma sua posição no sentido de considerar de resultados, e não de meios como muitos assim desejam, a obrigação do cirurgião plástico para com seu paciente.

A jurisprudência alienígena, principalmente a francesa (na qual buscamos o mais da casuística que ilustra este estudo), já se manifesta neste sentido há muito tempo. Sílvio Rodrigues (1996: 250), citando Teresa Ancona Lopes Magalhães, conta um caso que serve bem como exemplo neste sentido:

"Certa Mlle. Callou que se afligia por causa de uma barbe malecontreuse [3] no seu queixo. Procurou o Dr. X que lhe aplicou radioterapia. Infelizmente, tal tratamento provocou-lhe uma radiodermite de 2º. grau, intentando, então, Mlle. Callou uma ação de indenização contra seu médico. A cliente ganhou a causa, apesar de o Juiz achar que as marcas indeléveis que adquirira não eram piores que os pêlos em sua face".

O exemplo, no entanto, que merece a transcrição fidedigna de sua narração, é o que nos traz Aguiar Dias (1983: 275-277):

"Tratava-se de jovem senhora, modista de profissão, bonita e gozando de saúde. Lamentavelmente, elle avait jes jambes um peu fortes, como disse o famoso advogado que lhe levou a causa aos tribunais. Informada de que a medicina estética, graças aos grandes progressos de nossa época, era capaz de realizar o milagre de lhe adelgaçar as pernas, seja este ou não um sinal de sua prudência, o certo é que ela não se dirigiu a nenhum instituto de beleza, nem a médicos mais ou menos levianos, que anunciam nos jornais. Procurou uma fonte de informações absolutamente séria: as indicações afixadas à porta do Hospital Beaujon. Aí, leu que eram especialidade do Dr. Lèopold Levy as doenças de circulação e obesidade. Esse médico era autoridade conhecida no que respeita a doenças glandulares, a que são atribuídos muitos distúrbios do corpo humano, entre os quais o gigantismo, e tinha realizado experiências satisfatórias, mediante tratamento das glândulas responsáveis por anormalidade desse gênero.

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Foi procurado pela modista, a quem examinou com todo o cuidado, verificando que ela gozava de perfeita saúde. Daí desengana-la a respeito de qualquer possibilidade de obter o que desejava.

Decepcionada sobre as vantagens de um tratamento clínico, a jovem indagou do Dr. Levy se não lhe seria possível chegar ao mesmo resultado através da cirurgia estética. Respondeu-lhe o médico, cuja prudência ressalta cada ato seu, constituindo um exemplo a seguir pelo profissional consciencioso, que a cirurgia estética não era do seu domínio. Contudo, aconselhava-a a refletir bem na escolha do profissional, advertindo, mais, que as operações são sempre graves, pelo que redobrado deveria ser o cuidado na escolha do cirurgião. A pedido da cliente, indicou-lhe o Dr. Dujarrier, médico de lisonjeira fama, capaz de oferecer as garantias necessárias à ansiosa senhora. Não podia ela encontrar mais confortadora resposta. Disse-lhe o Dr. Dujarrier que se tratava de excesso de gordura nas pernas que podia ser removido mediante operação rápida e sem perigo, depois da qual nada mais restaria além de uma pequena cicatriz. Providenciou para que, logo no dia seguinte, fosse a consulente internada em sua clínica, dando-lhe, com mais essa providência, outro sinal de que nada tinha a temer.

No dia imediato, procedeu-se à operação. Havia o médico afirmado que ela não duraria mais de 20 minutos, mas levou hora e meia na intervenção, restrita, mesmo assim, a uma das pernas. O processo operatório consistiu, não como se poderia imaginar, em mera ablação da massa gordurosa, mas em retirada de volumosa massa muscular, ao fim da qual tentou o Dr. Dujarrier unir os bordos da incisão, o que não conseguiu, pois os pontos de sutura saltavam pela pressão dos músculos. Diante disso, a perna operada teve de ser envolvida de maneira a ser mantido fechado o corte operatório.

