A Lei nº 13.491/17: aspectos teóricos e práticos da atuação da polícia judiciária militar e da justiça estadual do Rio de Janeiro

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22/05/2018 às 19:07
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Em 2017, foi publicado no Diário Oficial da União a Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que altera substancialmente o Código Penal Militar, trazendo uma nova conceituação de crime militar. Isso traz mudanças significativas para as polícias militares.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

2. ATRIBUIÇÃO INVESTIGATIVA DAS POLÍCIAS MILITARES

2.1 O Inquérito Policial Militar

3. A ESTRUTURA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL

3.1 Auditoria de Justiça Militar do Rio de Janeiro

4. EXERCÍCIO DA AUTORIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA MILTAR DIANTE DA LEI 13.491/17

4.1 O que é crime militar

4.2 Crime doloso contra a vida de civil

4.3 Crime militar praticado por civil na esfera estadual

4.4 As soluções trazidas para a atividade investigativa

5. O IMPACTO DA NOVA LEI SOBRE A AUDITORIA DE JUSTIÇA MILITAR

5.1 As complexidades trazidas para o processo penal militar

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

7. REFERÊNCIAS BILIOGRAFICAS

1. INTRODUÇÃO

A edição da Lei 13.491/17 trouxe relevantes mudanças para a atuação das autoridades de polícia judiciária militar e para a Justiça Militar, principalmente nos Estados, com atenção especial ao crime doloso contra a vida de civil praticado por militar em serviço. Esse delito em especial ergueu um questionamento fundamental: se a competência é do tribunal do júri, retificando a redação anterior, que versava Justiça Comum, será possível a criação de tribunais do júri na Justiça Militar para o julgamento desse crime?

Além disso, a nova lei deu uma nova definição ao crime militar, que em fase processual ou pré processual segue as regras do CPPM para sua instrução. Entretanto, para novos crimes militares, que são regidos pelas normas do Código de Processo Penal comum (CPP), poderá ser aplicada as regras do CPP ao indiciado ou acusado civil ou militar? Como por exemplo a estipulação da fiança, a aplicação da suspensão condicional do processo. A ação penal militar pode ser condicionada à representação vítima?

Esse estudo é de grande importância em razão de se tratar de matéria muito recente para o Direito Militar e afetar as esferas de atribuição investigativa das autoridades de polícia judiciária militar e a própria competência da Justiça Militar, trazendo a discussão sobre o julgamento de militares em tribunal do júri militar, que na atualidade não existe, além dos questionamentos acima mencionados. É possível também verificar os benefícios e a solução que a lei veio proporcionar ao duplo de inquérito e até duplo processo que eram submetidos policiais militares, em razão de que no mesmo fato havia a possibilidade do policial militar, em serviço, incorrer em crime comum, investigado pela Polícia Civil e processado pela Justiça Comum, um crime militar, investigado pela Polícia Militar e julgado pela Justiça Militar e ainda um crime militar, investigado pela Polícia Militar, e também, não em raros casos, investigado ilegalmente e paralelamente pela Polícia Civil, sendo processado pela Justiça Comum, no caso do crime doloso contra a vida de civil.

2. ATRIBUIÇÃO INVESTIGATIVA DAS POLÍCIAS MILITARES

Às policias militares cabe a responsabilidade sobre o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública atribuídos pelo artigo 144 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Além disso, inserida num contexto geral de preservação da ordem pública e positivada nos Códigos Penal e Processual Penal Militar, está a atividade pré processual nos crimes militares, a qual é oriunda da autoridade de polícia judiciária militar.

A polícia judiciária militar será exercida no âmbito estadual pela Polícia Militar e pelo Corpo de Bombeiros Militar e está vinculada à função exercida pelo Oficial, que a exercerá de maneira originária ou delegada. Originariamente, compete aos comandantes, chefes e diretores de unidades militares as medidas de polícia judiciária militar, sendo possível delegar esses poderes a outros oficiais, como preconiza o art. 7º do CPPM:

