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Lei, justiça e bom senso

02/07/2019 às 16:00
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Ser constante em suas opiniões e fiel aos seus pontos de vista, eis a pedra de toque do homem honrado. Todavia, poderá suceder que somente lá para o diante caiamos na conta que o melhor alvitre era haver tomado por outra direção.

1. “Uma norma é a sua interpretação”, escreveu Miguel Reale, um dos mais altos espíritos de que justamente se orgulha e envaidece a cultura jurídica do País [1].

Ora:

“Interpretar, no sentido jurídico, é procurar o pensamento contido na lei, a significação das palavras, o alcance do texto, a explicação da frase” [2].

As mais das vezes a lei, de tão claros seus termos, escusa interpretação ou exegese: não há senão aplicá-la ao caso concreto. “In claris cessat interpretatio”, reza o retrilhado adágio latino, à maneira de advertência de que se não deve perverter o raciocínio, pois a ninguém é lícito negar o que a evidência mostra. Não é mister trazer o Sol ao meio do firmamento para que todos o vejam!

Mas, ainda quando clara como água de regato, pode dar-se o caso que a lei não seja de per si justa (e sequer, deitando a barra mais longe, lídima expressão da vontade popular). Eis por que infinito número delas não resiste à arguição de inconstitucionalidade nem se exime da tacha ou eiva de injusta, já que atentatórias dos princípios que regem as sociedades civilizadas.

Sobretudo na esfera criminal — que é o lugar próprio à reparação do direito violado por ofensa a bem jurídico penalmente protegido —, a função do juiz resume-se em dar a cada um o que lhe cabe.  Encerrada a instrução do devido processo legal, se não liquidada sua culpa, é o réu absolvido e mandado em paz; se, ao revés, a prova obtida com estrita observância das regras do contraditório processual e da plenitude do direito de defesa [3] não pôde menos de demonstrar-‑lhe a responsabilidade criminal, em vão pelejará contra o gládio implacável da Justiça. Não há aí que objetar. Tome a mão sobre o árduo assunto o preclaro Nélson Hungria, autor do Código Penal e seu mais abalizado exegeta: “A pena traduz primacialmente um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” [4].

A essa conta, ninguém — exceto se penalmente inimputável —  poderá forrar-se ao rigor da lei, que a todos iguala.

É de ciência vulgar (isto se aprende não só nos bancos acadêmicos mas também à porta do Fórum) que a impunidade passa pelo mais poderoso estímulo do crime.

Atraiu, por isso, ultimamente, acerbas críticas a tese de que, por amor do princípio constitucional da presunção de inocência, ou da não-culpabilidade (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), a pena imposta ao réu só era possível executar após o trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

Tal prática, a darmos crédito a resenhas que parecem fidedignas, somente o Brasil adota!

Embora nem sempre seja o número o melhor critério da verdade, essa estonteante exceção faz grande abalo em todo ânimo imparcial e avisado!

Tratando-se de autêntica “vexata quaestio”, àquele que a pretender desatar (o juiz, em especial) cumprirá eleger primeiro o padrão exegético por onde os sujeitos mais acreditados em saber e virtudes costumavam agitá-la.

Faz ao intento a soberba lição que, em livro a mais de um respeito admirável e digníssimo de ler (e ainda recomendar), ministrou o Prof. Goffredo Telles Junior.: deve o juiz “interpretar as leis com a lógica do jurista”. Advertiu, porém, o saudoso mestre das Arcadas: a lógica do jurista “não deve ser sempre a lógica do racional. Frequentemente, deve o jurista, em nome da justiça, substituir os rigores dessa lógica pela lógica do razoável, como bem ensinou Luiz Recasens Siches” [5].

Ora, descendo ao particular, teria foros de razoabilidade a decisão que, imolando na ara da presunção de inocência, obstasse a execução da pena do réu logo após o julgamento da causa-crime pelo Juízo de 2º Grau de Jurisdição?!

Seria sensato afirmá-lo, se, falando pela via ordinária, o argumento da inocência presumida cede, após a condenação do réu, ao da presunção de sua culpabilidade?!

Conformar-se-ia com os ditames da reta razão isto de se desconsiderarem os efeitos do julgado de 2a. Instância — derradeira etapa de análise da prova com cognição plena — e remeter-se a solução do litígio aos Tribunais Superiores, que já não versam matéria de fato, mas apenas de direito?!

Era decoroso fazer alguém tábua rasa de acórdão que, no julgamento de apelação (da Defesa ou da Acusação), proferiu o Tribunal de Justiça — órgão de exaurimento da jurisdição ordinária, com apuração inteira da responsabilidade criminal do réu — e, destarte, protrair “ad infinitum” o deslinde da controvérsia entretida nos autos do processo?!