Passado o efeito da anestesia prévia,a cliente começou a sentir dores atrozes, que só puderam ser acalmadas com injeções de morfina. Nessa tarde e no dia seguinte, o médico, tendo vindo vê-la, pediu-lhe que tentasse mover o pé, o que ela não conseguiu e foi motivo de inquietação para ele. Nessa noite, redobrados foram os padecimentos da pobre senhora, a ponto de impressionar o pessoal do hospital, que, logo de manhã, à chagada do assistente de operador, lhe comunicou o acontecido. Tendo verificado, num rápido exame, a presença de gangrena na perna operada, o assistente se apressou em procurar o Dr. Dujarrier, que, confirmando, por sua vez, o acerto da opinião do colega, entrou a lutar contra o mal, procurando salvar o membro doente. Ao cabo de três semanas, não houve remédio senão amputa-lo. A cicatrização foi longa e, em conseqüência da situação criada, a operada teve de vender a sua casa de comércio.

Proposta a ação contra o Dr. Dujarrier, alegou a autora como fatos caracterizadores da responsabilidade: a) werro operatório, que consistiu em cortar massa muscular da perna, acarretando lesão ao funcionamento pé e artelhos e interrupção ou, pelo menos, grave perturbação à circulação do sangue no membro inferior, condições em que devia, inevitavelmente, produzir-se a gangrena; a circulação estava, ainda, sensivelmente comprometida pela atadura empregada para manter ligados os bordos da incisão; b) abandono da cliente: o médico não cuidou de vigiar a circulação após a intervenção e só três dias depois, quando da parte da operada começava a desprender-se o odor característico da gangrena, é que fez cortar as ataduras; c) o próprio fato da operação: o corpo humano é coisa sagrada, verdade filosófica, social e religiosa e também verdade jurídica; o próprio indivíduo não tem direito de mutilar o seu corpo; o cirurgião não pode intervir no corpo humano senão para curar, isto é, para defende-lo da morte ou dos sofrimentos; d) falta de advertência sobre o risco operatório, de forma a obter consentimento válido da cliente; o fato de não haver operado por impulso do lucro não mudava a questão; o cirurgião não estivera em presença de um doente aflito, a braços de uma crise mortal ou sofrimentos terríveis, mas diante de uma pessoa de saúde perfeita, a quem operou inútil e criminosamente.

A cirurgia estética foi vivamente combatida pelo advogado da autora. Disse que compreendia perfeitamente que se procurasse remediar os defeitos físicos causados aos feridos de guerra, porque nesse caso a intervenção do médico é reparadora. Mas que não podia admitir a cirurgia estética em presença de mera imperfeição física, principalmente sobre o corpo feminino, a pretexto de rejuvenesce-lo ou de coloca-lo de acordo com a moda.

Defendeu-se o cirurgião responsabilizado, alegando, principalmente, que: a) os tribunais distinguem o homem do profissional: o cirurgião que opera em estado de embriagues, o médico que se engana no medicamento, que abandona o doente responde como homem; responde como profissional o que age com ignor6ancia da arte médica; de modo que, no caso, não havia senão examinar se o Dr. Dujarrier cometera imprudência ou atuara de forma contrária ao bom senso; b) a operação fora feita em vista do enervamento da cliente, que considerava verdadeira moléstia a excessiva gordura de suas pernas; c) o cirurgião, além de não haver cometido crime algum, estava na persuasão de prestar um serviço à cliente; deve considerar-se que, para muitas mulheres, a beleza é uma necessidade do ofício, perfeitamente digna: o modelo profissional ou o "manequim"da casa de modas não podem continuar a ganhar a vida desse modo se apresentam um corpo desgracioso; c) a cirurgia estética é, pois, necessária; os defeitos físicos conduzem a estados psíquicos que podem ir da simples tristeza à loucura e ao suicídio; portanto, não é só para ajudar os caprichos que agem os médicos que a praticam; trata-se, então, de uma arte da qual se deve falar com o respeito devido às mais nobres manifestações da ciência; d) a cliente não foi abandonada: com efeito, não se pode exigir que o médico permaneça incessantemente ao pé do leito do doente; e) a operação consistia em um processo operatório semelhante ao empregado no tratamento das varizes; lamentavelmente, porém, a cliente do Dr. Dujarrier tinha a pele excessivamente rígida: assim, não obstante haver o Dr. Dujarrier praticado a operação de conformidade com todas as regras da arte, terem sido os curativos feitos regularmente, sobreveio a infecção; tratava-se de uma anomalia fisiológica, que o cirurgião não podia prever. Todos os dias a natureza contradiz princípios firmemente estabelecidos.