Exercício da polícia judiciária militar

Art. 7º A polícia judiciária militar é exercida nos termos do art. 8º, pelas seguintes autoridades, conforme as respectivas jurisdições:

a) pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em todo o território nacional e fora dele, em relação às forças e órgãos que constituem seus Ministérios, bem como a militares que, neste caráter, desempenhem missão oficial, permanente ou transitória, em país estrangeiro;

b) pelo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em relação a entidades que, por disposição legal, estejam sob sua jurisdição;

c) pelos chefes de Estado-Maior e pelo secretário-geral da Marinha, nos órgãos, forças e unidades que lhes são subordinados;

d) pelos comandantes de Exército e pelo comandante-chefe da Esquadra, nos órgãos, forças e unidades compreendidos no âmbito da respectiva ação de comando;

e) pelos comandantes de Região Militar, Distrito Naval ou Zona Aérea, nos órgãos e unidades dos respectivos territórios;

f) pelo secretário do Ministério do Exército e pelo chefe de Gabinete do Ministério da Aeronáutica, nos órgãos e serviços que lhes são subordinados;

g) pelos diretores e chefes de órgãos, repartições, estabelecimentos ou serviços previstos nas leis de organização básica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica;

h) pelos comandantes de forças, unidades ou navios (grifo nosso)

Delegação do exercício

§ 1º Obedecidas as normas regulamentares de jurisdição, hierarquia e comando, as atribuições enumeradas neste artigo poderão ser delegadas a oficiais da ativa, para fins especificados e por tempo limitado (grifo nosso)

Com fruto nesse exercício, haverá a apuração do crime militar, alínea “a” do art. 8º do CPPM, em procedimentos administrativos escritos e formais previstos em lei. São procedimentos de polícia judiciária militar: o auto de prisão em flagrante delito (APF), a instrução provisória de deserção, a instrução provisória de insubmissão e o inquérito policial militar (IPM).

2.1 O Inquérito Policial Militar

O IPM é um procedimento administrativo pré-processual (instrução provisória, art. 9º CPPM) com finalidade de buscar a verdade real, com imparcialidade, sobre fato criminoso. É um conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária militar para a apuração de uma infração penal militar, a fim de auxiliar o Ministério Público (MP), dominus litis[1], para que possa titular em juízo a denúncia[2].

Em que pese expressa parcela da doutrina considere desta maneira a natureza do IPM, há que se considerar o entendimento de Luiz Flavio Gomes [3] no sentido de afastar a ideia de inquisa destinada apenas a munir a acusação de elementos probatórios para os órgãos competentes. Do contrário, seria uma espécie filtro processual como forma de controle, equilíbrio e separação de funções dos poderes da Administração. Nesse sentido, ele assevera:

[...] a investigação preliminar cumpre a ‘função de filtro processual contra acusações infundadas’, embora a sua própria existência já ‘configure um atentado ao chamado status dignitatis do investigado’, e daí decorrem duas conclusões: a primeira é que a investigação prévia através do inquérito policial é uma garantia constitucional do cidadão em face da intervenção do Estado na sua esfera privada, porque ela atua como salvaguarda do jus libertatis e do status dignitatis; a segunda é que a investigação prévia não é somente fase anterior do processo penal, porque mesmo quando não há processo a investigação terá cumprido um papel na ordem jurídica.[...]

Nesse entendimento, é evitado o monopólio da atuação de uma parcela da administração sobre todas as demais, prevenindo o abuso do poder. Vide a persecução criminal: “dividida entre Poder Executivo, que realiza a investigação criminal; Ministério Público, como dominus litis; Poder Judiciário, que aplica a lei penal e Poder Legislativo, que elabora as leis processuais e materiais referentes à persecução criminal”.

O IPM está disciplinado nos arts. 9º a 28º do CPPM e todos os crime militares, com exceção da insubmissão e da deserção, que têm procedimento sumário próprio, podem ser objeto de apuração através dele.

Sua instauração é realizada formalmente por comandante, chefe ou diretor de unidade militar, ou autoridade por estes delegada, através de instrumento denominado de portaria, respeitado o devido critério de aderência ao território para definição de atribuição.

