2ª PARTE
Do Social ao Político: o processo de hominização
O homem é um animal político e não apenas social. Esta parece ser a intenção de Aristóteles ao afirmar o zoon politikon, pois muitos outros animais também são sociais, mas sem serem políticos. As abelhas e sua fascinante organização social, a partir da intrincada e elabora colméia, provoca fascínio há milênios – foi um símbolo adotado até mesmo por Napoleão Bonaparte. O gado de forma geral é composto de animais sociais, quando vivem agrupados, porém sem que tenham qualquer outro princípio organizativo, sem sequer se defender organizadamente, coletivamente. O gado mesmo vivendo aos milhares dispara em desabalada ao menor sinal de perigo, sem se preocupar com a autodefesa - talvez, à exceção do Búfalo.
De todo modo, mesmo não havendo maior coordenação social ou não sendo possível generalizar a característica social, algumas formas de vida pré-humanas (plantas [26], insetos, mamíferos) e até os humanóides [27] têm ou tiveram suas vidas baseadas no desenvolvimento de mecanismos sociais elementares:
Estes mecanismos chegam a ser descritos pelos biólogos, através de conceitos como "apetite social", "interatração", "cooperação inconsciente", tendência automática para a ajuda mútua", "tolerância à presença de outros", "competição consciente", "sociabilidade" etc (...) É verdade que subsiste o problema de como separar, caracterizar e interpretar o que é "social" nas formas pré-humanas da vida (...) Tudo que se pode perceber é um gradual desenvolvimento de atributos sociais, o qual indica um substrato de tendências sociais em todo o reino animal. Desse substrato social a vida social emerge pela operação de diferentes mecanismos e sob várias formas de expressão, até alcançar o presente clímax nos vertebrados e nos insetos (Fernandes, 1977, p. 27).
Outros animais, no entanto, já reúnem melhores condições de organização, como abelhas, formigas e castores – com divisões internas das funções sociais. Lobos, leões, cachorros selvagens africanos ou chipanzés [28], além dessa organização para viverem em sociedade, já possuem certa inteligência social, pois são capazes de organizar a caça coletivamente. O revezamento entre as funções de ataque e liderança no cerco final à caça, entre o chamado lobo alfa e outros membros da equipe de assalto é um exemplo claro dessa inteligência social.
Denominamos de inteligência social essa capacidade de agir coletivamente que resulta em maior capacidade de interação social. Portanto, inteligência social se refere à capacidade para manejar apropriadamente situações pessoais e interpessoais da vida diária, tendo em conta finalidades igualmente societárias. Daí que interação social, por sua vez, pressupõe níveis positivos mínimos de sociabilidade, ajuda mútua e interdependência recíproca.
O homem, como é fácil perceber, reúne essas três dimensões, ou seja, é social, sociável, societário, tem apurado senso de inteligência social [29] e é um animal político: especialmente ao externar e executar determinados níveis de poderio social [30]. De todos os animais, o homem é o único capaz de racionalizar sobre o que é ser social, além de ser dotado de raciocínio lógico que lhe permite agir politicamente, bem como refletir criticamente acerca dos seus próprios níveis de inteligência social: o que também implica em práticas sociais que resultam em transformação política - práxis. Quanto a esse homem social e político, pode-se falar que desenvolveu em milhares de anos uma poderosa teleologia, ou capacidade projetiva das transformações sociais e políticas futuras. E é certo como isto é parte do empuxo decisivo para desenvolver a inteligência social e o raciocínio lógico do homem. Lembremos ainda da importância decisiva que teve o movimento de pinça, com o movimento articulado entre o dedo indicador e o polegar: um exemplo nítido do componente biológico da inteligência social.
Essa condição intelectual que o homem aprimorou a partir da experiência política, essa possibilidade de abstração e reflexão do viver social e do fazer política, define a própria dimensão social do político. Isso envolve uma relação que vai da ação política à reflexão do político, da criação de instrumentos práticos de ação política às categorias mais abstratas que envolvem o político: a exemplo dos Direitos políticos, como se viu fortalecer com o Estado Moderno. Sucintamente, talvez se devesse dizer de uma dimensão social de implicações jurídicas e políticas, pois:
É o conjunto de pessoas que gozam, pela condição comum em que se encontram, da mesma posição com relação aos Direitos e deveres políticos. Pelo fato de usufruírem conjuntamente desta posição, elaboram e praticam formas de gestão da mesma que configuram, justamente, como comunitárias ou, ao menos, como representativas (Bobbio, 1993, p. 1214).