As conclusões do procurador-geral foram favoráveis à autora, sustentando que o cirurgião não tem, em nome da beleza e da estética, o direito de operar uma pessoa perfeitamente sã. Deve o cirurgião evitar todo e qualquer ultraje à natureza, se quer conservar o caráter augusto, sagrado, de que foi investido e que não lhe permite ceder às palavras nervosas de uma jovem impressionada com o fato de não estar a linha de suas pernas em harmonia com a moda do dia.

A sentença condenou o cirurgião, considerando: a) que a operação do gênero da que ele realizara é delicadíssima; b) que o simples fato de efetua-la no único propósito de corrigir o defeito da perna, sem qualquer utilidade para a saúde da operada, empenha a responsabilidade; c) que, se, como disso o cirurgião em sua defesa, tinha operado para atender a uma necessidade moral, o fato da excitação da cliente o aconselharia a adiar a operação, pois aquele estado de exaltação da cliente lhe retirava o livre-arbítrio; d) que, estabelecida a circunstância de apresentar a cliente uma pele excessivamente rígida, não escusaria o médico, que teria agido com imprudência, não se certificando previamente deste pormenor".

A longa narração do fato da infeliz senhora é fértil substrato para que sejam tecidas considerações importantíssimas acerca do assunto ora desbastado.

Temporalmente, o caso encontra-se numa época em que a cirurgia estética ainda tinha ares experimentalistas e não gozava da credibilidade que, modernamente, lhe é outorgada. O próprio patrono do Dr. Dujarrier reclama à Cirurgia Plástica um status de ciência respeitável, o que evidencia em que patamar as práticas estéticas encontravam-se àquele tempo. De qualquer maneira, porém, não parece permanecer resquícios deste desprezo e pouca conta com que as intervenções eram vistas. Hoje, a ciência e a sociedade recebem este ramo da medicina com o outrora reivindicado respeito, não se falando mais em violência contra o corpo humano, ultraje à natureza ou outras expressões que externavam uma espécie de indignação diante de uma circunstância em que a pessoa recorria às mesas cirúrgicas para alterar os contornos delineados pela natureza. Ao contrário, vislumbra-se a cirurgia plástica como um grande avanço no sentido de, em fato, minorar os incômodos psíquicos decorrentes do mal-estar provocado pelos conflitos emocionais que o indivíduo vivencia diante da insatisfação com seu corpo.

O procedimento do Dr. Dujarrier, portanto, não pode ser reprovado neste sentido. É consistente, por outro lado, as acusações fundadas no erro grosseiro e no abandono do paciente.

As técnicas empregadas, como vimos, contrariam não só princípios científicos, mas, e principalmente, regras de bom senso. Extirpar musculatura e destruir estrutura circulatória denota uma atitude de erro seriíssimo. Aqui, o médico inadimpliu uma obrigação de meios implícita na sua obrigação notadamente de resultados. O emprego dos meios adequados e escorreitos não se deu, decorrendo daí o prolongado sofrimento da paciente, culminando com a perda da perna.

Supondo, porém, que o Dr. Dujarrier tivesse conseguido contornar o estado de gangrena e salvado o membro operado, que tipo de obrigação restaria inadimplida diante de um quadro em que uma senhora, modista de profissão, encontra-se com uma perna deformada e a outra sequer operada no sentido de reparar aquilo que, pela própria natureza, considera um defeito?

Observemos que, mesmo não tendo perdido o membro e as funções motoras do mesmo, há do médico para com a senhora a obrigação de resultado com relação ao que foi prometido na ocasião da consulta. É claro que, diante do que se sucedeu no caso em tela, tal questão sequer foi levantada. Mas, ainda no campo das suposições, se a cirurgia tivesse transcorrido bem, em ambas as pernas, mas o que fora prometido não coincidisse com o resultado final – o médico assegura pernas delgadas e o que se dá é apenas um afinamento parcial, permanecendo a aparência arredondada das coxas – ainda assim resta um dana, que é exatamente o inadimplemento da obrigação de alcançar o resultado prometido.