Modos por que pode ser iniciado

Art. 10. O inquérito é iniciado mediante portaria:

a) de ofício, pela autoridade militar em cujo âmbito de jurisdição ou comando haja ocorrido a infração penal, atendida a hierarquia do infrator;

b) por determinação ou delegação da autoridade militar superior, que, em caso de urgência, poderá ser feita por via telegráfica ou radiotelefônica e confirmada, posteriormente, por ofício;

c) em virtude de requisição do Ministério Público;

d) por decisão do Superior Tribunal Militar, nos termos do art. 25;

e) a requerimento da parte ofendida ou de quem legalmente a represente, ou em virtude de representação devidamente autorizada de quem tenha conhecimento de infração penal, cuja repressão caiba à Justiça Militar;

f) quando, de sindicância feita em âmbito de jurisdição militar, resulte indício da existência de infração penal militar.

Como elencado no art. 10 do CPPM, a instauração será de oficio[4], pela autoridade militar, a via mais comum, pelo requerimento de parte ofendida ou requisição do MP. Desde a instauração do curso procedimental através da portaria, independe de provocação, obrigatoriamente deve ser instaurado, conduzido e encerrado, diante de notícia criminis [5] ou suspeita crível da prática de uma infração penal militar. Há, portanto, a característica da oficiosidade.

A instauração também pode ocorrer por requisição do MP à autoridade de polícia judiciária militar, que não poderá se recusar a fazê-lo, em razão da previsão legal da alínea “c” do art. 10 do CPPM.

De maneira diversa da anterior, a instauração de IPM pode decorrer de decisão do órgão recursal: Superior Tribunal Militar (STM), ou na esfera estadual, do Tribunal de Justiça correspondente (militar ou comum). Frise-se que a lei processual penal militar não fala em requisição (ordem) e sim em decisão do STM, que irá remeter os autos ao MP para que este requisite a sua instauração.

Há ainda a possibilidade de instauração através de requerimento da parte ofendida ou de seu representante legal. Como assevera Cicero Robson Coimbra Neves[6] :

A lei distingue aqui as figuras do requerimento e da representação. Requerimento é a peça do ofendido, ou de seu representante legal (ascendente, descendente etc.), em que há o pedido de instauração de inquérito policial militar. Representação, por outro foco, é simplesmente o relato do fato, que em tese constitui infração penal militar, levado à autoridade de polícia judiciária militar por alguém que não tem interesse direto na persecução criminal, por qualquer cidadão.

Em caso de indeferimento o CPPM não prevê o devido recurso, contudo, tem previsão (art. 33) de que qualquer pessoa no exercício de representação pode provocar o MP, fornecendo informações de fato criminoso na esfera militar. Isso significa representar ao MP, fornecendo indícios de autoria e materialidade do ilícito militar, e este com poder legal, poderá fazer requisição de instauração do IPM.

Outros procedimentos ou processos administrativos de investigação preliminar, bem como o auto de prisão em flagrante delito (APF) podem ensejar a instauração de um IPM, não somente a sindicância[7] como está expresso na lei (alínea f do art. 10), contanto que traga em seu bojo a notícia de um crime. No entanto, se esses elementos forem suficientes em investigação preliminar ou APF que possibilite a formação da opnio delict [8] do MP, a instauração será desnecessária, nos termos da art. 27 e alínea a do art. 28 do CPPM

Suficiência do auto de flagrante delito

Art. 27. Se, por si só, for suficiente para a elucidação do fato e sua autoria, o auto de flagrante delito constituirá o inquérito, dispensando outras diligências, salvo o exame de corpo de delito no crime que deixe vestígios, a identificação da coisa e a sua avaliação, quando o seu valor influir na aplicação da pena. A remessa dos autos, com breve relatório da autoridade policial militar, far-se-á sem demora ao juiz competente, nos termos do art. 20

Dispensa de Inquérito

Art. 28. O inquérito poderá ser dispensado, sem prejuízo de diligência requisitada pelo Ministério Público:

a) quando o fato e sua autoria já estiverem esclarecidos por documentos ou outras provas materiais; (grifo nosso)

b) nos crimes contra a honra, quando decorrerem de escrito ou publicação, cujo autor esteja identificado;

c) nos crimes previstos nos arts. 341 e 349 do Código Penal Militar.

Ante o exposto, é possível concluir que apesar de ser uma importante ferramenta de auxílio ao poder judiciário o IPM é prescindível, podendo ser substituído por outras peças de informação valoradas suficientemente acerca de crime militar.