Frisaria com a gravidade dos negócios da Justiça desfazer em decisão colegiada, proferida com escrupulosa observância do devido processo legal, para (em liberdade o réu, nada obstante condenado a penas extremadas) aguardar, não raro com insofrível delonga, a chancela da Superior Instância, que sói confirmá-la?! As reformas dos julgados inferiores na perspectiva do mérito, com efeito, segundo os cálculos mais favoráveis, não excedem o percentual ínfimo (1%)!

Procederia com discrição aquele que, mentindo à sua particular e honrosa condição de aplicador da lei, tivesse em pouco o princípio da tutela judicial efetiva, tornando desta sorte írrita a resposta penal do Estado?!

Atenderia, em suma, aos conselhos da prudência o que, só por generosa (e quiçá mal compreendida) inteligência do texto da lei, fizesse mais caso e cabedal da exceção do que da regra geral?!

Perguntadas sobre esses quesitos, as pessoas de alguma ilustração e decerto probas — de boas entranhas, diriam nossos maiores — não hesitariam em enunciar a resposta curial e aceitável, e isto com argumentos mui atendíveis.

2. Está além de toda a dúvida que, fenômeno intelectual inerente à condição humana, a variedade de opiniões tem entre nós a força e a eficácia de postulado ou garantia fundamental: “É livre a manifestação do pensamento”, dispõe a Constituição da República (art. 5º, nº IV).

A ciência da Filosofia patenteia o substrato dessa diversidade, e até antagonismo de ideias [6] ; é a área do Direito, no entanto, a que lhe depara maior voga e desembaraço. Com efeito, entre os que professam as carreiras jurídicas, máxime os investidos de função judicante, passa por moeda corrente o conhecido brocardo “cada cabeça, cada sentença” (“quot capita, tot sententiae”). [7]

Ser constante em suas opiniões e fiel aos seus pontos de vista, eis a pedra de toque do homem honrado. Todavia, “porque para saber e acertar não há mais que um caminho, e para errar infinitos”, conforme aquilo do profundo Vieira [8], poderá suceder que somente lá para o diante caiamos na conta que o melhor alvitre era haver tomado por outra direção.

Matéria não é essa para escrúpulos, nem pode meter em confusão caracteres sem jaça: afinal, mudar de parecer (“para melhor”, fique entendido) é próprio do sábio [9].

Nas tenazes desse dilema esteve por vezes também o mais eminente dos brasileiros: Rui Barbosa. O teor de seu proceder, nessas conjunturas, qual foi? Conheçamo-lo por inteiro:

“Felizes os que variam da ignorância para a ciência, do erro para a verdade. Afortunado o que, pecando um dia contra a verdade, ou contra a justiça, acorda, a tempo, do seu engano, e se retrata ainda utilmente do seu desvio. Benditas as mudanças de opinião, quando se operam neste sentido. Elas não abalam a consideração pública a quem a merecer. Antes recomendam à estima, ao respeito e à confiança de seus semelhantes o homem, que não se desdoire de as confessar, e sem rubor pratique a nobre ação de se desdizer abertamente, pondo a consciência acima do interesse, o dever acima da vaidade, antes que o desacerto, circulando abonado com o prestígio de um nome autorizado, comece a produzir consequências malfazejas” (Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 213).

Feriu de novo o ponto num de seus mais reputados livros:

“Pelo que toca ao variar das opiniões, deixem-me ter, mais uma vez, o consolo de trazer à praça como coisa de que me prezo, e não me pesa, a deliciosa culpa dos homens de consciência, a única em que hei de morrer impenitente. Beata, beata, beatissima culpa! Não mo tenham a mal os imutáveis. Deus os desencrue. Deus os reverta da pedra e cal em homens. Deus os ensine a mudar. Porque todo o aprender, todo o melhorar, todo o viver é mudar. De mudar nem mesmo o céu, o inferno ou a morte escapam. Mudar é a glória dos que ignoravam, e sabem, dos que eram maus, e querem ser justos, dos que não se conheciam a si mesmos, e já melhor se conhecem, ou começam a conhecer-se” (Rui Barbosa, Queda do Império, 1921, t. I, p. LXXX).

3. Quanto lhe custa, ao que muda de opinião, o renunciar a primitivas e inveteradas convicções, bem se adivinha. Ao discursar do tema, observou muito de estudo Orosimbo Nonato, provecto e laborioso ministro do Supremo Tribunal Federal:

“Todos os homens erramos. Ninguém possui a pedra lídia da verdade. (…) Ao juiz, essa confissão se torna penosa não apenas por afeição paternal que dedicamos aos partos do nosso entendimento, como dizia frei Luís de Sousa, senão ainda pelo reconhecimento dos grandes males suscitados pelas oscilações de uma jurisprudência voltária e flexível, matriz de inseguranças perturbadoras do comércio jurídico e das relações do consórcio civil.