Nesse sentido, dá força a nossa tese os sábios dizeres de Aguiar Dias (1983: 284):

"No tocante à cirurgia estética, continuam-se a confundir cirurgia reparatória e cirurgia embelezadora. Se aquela pode e deve ser considerada obrigação de meios, a segunda há que ser enquadrada como obrigação de resultado, até pelos termos em que os profissionais, alguns dos quais criminosamente distanciados da ética, se comprometem, sendo generalizada no segundo grupo, ao contrário do que ocorre no primeiro, a promessa do resultado procurado pelo cliente".

2.3 Culpa Médica

A culpa tem sido objeto de profundo processo de reflexão por parte de muitas gerações de juristas, podendo consistir em matéria fecunda para volumosos estudos.

De Plácido e Silva (1999: 233) esboça um conceito:

CULPA. Derivado do latim culpa (falta, erro cometido por inadvertência ou por imprudência), é compreendido como falta cometida contra o dever, por ação ou omissão, procedida de ignorância ou de negligência.

A culpa pode ser ou não maliciosa, voluntária ou involuntária, implicando sempre na falta ou inobservância da diligência que é devida na execução do ato a que está obrigado.

Revela, pois, a violação de um dever preexistente, não praticado por má-fé ou com a intenção de causar prejuízos aos direitos ou ao patrimônio de outrem, o que seria o dolo.

Na culpa, não há positiva intenção de causar o dano; há simplesmente a falta ou inobservância do dever que é imposto ao agente.

Nesta razão assenta o brocardo jurídico: Culpa non potest imputari ei, qui non facit, quod facere non tenebatur (Não se pode imputar culpa a quem não fez o que não era de sua obrigação).

Desse modo, para que a negligência ou imprudência reputada como culpa, consistente na omissão do que se podia fazer, necessário que se mostre dever, ou que se devia fazer, e que foi desprezado voluntariamente ou por negligência, mas sem a intenção de causar dano a outrem".

Em suma, na culpa o autor assume o risco de produzir um resultado, não o desejando. Nota-se, então, a presença de previsibilidade. É fundamental a demonstração do nexo causal entre a intervenção do médico e o resultado danoso, sendo que este resultado já se encontrasse no rol de possibilidades de resultados.

Kfouri Neto (1996: 57) parafraseia Altavilla: "para a caracterização da culpa nãose torna necessária a intenção, basta a simples voluntariedade de conduta, que deverá ser contrastante com as normas impostas pela prudência ou perícia comuns".

Vale lembrar que, entre nós, a medida da culpa não é tão relevante quando a medida da extensão do dano – basta lembrar o brocardo in lege aquilia et levíssima culpa venit, ou seja, a culpa, ainda que levíssima, enseja indenização.

O art. 1.545 do Código Civil de 1916 cuidava da culpa dos profissionais da saúde:

Art. 1.545.

Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir ou ferimento.

Atualmente, o correspondente ao artigo supra transcrito é o art. 951, do Novo Código Civil:

Art. 951.

O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda, no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilita-lo para o trabalho.

Comentando o art. 1.545 do Código de 1916, Clóvis Bevilácqua tece considerações interessantes, que são transcritas por Kfouri Neto (1996: 58):

"A responsabilidade das pessoas indicadas neste artigo, por atos profissionais, que produzem morte, inabilitação para o trabalho, ou ferimento, funda-se na culpa; e a disposição tem por fim afastar a escusa, que poderiam pretender invocar, de ser o dano um acidente no exercício de sua profissão. O direito exige que esses profissionais exerçam a sua arte segundo os preceitos que ela estabelece, e com as cautelas e precauções necessárias ao resguardo da vida e da saúde dos clientes e fregueses, bens inestimáveis, que se lhes confiam, no pressuposto de que os zelem E esse dever de possuir a sua arte e aplica-la, honesta e cuidadosamente, é tão imperioso, que a lei repressiva lhe pune as infrações".