3. A ESTRUTURA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL

As polícias militares, bem como os corpos de bombeiros militares, são instituições que integram o sistema de segurança pública. Cabe à primeira a responsabilidade sobre a execução da polícia ostensiva e preservação da ordem pública, e as funções de defesa civil competem ao segundo, como preconiza o art. 144 da Constituição Federativa da República do Brasil de 1988 (CRFB/88):

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

[...]

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (grifo nosso)

São corporações hierarquizadas com base nos princípios da hierarquia e da disciplina, em cargos escalonados de acordo com a antiguidade e responsabilidade da seguinte forma:

1. Oficiais – 2º e 1º tenentes, capitão, major, tenente-coronel e coronel.

2. Praças – soldado, cabo, 3º, 2º, 1º sargentos e subtenente.

Cabe salientar que deixaram de ser considerados servidores públicos a classe dos militares estaduais a partir da Emenda Constitucional nº 18 de 1998: “Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.

Para essa classe especial de agente do Estado o foro é privilegiado, sendo julgados pelos crimes militares, via de regra, pelas Justiças Militares. Essa Justiça especializada é competente para processar e julgar os crimes militares definidos em lei conforme prevê a art. 124 da CRFB 88:

Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

O CPPM em seu art. 82 ratifica isso: “O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:” (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 7.8.1996).

A CRFB prevê também que os Estados poderão organizar sua justiça, sendo a competência dos tribunais definidas na Constituição.

A Justiça Militar Estadual é uma instituição criada por lei, mediante iniciativa do Tribunal de Justiça de cada Estado, sua competência é para e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, com exceção do crime doloso contra a vida de civil, cuja competência é do júri, atualmente na Justiça Comum.

Sua composição difere da Justiça Militar da União (JMU), que tem previsão na Lei 8457/1992, esta é composta da seguinte maneira:

I- Superior Tribunal Militar

II- Auditoria de Correição (órgão de fiscalização e orientação judiciário-administrativa)

III- Conselhos de Justiça (nas sedes das auditorias)

IV- Juízes Auditores e Juízes Auditores Substitutos

A função de Justiça Militar estadual no Rio de Janeiro é definida no Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro, nos art. 56 a 60, da seguinte forma:

I – Órgão de 1º instância - Juiz de Direito do Juízo Militar e Conselhos de Justiça - Os Conselhos são compostos por oficiais integrantes da Polícia Militar e/ou Corpo de Bombeiros Militar, de acordo com a corporação a que pertence o acusado, executando o julgamento de seus pares pelos crimes militares praticados. Esses oficiais durante a permanência no conselho são juízes militares, e seus votos têm o mesmo peso que o juiz de direito (presidente). Os Conselhos, diferente do que ocorre na JMU, são presididos pelos juízes de direito do juízo militar. Esse juiz atua singularmente quando o crime militar é praticado contra civis e em ações judiciais contra atos disciplinares militares, exceto nos crimes dolosos contra a vida. Os conselhos funcionarão nas sedes das Auditorias, cada uma delas com um juiz auditor (juiz de direito do juízo militar na esfera estadual)

São duas as espécies de Conselhos de Justiça, na esfera estadual ou federal:

CONSELHO PERMANENTE

Juiz auditor (JMU) ou juiz de direito do juízo militar + 01 oficial superior + 03 oficiais até capitão

Julgar praças e civis (JMU)

Mudança por sorteio a cada 3 meses

Cada conselho pode participar de uma parte do processo

Nas forças armadas há um conselho para cada força. Em havendo concurso, o mais antigo que cometeu o delito é puxado para o conselho de sua força. O mesmo ocorre na instância estadual

CONSELHO ESPECIAL

Juiz auditor (JMU) ou juiz de direito do juízo militar + 04 juízes militares (oficiais)

Julgar oficiais acusados de crime militar

O conselho permanece durante todo o processo, também por sorteio

II - Órgão de 2º instância – Tribunal de Justiça Militar ou Tribunal de Justiça – Recebimento dos recursos interpostos às decisões de primeira instância. Compete também decidir sobre a perda do posto dos oficiais e da graduação das praças.

