Ordem de vocação hereditária. Problemática do artigo 1829, I do Código Civil Brasileiro

16/05/2018 às 21:22
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Analisa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relacionada à ordem de vocação hereditária, além da legislação correspondente.

Antes de adentrar na ordem de vocação hereditária propriamente dita, necessário se faz retomar algumas ideias básicas aplicáveis ao direito sucessório.

A definição de sucessão como instituto do direito sucessório liga-se à substituição do sujeito de uma relação jurídica, em razão do óbito de seu titular, ressalvando-se que nem todas as relações jurídicas são passíveis de transferência de titularidade. É o caso, por exemplo, dos direitos personalíssimos.

Trata-se, em consideração aos artigos 1784 e seguintes do Código Civil, da transmissão do acervo patrimonial (herança) deixado pelo falecido, aos herdeiros legítimos ou testamentários.

Para os fins concebidos, nos limitaremos à sucessão legítima, declinando algumas hipóteses descritas (ou não) no texto legal, acerca da ordem de vocação hereditária.

A norma contida no artigo 1829 do Código Civil descreve a ordem de vocação hereditária, compreendida como o rol de pessoas que deverão ser chamadas a participar da transferência de titularidade das relações patrimoniais pertencentes ao falecido.

Pois bem, o artigo 1829 determina o seguinte:

Artigo 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Não é demais apontar que a truncada redação do artigo 1829, inciso I, impôs algumas dúvidas interpretativas que têm sido dirimidas pelos Tribunais, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça.

O equívoco legislativo já pode ser notado na diferença legal imposta entre a sucessão do cônjuge e a do companheiro, cuja situação jurídica advém de união estável. Vale dizer, a sucessão da união estável foi regulamentada pelo Poder Legislativo diferenciando-o do regime do casamento, estando ela disciplinada no artigo 1790 do Código Civil.

O equívoco legislativo foi levado ao Supremo Tribunal Federal que reconheceu a repercussão geral da questão (Temas 498 e 809) e, por maioria de votos declarou, de forma incidental, a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil, equiparando o direito do companheiro de participar da herança, em caso de união estável, adotando-se o mesmo regime jurídico estabelecido para os cônjuges. As decisões referenciadas se encontram assim ementadas:

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 646.721. Relator: BARROSO, Luís Roberto. Publicado no DJ de 11-09-2017).

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL.  INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 878694/MG. Relator: BARROSO, Luís Roberto. Publicado no DJ de 06-02-2018).

Não havendo mais dúvida acerca da equiparação do regime jurídico sucessório de cônjuges e companheiros, estabelece-se os parâmetros interpretativos que devem permear a sucessão legítima, em consideração a ordem legalmente imposta.

É de fácil constatação que a ordem sequencialmente conferida à sucessão legítima deverá observar a seguinte sequência:  1º) São chamados a suceder os descentes, em concorrência com os cônjuges ou companheiros sobreviventes; 2º) na falta de descendentes, chamar-se-á os ascendentes, em concorrência com os cônjuges ou companheiros sobreviventes; 3º) Caso não haja descendentes ou ascendentes, os cônjuges ou companheiros sobreviventes herdarão sozinhos; 4º) Por fim, inexistindo descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro, serão chamados a suceder os colaterais até quarto grau.

A truncada redação apresentada pelo artigo 1829, I, do Código Civil trouxe, como já dito, alguns problemas interpretativos que vem sendo paulatinamente dirimidos pelos tribunais. Em regra, as dúvidas e questionamentos possuem nascedouro no regime de bens escolhido pelos cônjuges e companheiros.

Pela letra fria do artigo 1829, I, do Código Civil tem-se, por exclusão, que a concorrência entre descendentes e cônjuges não ocorrerá quando o falecido for casado no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único), ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Em suma, adotando-se interpretação literal da lei, a concorrência somente existiria quando o casamento (ou união estável) fosse regrado pelo regimento da comunhão parcial de bens e o autor da herança tivesse deixado bens particulares, hipótese em que, o cônjuge ou companheiro, além de meação concorreria com os descendentes, como herdeiro, no tocante aos bens particulares.

Impõe-se clara a omissão legislativa quanto a dois regimes: o da participação final nos aquestos e na separação de bens, adotada por meio de pacto antinupcial.

Diante de tais imperfeições legislativas, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu parâmetros de interpretação, até porque, a omissão legislativa não poderia redundar na ausência de produção de efeitos sucessórios para os regimes da separação convencional de bens e participação final nos aquestos.

Quanto aos cônjuges casados sob o regime da separação convencional total de bens (pacto antenupcial), o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido, afastando-se a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no artigo 1641 do Código Civil. É o que se extrai da decisão prolatada no Recurso Especial nº. 1382170/SP, disponibilizado no DJe em 25/05/2015, que se encontra assim ementada:

CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC.