A culpa médica não é, definitivamente, de fácil aferição, despendendo esforços acima do usual por parte do julgador, que tende a ser rigoroso em sua apreciação do caso concreto. Em regra, a culpa só poderá ser presumida diante de um erro grosseiro ou de negligência ou imperícia convincentemente demonstradas. Diante de uma circunstância em que o médico utilizou todos os meios disponíveis, demonstrando vasta experiência; procedeu com os habituais e recomendados cuidados, tanto pré quanto pós-operatórios; em um caso assim, somente uma prova bastante robusta seria capaz de levar a uma condenação do médico à reparação.

Antes de mais nada, porem, mister é distinguir a culpa médica da mera culpa ou culpa ordinária. A primeira é de natureza inafastavelmente profissional; enquanto que a segunda independe do exercício da atividade, sendo reconhecível em outros casos.

Por exemplo, se um cirurgião realiza uma intervenção, bêbado, trata-se de culpa ordinária, posto que ninguém deve realizar qualquer tipo de atividade embriagado. Supondo, porém, que, em condições normais, um médico comete um erro de diagnóstico, há a culpa profissional, culpa médica, diretamente inerente ao exercício da atividade profissional médica.

Em face do in lege aquilia et levíssima culpa venit, porém, não há que se falar em diferenciação da responsabilidade civil médica oriunda da distinção entre as culpas. Em um caso e outro – tendo operado bêbado ou errando no diagnóstico – o médico seria responsável e obrigado a indenizar.

Kfouri Neto (1996: 59) reproduz a lição de Pio Avecone, que traça um método eficaz de delimitação da culpa:

"Para Avecone, um correto método de levantamento da culpa médica pressupõe:

a)a perfeita consciência do caso concreto, em todos os seus aspectos objetivos e subjetivos, evitando generalizações tão fáceis quanto falazes;

b)o uso de parâmetros juríduicos normais, utilizáveis também para outros tipos de culpa (previsibilidade, normalidade etc) mesmo que, dada a particularidade da matéria, mais difícil pareça tal explicação".

De qualquer modo, a aferição da culpa médica é caso delicado, de difícil resolução por envolver questões relativas à ciências e artes médicas. O magistrado, sendo leigo no assunto, deve se apoiar nos dados de comum experiência (senso comum), sem, contudo, prescindir de pareceres de profissionais habilitados a, em juízo, esclarecer a situação.

Como já foi asseverado antes, a regra geral é a de que a obrigação do médico é de meios, sendo de resultado somente em algumas circunstâncias (dentre elas, e principalmente, a cirurgia plástica estética). No caso das obrigações de meio, à vitima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que houve culpa por parte do médico – o que torna a reparação por dano médico bastante difícil. Já nas obrigações de resultado, basta que a vítima demonstre o dano (ou seja, que o médico não alcançou o resultadi prometido e contratado) para que a culpa se presuma, havendo, então, uma inversão do ônus da prova; passa a ser de interesse e ônus do médico demonstrar que o efeito danoso não implica em culpa de sua parte.

Kfouri Neto (1996: 62-63) menciona a lição da Prof. Teresa Ancona Lopez Magalhães, que nos dá alguns princípios gerais para a avaliação da culpa médica:

"1. quando se tratar de lesão que teve origem em diagnóstico errado, só será imputada responsabilidade ao médico que tiver cometido erro grosseiro;

2. o clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o especialista;

3. a questão do consentimento do paciente em cirurgia onde há o risco de mutilação e de vida é essencial. Guiar Dias cita caso de paciente que se recusou terminantemente a permitir que fosse amputada sua perna esmagada em acidente, sobrevindo-lhe a morte em conseqüência de gangrena gasosa. Os médicos que propuseram a operação não poderiam ter agido de outro modo, dada a comprovada lucidez do paciente ao rejeitar a intervenção cirúrgica.