Atualmente apenas os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, possuem Tribunais de Justiça Militar

3.1 Auditoria de Justiça Militar do Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, a AJMERJ, organizada conforme Lei Federal nº 8.457/92, é a vara criminal de 1º instância da Justiça Militar com competência para processar e julgar todos os crimes militares praticados por policiais e bombeiros militares do Estado, um efetivo aproximado de 60 mil militares. Isso ocorre em razão do Estado não possuir Justiça Militar Estadual. Urge ressaltar, a possibilidade de sua criação bem como dos Tribunais de Justiça Militar (TJM) nos estados em que o efetivo da Polícia Militar seja superior a vinte mil integrantes, conforme dispõe o § 3º do art. 125 da Constituição Federal:

§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.

A Auditoria recebe das Organizações Policiais Militares (OPM) os inquéritos solucionados pelas autoridades militares através das 1º e 2º Promotorias de Justiça da AJMERJ, que são remetidos pelas Corregedorias Internas da Polícia Militar (CintPM) de acordo com a correspondência territorial de cada corregedoria.

O efetivo de militares estaduais no Rio de Janeiro é três vezes maior do que o previsto para a criação da Justiça Militar estadual (JME), o que já justificaria o feito.

Além disso, volume de processos existentes após a ampliação trazida pela lei 13.491/17 de fato aumentará substancialmente, isso pode indicar que o momento para o Estado que não possui a estrutura de uma Justiça Militar não seja tão oportuno, entretanto ante a necessidade da resolução de problemas que a lei trará, é preciso que o Estado se adeque o mais breve possível, criando de acordo com a previsão legal a JME e o TJM do Estado do Rio de Janeiro.

4. EXERCÍCIO DA AUTORIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA MILTAR DIANTE DA LEI 13.491/17

A nova lei insere ao Direito Militar três eixos de modificação ao art. 9º do Código Penal Militar, que são:

  1. A redefinição do crime militar, inciso II do art. 9º do CPM, abrangendo agora os crimes previstos na legislação penal comum;
  1. A retificação de competência para os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares estaduais contra civis, § 1º do art. 9º do CPM;
  1. A ratificação de competência da Justiça Militar da União para os crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares das Forças Armadas, § 2º do art. 9º do CPM;

Esse estudo será focado apenas nos dois primeiros eixos, que são pertinentes à atividade de polícia judiciária militar na esfera estadual.

Com a finalidade de dar respaldo e segurança jurídica às ações militares de Garantira da Lei e da Ordem (GLO) das Forças Armadas e de modernização à legislação militar, garantindo autoridade e o exercício da atividade do comandante da instituição militar, foi proposto e aprovado o projeto de lei nº 5.768 de 2016 na Câmara dos Deputados e nº 44 de 2016 no Senado Federal, trazendo as inovações relevantes no art. 9º do Código Penal Militar, que define os crimes militares em tempo de paz, alterando o inciso II e criando dois parágrafos, nos termos abaixo:

a) Alteração do inciso II do art. , do Código Penal Militar:

Redação anterior:

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

Redação atual:

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017) (grifo nosso)

b) Inclusão dos artigos e e modificação do parágrafo único do art. do Código Penal Militar:

Redação anterior:

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011)

Redação atual:

§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017) (grifo nosso)

§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:

a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica;

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;

c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar;e

d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.

Diante das modificações supracitadas, será analisada a repercussão e a aplicação deste dispositivo juntamente com o Código de Processo Penal Militar na atividade da Polícia Militar do Rio de Janeiro, mas antes de tudo, deve ser compreendida a nova definição do crime militar.

4.1 O que é crime militar

Muito já se discutiu acerca dos critérios de definição do crime militar, havendo discussão em defesa do critério em razão do sujeito ativo (ratione personae), do local em que ocorreu o crime ( ratione loci), da matéria que está contida no fato ilícito ( ratione materiae) e do período em que o fato fora cometido (ratione temporis). Esses critérios estão estabelecidos nos próprios incisos do art. 9º, o que anteriormente à CRFB/88 suscitava confusão sobre qual poderia ser preponderante em relação ao outro. Entretanto, o critério adotado para definição de crime militar é o ratione legis, ou seja, são crimes militares os definidos no Código Penal Militar, sendo: art. 9º crimes militares em tempo de paz, e o art. 10º, em tempo de guerra. Critério evidenciado na Constituição Federal pelo disposto nos arts. 124 e 125, § 4º.