Essa intelecção da política permitiu ao homem sobressair-se socialmente, aprimorando seus equipamentos sociais, ao romper e ultrapassar os limites sociais primários. De uma vida eminentemente social, o homem transformou seu hábitat no complexo conceito e realidade da iminente sociedade civil [31]. Para nós humanos, outrora animais resumidos à vida social primária, limitados à condição natural da vida social (e ainda não expressamente política), agora só é interessante a vida social se adstrita a uma objetivação política. Mas o que é sociedade civil [32]?
Esta locução é originária dos antigos romanos, para quem antes do Estado existia uma societas civilis como referência a uma sociedade formada sob garantias legais e como objeto de utilidade comum, como dizia Cícero (...) Nos anos 90, os cientistas sociais norte-americanos começaram a chamar civil society a tudo que era controlado e financiado pelo Estado (Borja, 1998, p. 934).
A sociedade civil romana lembra um pouco os nossos grupos humanos gregários, pareciam sinalizar o que chamamos no texto de interação social originária. De certa forma, o texto nos remete a uma tentativa de entender alguns mecanismos e o porquê dessa gradual passagem processual de transformação do social no político. Essa racionalidade política potencializa o social, o querer e o suportar a vida em sociedade, em grupo, é o que permite a criação da sociedade civil. Por ora, vamos entender racionalidade política como a meta traçada por um verbo: traçar implicações claras para a atividade política, ainda que nem todos os resultados sejam a própria concretização do projeto inicial. Também o conceito de socialização jurídica pode nos ajudar nessa tarefa:
1. A palavra socialização jurídica foi criada em 1836. Ela figura no dicionário alfabético e analógico da língua francesa (Robert) com dois sentidos: a) o fato de desenvolver relações sociais, de formar um grupo social, em sociedade (didático); b) o fato de colocar sob regime comunitário, coletivo (1846) (...) 2. O conceito de socialização jurídica aproxima-se do que J. Carbonnier (1978) chama de "processo de juridicização" experimentado pelo indivíduo na sociedade, processo que ele considera ao mesmo tempo próximo e distante daqueles através dos quais o indivíduo é socializado e moralizado. Encontramos igualmente (...) a expressão "formação da consciência jurídica" ou desenvolvimento da consciência jurídica" para designar o conteúdo da socialização jurídica (Arnaud, 1999, p. 743) [33].
É lógico, mas cabe notar que se encontram em relação intrincada a Sociedade, a Política, o Direito, e é esta capacidade de interagir o social e o político que faz do homem um animal social capaz de agir politicamente. Como racionalidade aplicada ao social, a política será um pharmakón e esse fenômeno ocorre em toda sociedade que tenha evoluído para a sociedade civil - no sentido ocidental de sociedade. Porém, não podemos esquecer que há características próprias a algumas sociedades, a começar por todas que não perfazem o exato padrão da sociedade industrial de massas.
Em muitas sociedades indígenas, por exemplo, não há uma noção de Direito como nós a conhecemos, com subsunção e coerção. Portanto, deve-se ter clara a distinção entre regras sociais e Direito. Nas sociedades indígenas, se não há subsunção (quando o caso concreto é confrontado à regra geral e abstrata [34]), os conflitos só podem ser resolvidos e absorvidos no interior do grupo como um todo – no plano geral e concreto da cultura do grupo social. Diferentemente do Direito, as regras sociais tendem à unanimidade e o Direito pode ser baseado em consensos muito provisórios. Além do que, nessas sociedades não-ocidentalizadas, não se opera a coerção a partir de uma instituição como o Estado, mas sim no mundo concreto, na cultura inclusiva do grupo social.
Em síntese, denominamos de subsunção cultural a esse processo em que o Direito se resolve na cultura, imiscuindo-se aos conflitos e às soluções sempre coletivas e participativas, no interior dos grupos. Nesse grupos sociais, trata-se de viver o Direito, de resolver os problemas coletivamente, de re-avivar as normas jurídicas, de re-apresentar e indagar a todos os presentes se as regras pré-estabelecidas se aplicam ao caso concreto, ao caso em questão ou não. E isto é muito diferente de apenas representar a situação de fato, buscando comparar a norma ao caso específico, viver o direito e não somente representá-lo por meio do advogado. Enfim, é como se dissesse que se deve re-apresentar a norma social e não só representar sua existência.
Nesse item, podemos concluir que todo animal político é social, além de possuir apurado senso de inteligência social: excluindo-se aqui o caso crônico dos sociopatas. Porém, ainda é de se lembrar que mesmo o chamado ermitão é aquele sujeito que experimentou a vida social e depois a abandonou, em troca da reclusão ou de maior privacidade [35] – num nível intermediário de afastamento social estão alguns monges ou religiosos. Também podemos dizer que nem todo animal social é político ou que tenha capacidade intelectual para agir socialmente – para este sentido, devemos analisar os casos de todas as formas sociais de vida rudimentares ou de menor condição societária. Portanto, de toda análise, decorre que o homem é um animal social e político, ou seja, o processo de hominização se dá nesta passagem gradual, mas constante do social ao político, e depois com a transformação das regras sociais em Direito.