Mas, a verdadeira coerência é a moral, e tributo constante e infalível só é devido à verdade que o juiz julga identificar em face de novos estudos retificadores de erros passados. Se a consciência dessa situação se lhe impõe com as cores da evidência, todas as demais considerações se dissipam e se evaporam: confessará ele o engano e decidirá de modo diferente em obséquio à verdade” (Revista Forense, vol. 177, p. 143).

Isto mesmo sentiu o culto e austero ministro Carlos Maximiliano, como revelam as memoráveis palavras que pronunciou na oração de despedida do Supremo Tribunal Federal: “Não trepidei em mudar de voto, pública e declaradamente, toda vez que novos argumentos ou provas concludentes me convenceram do desacerto do veredictum anterior: acima do melindre pessoal de cada um está a sacrossanta causa da Justiça.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16a. ed., p. 377; Editora Forense).

Tais exemplos de dignidade de inteligência deram, pouco há, Ministros do Supremo Tribunal: obrando com bom senso — que é a estrela-guia do Direito —, e imbuídos de altiva e desusada coragem moral, tomaram a seu cargo interpretar embaraçosos textos de lei segundo a craveira do razoável [10]. Sobre fazer justiça, como é de regra, realçaram o lustre da veneranda Instituição e avigoraram a confiança que nela deve ter o povo. Conspiraram, ao demais, para segurar a Pátria contra o execrando agente que a estiola e desfibra: a corrupção.

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Animados de igual propósito, já tocaram a rebate, com boa fortuna, e levantaram-se em benemérita cruzada, para pôr cobro às graves mazelas que afligem os brasileiros, os briosos patrícios Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo, Janaína Paschoal, Modesto Carvalhosa, Luís Carlos Crema, Laercio Laurelli, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Aloísio de Toledo César, Luiza Eluf Nagib, Roberto Livianu, Augusto Nunes, Felipe Moura Brasil, Marco Antonio Villa, José Maria Trindade, Vera Magalhães, Claudio Tognolli, Carlos Andreazza, Marcelo Madureira, Joice Hasselmann, José Paulo de Andrade, Salomão Ésper, Rafael Colombo (por nomear apenas alguns dentre os principais).

A quantos — nos circuitos da Justiça, do Direito e da Imprensa — tiveram a honra e a glória de merecê-los, convêm conscientes aplausos, não apenas a simpatia e o incentivo dos homens de bem, que amam o Brasil, praticam a Justiça e professam a Verdade!


Notas

[1]    Filosofia do Direito, 2016, p. 571; Editora Saraiva.

[2]    Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 74.

[3]    “(...) só merece o nome de defesa a que for livre e completa” (José Soares de Mello, O Júri, 1941, p. 16).

[4]    Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.

[5]    Goffredo Telles Junior, A Folha Dobrada, 1999, p. 161; Editora Nova Fronteira.

[6]   “(...) até entre os anjos pode haver variedade de opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria nem de sua santidade”, pregou o eloquente Vieira (Sermões, 1959, t. IV, p. 216; Porto).

[7]   O vulgo profano, cuja malícia e criatividade sobreexcedem a toda medida, cunhou o anexim: “Duas coisas em que se não pode confiar: b. de criança e cabeça de juiz” (cf. Rubem Alves, Ostra Feliz não Faz Pérola, 2008, p. 33; Editora Planeta do Brasil).

[8]    Op. cit., t. VIII, p. 209.

[9]    “Sapientis est mutare consilium”, afiança o prolóquio.

[10]  O estado da questão. A execução provisória da pena repugna ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.)? O tema foi exposto em toda a luz pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição, no julgamento do “Habeas Corpus” nº 126.292-SP. Após considerar que, “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”, propôs orientação que restaurou tradicional entendimento a respeito do ponto especial, isto é: “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência” (STF; HC nº 126.292-SP; Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; 17.2.2016).

Ao julgar o Agravo Regimental nº 964.246-SP, o Pretório Excelso, por maioria de votos, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria. Contém a conclusão do aresto a seguinte substância: “(...) a reafirmação da atual jurisprudência desta Corte, fixando, para efeitos de repercussão geral, a tese de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal” (STF; ARE nº 964.246-SP; Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; j. 11.11.2016).

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Lei, justiça e bom senso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5844, 2 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66286. Acesso em: 5 nov. 2024.

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