Ainda assim, como esse critério estabelecido na CRFB/88, não era simples qualificar um delito como militar, como assevera Neves,[9] “uma das principais dificuldades no estudo do Direito Penal está em diferenciar o delito militar do delito comum, e tal distinção de suma importância, uma vez que várias consequências tomarão corpo após tal posição.”

Anteriormente à Lei 13.491/17, havia uma complexidade para definir o delito militar, como explica o citado autor:

Por vezes, no entanto, a decisão por crime comum ou militar será muito complexa, suscitando um verdadeiro conflito de normas que, embora aparente, deve ser solucionado para não possibilitar dupla interpretação.

O conflito aparente de normas (ou concurso aparente de normas) é a “situação que ocorre quando ao mesmo fato, parecem ser aplicadas duas ou mais normas, formando um conflito apenas aparente. Surge no universo da aplicação da lei penal, quando esta entra em confronto com outros dispositivos penais, ilusoriamente aplicáveis ao mesmo caso”.

Para a solução dos aparentes conflitos que eventualmente surjam, os operadores do Direito, para a escolha da norma penal adequada para abranger o caso analisado, lançam mão de alguns princípios, a saber: especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade. (grifo do autor)

Diante do exposto, antes da Lei 13.491/17, para definição do crime militar deveria estar evidenciado os seguintes quesitos no fato ilícito:

1ª) Fato previsto como delito na Parte Especial do Código Penal Militar, a partir do art. 136;

2ª) Previsão das circunstâncias em um dos incisos do art. 9º do CPM;

3ª) Inexistência de excludentes de ilicitudes do art. 42 do CPM.

Cabe salientar, a posição do renomado doutrinador Coimbra Neves a respeito dessa análise. Para ele, além do fato se amoldar à parte especial do CPM e as circunstâncias estarem previstas em um dos incisos do art. 9º, o sujeito ativo do crime também deve poder ser processado e julgado pela Justiça Militar, que apreciará o delito.

Com a devida vênia, não é possível corroborar com esse pensamento em razão do próprio critério definido na CFRB de 1988, que estabeleceu a lei como definidora do crime militar, além disso, em termos práticos, isso traria algumas implicações problemáticas e sem resposta que serão esplanadas mais adiante neste trabalho, no tópico 4.3.

A avaliação decisória das autoridades militares bem como do próprio policial condutor das ocorrências ficava prejudicada ao analisar o primeiro quesito, em diversos momentos em que, num único fato, pudesse caracterizar um crime comum e um crime militar. Isso gerava transtornos administrativos, animosidade entre as Polícias Civil e Militar e principalmente para o policial que por muitas vezes era submetido a mais de um procedimento apuratório (IPM, IP, sindicância, averiguação) e até processo criminal em ambas as justiças (comum e militar), problemáticas essas que serão discutidas em tópico específico.

Com a edição da Lei 13.491/17 o rol dos crimes militares aumentou substancialmente e redefiniu o crime militar em tempo de paz, simplificando demasiadamente sua configuração, principalmente, diante da hipótese de crimes comuns sendo praticados simultaneamente àqueles.

Para definição do crime militar atualmente deve estar evidenciado os seguintes quesitos no fato ilícito:

1ª) Fato previsto como delito na Parte Especial do Código Penal Militar ou em qualquer legislação penal;

2ª) Previsão das circunstâncias em um dos incisos do art. 9º do CPM;

3ª) Inexistência de excludentes de ilicitudes do art. 42 do CPM.

É possível perceber que o primeiro quesito ao ser avaliado pela autoridade militar ou policial condutor da ocorrência, não trará qualquer dificuldade, pois não existe mais a possibilidade de concurso entre crime comum e militar no mesmo fato, eliminando diversas problemáticas.

Nota-se que os crimes militares tipificados de maneira idêntica no Código Penal Militar e na legislação vão seguir a mesma lógica de antes para configuração, entretanto houve a adição de todos os tipos penais constantes da legislação penal comum e que não possuem previsão idêntica no Código Penal Militar, e que se enquadrados em uma das alíneas do inciso II do art. 9º, serão crimes militares:

Crimes militares em tempo de paz

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – [...]

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar; (grifo nosso)

f) revogada.