Em resumo, o homem político é o homem social que se instiga diretamente à prática do poder, é aquele sujeito que declara e destaca sua intenção de fazer política de forma imediata, sem mediações, demonstrando consciência da necessidade da prática política.
Enfim, a passagem do político ao jurídico implica uma nova fase da consciência coletiva, como um tipo ou margem da consciência pública. Com a fixação do Estado de Direito, teoricamente, houve um controle dos poderes do Estado e um maior requerimento pela coisa pública, pela República: essa consciência pública apelidada de salus publica [36]. Mas, note-se que mesmo a salus publica não implica necessariamente na figura do Estado, pois é muito fácil perceber como o Estado pode ser um mero exercício da opressão. Naquelas sociedades indígenas, já referidas, há forte concepção e cooperação para a coisa pública, mas se desconhece totalmente a instituição do Estado. Em nossas sociedades, ao contrário, tanto o Estado quanto o Direito se caracterizam muito mais pela prática da dominação e da opressão.
Aliás, há esse tipo de dominação e opressão porque não se desenvolveram nas sociedades industriais, apropriadamente, os princípios da alteridade. De certo modo, trata-se de promover um (re)encontro do Direito, da ética e da política com a cultura e com os modos sociais apresentados pela vida social moderna. É isso que trataremos de modo sucinto a seguir.
A Formação da alteridade Política: pela construção social do Direito e da ética
Mas o que é alteridade política? Vimos uma condição inicial, imprescindível dessa alteridade em Dussel, que é o respeito à integridade da vida biológica, tal qual prescreve o princípio da dignidade da pessoa humana, e que por sua vez é o mais profundo alicerce do componente ético da vida social. Aliás, a ética entendida aqui como a garantia primária da vida social: como preservação do que está vivo, entre nós, no grupo, na coletividade.
Poderíamos pensar em vários níveis ou articulações diferentes: desde a interação social clássica (na sociologia coincide com a solidariedade, ajuda mútua), até a dimensão política postada na transformação do ídion (desde a Grécia clássica, visto como o cidadão apático, submisso, meramente cumpridor de seus Direitos e obrigações, não-questionador) em um cidadão ativo, participativo, inquiridor da verdade, do Direito, da justiça.
Neste caso, serve-nos a alteridade política como uma necessária, urgente e fundamental "psicologia do entendimento do usuário (quem são esses sujeitos da rede social e da vida política? O que queremos deles?)", mas agora em um tipo de abordagem universal: não um usuário, mas "os usuários que queremos", porque também se trata de um conjunto complexo ("o que se tece em conjunto"). Portanto, trata-se obrigatoriamente de uma ação coletiva que também se constitui numa noção elementar à interação social e à interface política e teleológica, pois é facilmente percebido que não interage adequadamente bem, na vida social ou política, aquele que não está preparado para encontrar os demais, os outros, próximos ou distantes de si mesmos.
Encontrar o outro, na rede social e na vida política, é aprimorar, redimensionar, ou simplesmente edificar, solidificar nossa própria alteridade: o nosso desentranhamento, o nosso desenvolvimento interior para entender, absorver, alterar, tanto o mundo interno quanto o externo. Como diz Rolnik (1994):
Para desenvolver este tipo de interrogação, proponho que nos situemos no âmbito de uma ecologia da subjetividade para problematizarmos o conceito de "outro" implicado tanto na noção de democracia, quanto na noção de homem como cidadão: o outro, deste ponto de vista, é uma unidade (um indivíduo), juridicamente circunscrita, composta por um conjunto de Direitos e deveres definidos por lei. Aliás, este mesmo conceito de outro está presente na palavra "ética" que tem sido igualmente evocada no discurso que se reivindica como democrático, ao lado da palavra "cidadania": o conceito de ética, deste ponto de vista, refere-se ao respeito pelos Direitos e deveres de todos, respeito pelas leis que regulamentam tais Direitos e deveres (...) No entanto, a realidade não se restringe ao visível, e a subjetividade não se restringe ao eu: num outro plano, invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo de fluxos e partículas que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos e partículas com os quais estão coexistindo, somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura (pp. 158-160).