Wanderby Lacerda Panasco assevera que, na atividade médica, torna-se essencial o consentimento e, por isso mesmo, inarredável. Entretanto, se houver iminente perigo de vida, o profissional pode intervir sem o seu amparo, numa justificativa supralegal;

4. o mesmo assentimento se exige no caso de tratamento que deixe seqüelas, como, e.g., na radioterapia. E age com culpa grave o médico que submete o cliente a tratamento perigoso, sem antes certificar-se da imperiosidade de seu uso;

5. dever-se-á observar se o médico não praticou cirurgia desnecessária;

6. não se deve olvidar que o médico pode até mesmo mutilar o paciente, se um bem superior – a própria vida do enfermo – o exigir;

7. outro dado importante é que o médico sempre trabalha com uma margem de risco, inerente ao seu ofício, circunstância que deverá ser preliminarmente avaliada – e levada em consideração;

8. nas intervenções médicas sem finalidade terapêutica ou curativa imediata – cirurgia plástica estética propriamente dita, p. ex. – a responsabilidade por dano deverá ser avaliada com muito mais rigor.

Apesar de cada caso de culpa médica ser singular, esses princípios gerais são plenamente observáveis.

Não é preciso que a culpa do médico seja grave: basta que seja certa".

Há, como já ficou claro, um rigorismo à toda a prova por parte de nossos julgadores, bem como uma forte tendência reacionária nos tribunais em exigir provas demasiado difíceis para a aferição da culpa. A realidade do panorama da reparação do dano médico, apesar dos muitos julgados favoráveis às vítimas, ainda é desanimador no Brasil. Para que a reparação se torne mais freqüente é fundamental que os tribunais se modernizem e se tornem mais flexíveis. Na grande maioria dos casos, onde o erro salta às vistas, basta que o julgador se auto-questione: a intervenção que causou o dano está de acordo com, ordinariamente, se espera de um médico?

Não se propõe que o juiz avalie a situação profissionalmente, mesmo porque não seria possível esperar do magistrado os conhecimentos necessários. Suficiente é, porém, um olhar amparado no bom senso a fim de averiguar se aquela situação consiste em desvio da escorreita atividade ou não.

Basta este auto-questionamento pra que o juiz perceba que é preciso dessacralizar o médico e traze-lo ao plano da reparação dos danos ocasionados por seus atos.

2.4 O erro médico

A reparação decorrente da responsabilização do médico por dano decorrente de seus atos profissionais encontra, como temos visto, altas barreiras. A problemática da verificação do erro médico é uma delas.

Formada a relação angular nas ações indenizatórias: autor (vítima)-juiz-réu (médico), o julgador encontra-se em meio a um fogo cruzado. De um lado, o causídico do autor, que delineia com traços acentuados as evidências da má conduta do médico; e do outro, o advogado deste, que, por sua vez, bombardeia a ação com literatura especializada e laudos periciais atestando que, em nenhum momento, o médico fugiu aos procedimentos aconselhados pela ciência médica.

O problema, em si, está colocado: o juiz tem diante de si uma vítima com um dano que foi causado e tem também o fato de que houve uma intervenção, sendo que esta foi realizada pelo médico que figura no pólo passivo da ação. Resta, então, saber se há um nexo causal entre a referida conduta (intervenção do médico) e o prejuízo experimentado ( o dano) – e é isso que passará a desafiar o julgador, sendo a verificação do nexo causal que irá determinar ou não a ocorrência do erro médico.

Para a formação de seu convencimento, o juiz se vale daquilo que as partes trazem aos autos. Nada impede, porém, que o juiz busque assessoria do serviço médico do próprio Tribunal de Justiça, a fim de, no momento da formulação dos quesitos para a perícia, possa formular perguntas cujas respostas elucidem mais eficientemente a questão.

Kfouri Neto (1996: 67) desenvolve um exemplo:

"Homem idoso, ao redor dos 80 anos, foi atropelado, sofrendo fratura exposta no membro inferior esquerdo. Transportado para o hospital da cidade vizinha, onde deu entrada mais de cinco horas depois do acidente, submeteu-se a cirurgia para redução da fratura e, em seguida, teve a perna engessada. Poucos dias após a operação instalou-se virulento processo infeccioso, que provocou a morte da vítima. A inicial atribuiu culpa aos ortopedistas, sob a alegação de que jamais aquela fratura poderia ter sofrido imobilização com gesso, resultando daí a infecção e a morte. A contestação, reproduzindo trechos de obras de referência em Ortopedia, procurou demonstrar a absoluta correção do procedimento cirúrgico, inocorrendo nexo causal entre a colocação do gesso e a inecção – tanto assim que o óbito consignou causa mortis não determinada.