1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil).

2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil.

Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil.

3. Recurso especial desprovido.

Na mesma linha é o entendimento lançado no Recurso Especial 1.472.945/RJ, disponibilizado no DJe em 18/11/2014, cuja ementa da decisão apresenta-se abaixo:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA. REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO CONVENCIONAL. PACTO ANTENUPCIAL POR ESCRITURA PÚBLICA. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CONCORRÊNCIA NA SUCESSÃO HEREDITÁRIA COM DESCENDENTES. CONDIÇÃO DE HERDEIRO. RECONHECIMENTO. EXEGESE DO ART. 1.829, I, DO CC/02. AVANÇO NO CAMPO SUCESSÓRIO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL.

1. O art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a garantir-lhe o mínimo necessário para uma sobrevivência digna.

2. O intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social.

3. O pacto antenupcial celebrado no regime de separação convencional somente dispõe acerca da incomunicabilidade de bens e o seu modo de administração no curso do casamento, não produzindo efeitos após a morte por inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial.

4. O fato gerador no direito sucessório é a morte de um dos cônjuges e não, como cediço no direito de família, a vida em comum. As situações, porquanto distintas, não comportam tratamento homogêneo, à luz do princípio da especificidade, motivo pelo qual a intransmissibilidade patrimonial não se perpetua post mortem.

5. O concurso hereditário na separação convencional impõe-se como norma de ordem pública, sendo nula qualquer convenção em sentido contrário, especialmente porque o referido regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência posta no art. 1.829, I, do Código Civil.

6. O regime da separação convencional de bens escolhido livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial), não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma cogente pela legislação (art. 1.641 do Código Civil), e no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente.

7. Aplicação da máxima de hermenêutica de que não pode o intérprete restringir onde a lei não excepcionou, sob pena de violação do dogma da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal de 1988).

8. O novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que os únicos deixados pelo falecido, direito que pelas mesmas razões deve ser conferido ao casado pela separação convencional cujo patrimônio é, inexoravelmente, composto somente por acervo particular.

9. Recurso especial não provido.

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A mesma linha interpretativa segue o Enunciado n. 270 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil:

'O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.'

Em que pese o Código Civil de 2002 ter dado especial proteção ao cônjuge, a legislação não excepcionou a situação jurídica do casamento contraído sob o regime da separação convencional de bens, de maneira que o Superior Tribunal de Justiça vem conferindo a interpretação acima colacionada, estabelecendo ao cônjuge casado sob esse regime, direito sucessório, sem as ressalvas contidas inclusive para o regime da comunhão parcial de bens, impostas pelo legislador.

Com o devido respeito ao entendimento do Tribunal, a interpretação conferida não se mostra a melhor opção, pois, pressupõe-se que a escolha do regime da separação convencional de bens, dentre outros motivos, possui razão de ser também na linha sucessória a ser adotada em caso de falecimento do titular da herança.

Tratando-se de relação patrimonial, muitas vezes o titular da relação jurídica visa, com a escolha do regime da separação convencional de bens, resguardar a herança de sua prole, na totalidade dos bens amealhados, para que não passem os filhos por dificuldade. Demonstra-se, ainda, a intenção de excluir da partilha os bens adquiridos na constância do casamento, nos termos do artigo 1641 do Código Civil, apontando-se esta, com o devido respeito a entendimentos contrários, a melhor orientação interpretativa a ser seguida. Entretanto, não foi este o posicionamento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, apresenta-se o que atualmente é aplicado em razão da interpretação conferida pelo STJ, em que se compreende que a concorrência do cônjuge e do companheiro com os descendentes ocorrerá da seguinte forma: 1) Não há concorrência quando o casamento for da comunhão universal de bens e separação obrigatória de bens. 2) Quando o casamento for o da comunhão parcial de bens, o cônjuge ou companheiro concorrerá com o autor da herança em hipótese de ter sido deixado pelo falecido bens particulares, estando a concorrência limitada a esses bens. 3) Quando o regime for o da separação convencional de bens, por ser o acervo patrimonial composto somente por acervo particular, a concorrência com os descendentes se dará sobre a totalidade da herança deixada. E, finalmente, no regime da participação final nos aquestos o entendimento prevalecente é que a concorrência deverá ocorrer nos mesmos moldes da comunhão parcial de bens, ou seja, quanto aos bens particulares.

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Sobre o autor
Bruno Mariano Frota

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Advogado e Servidor Público. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Direito Civil. Possui constante atuação na jurisdição de segundo grau junto ao TJDFT e ao TRF da 1ª Região. Foi membro integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Distrito Federal – OAB/DF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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