O Outro pode ser inominado (quando se toma o público ou a categoria superdimensionada de interesses difusos como na República) ou invisível (simplesmente desconhecido porque não há proximidade, mas só conexão pelo fato de ser humano). Essa invisibilidade essencial à vida pública (até mesmo para que se tenha mais imparcialidade e normatividade: menor personalismo), na rede social será um espectro, uma possibilidade demonstrável pela imaterialidade própria à rede de sociabilidades. Ainda com Rolnik (1994):
Assim a alteridade e seus efeitos, embora invisível, é real: nossa natureza é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro. Se considerarmos que a processualidade é este devir-outro – ou seja, a corporificação, no visível, das diferenças que vão se engendrando no invisível – ganha maior consistência a idéia de que a processualidade é intrínseca à(s) ordem(ns) que nos constitui(em) (p. 161).
Desse ponto de vista, a teleologia política e a interação social deveriam nutrir, fomentar uma nova base para o próprio relacionamento humano de fundo ético, participante, mobilizador da vida pública ou quando em público. Rolnik fala no "homem da ética":
O homem da ética que nos habita (mesmo que, quase sempre, muito timidamente) é o vetor de nossa subjetividade que transita no invisível: é ele quem escuta as inquietantes reverberações das diferenças que se engendram em nosso inconsciente e a partir daí nos leva a tomar decisões que permitam a encarnação de tais diferenças em um novo modo de existência, tanto no sentido de fazer novas composições, quanto no sentido de desmanchar composições vigentes. É o homem do inconsciente: operador da produção de nossa existência como obra de arte. Ele também guia nossas escolhas, só que selecionando o que favorece e o que não favorece a vida, tendo como critério a afirmação de sua potência criadora – daí porque chamá-lo de "ético" (p. 166).
Por fim, é o próprio caos, entendido como a ausência de uma estrutura rígida, definida ou definitiva e, portanto, mesmo que entendido o processo como "estrutura social" que, por exemplo, estará mais próximo desse movimento que rearticula e re-engendra permanentemente as suas próprias bases. Ou seja, essa condição mutável, não-nivelada, descontínua, fragmentada, imersa na rede social de subjetividades formada pela junção dos sujeitos e resultante das ações e intenções decorrentes da política, é definida, portanto, de acordo com a vontade ou disposição (navegação) dos infinitos participantes sociais. E é esse fluxo que permite ao Direito (bem como às demais instituições) ser modificável socialmente.
Para nós (políticos, teóricos ou não, tendo-se consciência disso ou não), sempre será muito cara essa metáfora da topologia mutável da rede social para definir o cidadão (com base na autonomia e na legitimidade das ações deslanchadas no "espaço público"), assim como em Rolnik a base da argumentação do homem ético está pautada na modernidade:
Construir uma subjetividade em que se encontra o mais ativo possível o homem da ética é estar próximo daquilo que vimos através da concepção contemporânea da Física: é um tipo de homem que entendeu que ordem e caos são indissociáveis e que aquilo que inquieta sua consciência é uma diferença engendrada no caos; por isso esta inquietação para ele não é o aterrador sinal de sua possível destruição, mas o apelo de uma necessidade de criar que se impõe no invisível campo dos afetos, e ele se dispõe a acolher este apelo – mais do que isso, ele deseja acolhê-lo (p. 169).
Mas, como entender a sociedade civil como princípio de alteridade sem que haja o componente do Estado e do Direito? De modo muito genérico, portanto, ainda nos restam duas questões para afirmar nosso campo de debate:
- A sociedade é uma natural construção humana ou essa abstração da vida material só veio a se realizar com a sociedade civil?
- Seja como instrumento, seja como processo teleológico humano-genérico, a política sempre esteve presente em todo o percurso do processo de nossa hominização?
Concluindo, podemos dizer que essa alteridade política discutida, e que envolve autonomia, ética, Direito e responsabilidade, propõe uma maioridade política a todos os envolvidos. Afinal, quando o Homo faber tomou a decisão de deixar de ser bando, simples predador e caminhou para o conhecimento (orientado por Prometeu), não tinha em mente uma sociedade inclusiva, realmente global e um Direito que respeitasse plenamente as regras de convivialidade?
Parece-nos que sim e por isso cabe ao Estado, por intermédio de seus agentes, que não apenas tutela ou presta assistencialismos, tanto quanto cabe ao cidadão que compreende essa dinâmica inter-relação entre a sociedade, o Direito e a Política, porque esse conjunto deve servir a todos e não apenas a si mesmo como meio de obtenção de vantagens pessoais. De certo modo, equivale a dizer de uma sociedade civil em que a política é levada a sério, com cidadãos maiores de idade, a fim de propor e processar a Política e o Direito. Nessa imbricação entre Direito, Política, Ética há subsunção da violência e da coerção no diálogo, na comunicação, na negociação, na legitimação global. Afinal, sem isso não há maioridade política, social ou jurídica.