Na situação fática narrada, os quesitos deveriam versar – dentre outras indagações – sobre: a) procedimento ortopédico usual em fratura exposta: recomenda-se ou não o engessamento, após cirurgia (ou seja, houve imperícia?)?; b)o que pode ocasionar a infecção, nesse caso: o gesso ou o tempo decorrido entre o acidente e a assepsia pré-operatória, tendo permanecido o ferimento, durante mais de cinco horas, sujeito ao ataque de germes infecciosos (nexo causal)?; c) a natural debilitação de um paciente octogenário também poderia facilitar a instalação do foco infeccioso, que se alastrou (nexo causal)?

Há uma série de documentos que deverão instruir a ação a fim de que haja um efetivo julgamento:

a)diploma do médico, bem como sua inscrição junto ao CRM;

b)juntada da papeleta de anamnese e da evolução do tratamento, subscrita por médicos e enfermeiros;

c)livros e trabalhos científicas com a descrição das técnicas questionadas, a fim de se comparara com o desempenho dos acusados (é recomendado que se use, ao menos, três autores);

d)guia médico-farmacêutico com a composição das drogas e medicamentos ministrados;

e)relatório do anestesista;

f)documentos escritos pelo paciente (consentimento, pagamento de serviços médicos etc);

g)certidão de óbito;

h)relatório da necropsia;

i)se houve inquérito (óbito), relatório do mesmo;

j)análise do desempenho da aparelhagem a qual o paciente esteve ligado;

k)exames de laboratório;

l)efetivação e resultados.

Kfouri Neto (1996: 68) explica sobre os meios de prova: "os meios de prova são os usuais: depoimento pessoal do médico (pode ocorrer confissão); inquirição de testemunhas (mesmo as suspeitas ou impedidas); prova documental; informas (notícias veiculadas pela imprensa etc); inspeção judicial; presunções; prova pericial; a convicção e o convencimento do juiz".

2.5 Dano Médico

Dentro do direito civil, mais especificamente no campo orbital da responsabilidade civil, figura das mais relevantes e de curial importância é o dano. Adriano De Cupis (apud Kfouri Neto, 1996: 85), em seu monumental trabalho sobre o tema, Il danno, conceitua-o como "prejuízo, aniquilamento ou alteração de uma condição favorável, tanto pela força da natureza quanto pelo trabalho do homem".

Trata-se de um conceito amplo que, para servir à esfera jurídica, deve ser amoldado a ela. Assim, o dano deve decorrer da prática de um ato em dissonância com uma norma.

Kfouri Neto (1996: 86) muito bem coloca: "O dano revela-se, assim, elemento constitutivo da responsabilidade civil, que não pode existir sem ele – caso contrário nada haveria a reparar".

Logicamente, para que se institua a responsabilidade médica é preciso que se verifique a efetividade do dano ao paciente, seja ele qual for: dano oriundo de lesão a um direito fundamental (à vida, à integridade física, à saúde), danos patrimoniais ou danos morais, nos quais incluem-se os danos estéticos.

Kfouri Neto (1996: 86) afirma que "os danos médicos indenizáveis podem abranger quaisquer tipos, admitidos geralmente para qualquer modalidade de responsabilidade civil. Adquirem relevância, evidentemente, os danos físicos, visto que a atividade médica se exerce sobre o corpo humano, nos diversos aspectos contemplados pelo tratamento médico-cirúrgico".

Deste modo, para efeitos de um estudo sistemático da resposabilidade médica, temos as seguintes ordens de dano, a saber: danos físicos (ou corporais), danos materiais e danos morais.

Sobre os danos físicos, diz Kfouri Neto (1996: 87) que "assumem maior relevância – e o prejuízo corporal se compõe de elementos variáveis, indenizáveis separadamente, conforme a invalidez, por exemplo, seja parcial ou total, permamente ou temporária".

Os danos materiais, ou patrimoniais, são, no mais das vezes, conseqüências dos danos físicos: lucros cessantes, despesas médicas e de outras naturezas, medicamentos, viagens etc. Há também a circunstância de morte do paciente, surgindo assim a responsabilidade de indenizar os beneficiários do falecido pela privação da renda auferida por aquele.

E, por fim, há o dano moral, de especial relevância na compreensão da responsabilidade civil do cirurgião plástico, posto englobar o dano estético.

Há, no Brasil, doutrina particularíssima acerca do dano estético, elaborada na ocasião do doutoramento da Profa, Teresa Ancona Lopez Magalhães. A ilustre mestra afirma, liminarmente, que o dano estético é um dano moral.

Kfouri Neto (1996: 87) menciona Teresa Ancona:

"Caracteriza o dano estético a lesão, à beleza física, à harmonia das formas externas de alguém. O conceito de belo é relativo. Ao apreciar-se um prejuízo estético deve-se ter em mira a modificação sofrida pela pessoa em relação ao que era antes. A existência do dano estético exige que a lesão que enfeiou determinada pessoa seja duradoura, caso contrário ao se poderá falar em dano estético propriamente dito (dano moral) mas em atentado reparável à integridade física ou lesão estética passageira, que se resolve em perdas e danos habituais. O dano estético, como dano moral, representa uma ofensa a um direito da personalidade".

O dano estético, portanto, abrange várias categorias e níveis de dano à aparência da pessoa, indo além das lesões mais extensas que caracterizam o aleijão. Wilson Melo da Silva (1977: 249) afirma que o dano estético abrangeria também "as deformidades ou deformações outras, as marcas e os defeitos, ainda que mínimos e que pudessem implicar, sob qualquer aspecto, um "afeiamento" da vítima ou que pudessem vir a se constituir para ela numa simples lesão "desgostante" ou em um permanente motivo de exposição ao ridículo ou de inferiorizantes complexos".

Muitos elementos, portanto, são levados em consideração ao se determinar o quantum correspondente ao dano estético, tais como a extensão do dano, a localização da lesão, a possibilidade de remoção, as características pessoais da vítima (sexo, idade, profissão, estado civil etc). Todos estes elementos serão levados em consideração pelo julgador na quantificação de uma indenização.

Isso é relevantíssimo, pois um mesmo dano pode ter pesos diferentes quando levado na consideração de contextos de pessoas diferentes. Assim, uma pequena deformidade no rosto de uma modelo enseja uma reparação mais alta que uma cicatriz mais extensa na face de um peão de obras, por exemplo – para a modelo, a incolumidade da face é quesito profissional; enquanto que para o peão, a cicatriz pode até ser avaliada como uma espécie de "adorno", ícone de sua masculinidade etc. Ao que nos parece, à guisa de esclarecimento, tais afirmações não ferem o princípio magno da isonomia, pois trata-se da análise minuciosa que leva (e deve levar) em consideração os fatores pessoais que individualizam cada pessoa na sociedade.

No Brasil, erroneamente, ao que nos parece, somente a vítima é parte legítima para requerer indenização pelo dano estético. Em França, por exemplo, há a possibilidade de terceiro interessado buscar reparação. Kfouri Neto (1996: 88) dá-nos um exemplo: "se a estabilidade conjugar resultar abalada pela deformidade da mulher, o marido poderia pleitear a reparação: vendo a mulher desfigurada, foi ele acometido de trauma nervoso, caindo doente, daí surgindo o dever indenizatório".

É, por fim, válido mencionar o comentário da Profa. Teresa Ancona acerca da importância da reparação efetiva do dano estético (in Kfouri Neto, 1996: 89): "em matéria de prejuízo estético, como prejuízo moral, não se pode falar em reparação natural, nem em indenização propriamente dita. Nesses casos não há ressarcimento e sim compensação ou benefício de ordem material, que permite ao lesado obter confortos e distrações que, de algum modo, atenuam sua dor".

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Sobre o autor
Thiago Ianez Carbonel

Advogado e Professor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARBONEL, Thiago Ianez. Responsabilidade jurídica do cirurgião plástico:: um panorama da questão no ordenamento brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 650, 19 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6588. Acesso em: 23 nov. 2024.

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