III – [...]

São os novos crimes militares, aos quais alguns doutrinadores e estudiosos chamam de crimes militares extravagantes pelo fato de estarem tipificado em lei diversa ao Código Penal Militar.

Na realidade, a classificação desses crimes, respeitando a visão da doutrina penal comum, qual seja uma “teoria topográfica”, esses novos crimes devem ser considerados crimes impropriamente militares.

Essa teoria é explicada por Neves[10]:

[...]

A doutrina penal comum, pouco interessada no Direito Penal Militar, simplificou a cisão, encontrando na posição do crime, ou nos elementos constitutivos do tipo, a resposta ideal.

Segundo essa abordagem, os crimes propriamente militares têm definição diversa da lei penal comum ou nela não se encontram. Seriam crimes militares próprios, dessarte, aqueles de que trata o inciso I do art. do CPM; e impropriamente militares os abrangidos pelo inciso II do mesmo dispositivo.

Essa é a visão predominante entre os autores de Direito Penal comum, que a expõem, em regra, quando tratam da reincidência, em especial o inciso II do art. 64 no Código Penal comum. Nesse sentido, Celso Delmanto afirma que crimes militares próprios são “os delitos que estão definidos apenas no CPM e não, também, na legislação penal comum”. Vide, ainda, Fernando Capez, para quem crimes propriamente militares são aqueles “definidos como crimes apenas no Código Penal Militar”

Embora, como dito, predominante na doutrina penal comum, é possível encontrar autores de Direito Penal Militar que preferem essa teoria, a exemplo do que ocorre com Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, assinando que a “doutrina brasileira basicamente estabelece que duas são as espécies de crimes militares, os crimes propriamente militares, que são aqueles que se encontram previstos apenas e tão somente no Código Penal Militar, como, por exemplo, a deserção, a insubmissão, o motim, o desacato a superior, entre outros, e os crimes impropriamente militares, que são aqueles que se encontram previstos tanto no Código Penal Brasileiro como também no Código Penal Militar, como exemplo, o furto, o roubo, a lesão corporal, o homicídio, a corrupção, a concussão, entre outros(grifo nosso)

A tabela a seguir resume esse entendimento:

Crime militar extravagante

“Código Penal + leis extravagantes”

Ex: aborto, terrorismo, abuso de autoridade.

Cabe esclarecer que boa parte de doutrinadores do direito militar são adeptos da “teoria Clássica”, na qual crime propriamente militar é aquele que só pode ser praticado por militar. Entretanto não seria correto afirmar que crimes militares são próprios ou impróprios simplesmente pelo fato de poderem ser ou não cometidos somente por militares. Isso porque, lei admite o concurso de agentes. Além disso admite que as circunstâncias pessoais quando forem elementares para o crime se comuniquem aos consortes, sendo perfeitamente possível, que um civil seja coautor em um crime propriamente militar. Há inclusive julgado da Suprema Corte do país nesse sentido:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME MILITAR. DENÚNCIA. ATIPICIDADE. CONCURSO DE AGENTES. MILITAR FUNCIONÁRIO CIVIL. CIRCUNSTÂNCIA DE CARÁTER PESSOAL, ELEMENTAR DO CRIME. APLICAÇÃO DA TEORIA MONISTA. Denúncia que descreve fato típico, em tese, de forma circunstanciada, e faz adequada qualificação dos acusados, não enseja o trancamento da ação penal. Embora não exista hierarquia entre um sargento e um funcionário civil da Marinha, a qualidade de superior hierárquico daquele em relação à vítima, um soldado, se estende ao civil porque, no caso, elementar do crime. Aplicação da teoria monista. Inviável o pretendido trancamento da ação penal. HABEAS indeferido. (HC 81438, Relator (a): Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 11/12/2001, DJ 10052002 PP00068 EMENT VOL0206801PP00133)

Ante de todo o exposto, é possível perceber que a ampliação do rol dos crimes militares é bastante considerável, e para se ter uma noção ainda melhor, a relação abaixo ilustra legislações especiais, além do Código Penal comum, que o art. agora passa abranger, se o fato for praticado nas condições do inciso II:

  1. Lei dos crimes Hediondos (previsto na Lei nº 8.072/1990);
  2. Lei dos crimes de Tortura (previsto na Lei nº 9.455/97);
  3. Lei dos crimes de Terrorismo (previstos na Lei nº 13.260/16);
  4. Lei dos crimes de Drogas (previstos na Lei nº 11.343/2006);
  5. Lei das Contravencoes Penais (previstos na Lei nº 3.688/1941);
  6. Lei dos Crimes de Preconceito de Raça ou Cor (previstos na Lei nº 7.716/1989);
  7. Lei dos crimes de Abuso de Autoridade (previstos na Lei nº 4.898/65);
  8. Lei dos Crimes de Responsabilidade (previstos na Lei nº 1.079/50);
  9. “Lei Maria da Penha” (previstos na Lei nº 11.340/2006);
  10. Lei do Código de Trânsito Brasileiro (previstos na Lei nº 9.503/1997);
  11. Lei do Estatuto do Desarmamento (previstos na Lei nº 10.826/2003);
  12. Lei dos crimes contra o Meio Ambiente (previstos na Lei nº 9.605/1998);
  13. Lei dos crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor (previstos na Lei nº 8.078/90);
  14. Lei dos crimes relacionados à Proteção dos Deficientes Físicos (previstos na Lei nº 7.853/89;
  15. Lei dos crimes contra os Idosos (previstos na Lei nº 10.741/2003, arts 100 a 102 e 104);
  16. Lei dos crimes contra a Ordem Tributária e Econômica (previstos na Lei nº 8.137/90);
  17. Lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (previstos na Lei nº 7.492/86);
  18. Lei dos crimes de “Lavagem” ou Ocultação de Bens (previstos na Lei nº 9.613/98);
  19. Lei dos crimes Falimentares (previstos na Lei nº 11.101/05);
  20. Lei dos crimes de Interceptação Telefônica Clandestina (previstos no art. 10 da Lei 9.296/96);
  21. Lei dos crimes contra o Mercado de Capitais (previstos na Lei 6.385/86);
  22. Lei dos crimes de Licitações (previstos na lei 8.666/93);
  23. Lei dos crimes de Tráfico Internacional de Crianças e Adolescentes e Pornografia via internet (previsto nos artigos 239 e 241 da Lei 8.069/90);
  24. Lei dos crimes de Telecomunicações – (previstos no art. 70 da Lei 4117/62 e art. 182 da Lei 9472/97);
  25. Lei dos crimes conta a criança e adolescente (previstos na lei nº 8069 de 13, de julho de 1990).

Podemos verificar alguns exemplos de casos reais com os novos “crimes militares extravagantes”:

a) Policial militar em serviço pratica aborto em uma gestante dentro da viatura policial;

b) Policial militar de folga tortura um civil dentro do quartel;

c) Policial militar de folga, portanto arma não registrada dentro do quartel;

d) Policial Militar em serviço executa disparos de arma de fogo com seu fuzil para o alto com intuito de comemorar uma ocorrência bem-sucedida;

e) Encarregado de inquérito se nega a conceder ao advogado do indiciado vista dos autos.

4.2 Crime doloso contra a vida de civil

O crime doloso contra a vida de civil praticado por policial militar em serviço é o que gera mais inquietações e merece especial atenção nesse estudo. Não obstante a clareza da antiga redação do artigo do CPM, que definia perfeitamente o citado delito como militar, bem como o art. 82 § 2º do CPPM, que atribui a investigação à autoridade de polícia judiciária militar, através do IPM, existiram polêmicas interpretações, inclusive do Supremo Tribunal Federal em 2003, ao julgar o RE 260.404, mas principalmente de delegados de polícia, no sentido desqualificar esse delito como crime militar depois do advento da Lei 9.299/96, a qual alterou o parágrafo único do artigo do Código Penal Militar, passando o julgamento dos crimes dolosos contra a vida perpetrados contra civil para competência da justiça comum.

Em estudo anterior deste discente, artigo científico [11]com título: A inércia da Polícia Militar na apuração dos crimes dolosos contra a vida de civil cometidos por policiais militares em serviço, foi argumentado sobre essa questão:

[...]

Entretanto, em que pese entendimentos diversos, e com a devida vênia aos senhores Ministros daquele supremo tribunal, o critério adotado para configuração do crime militar foi o critério ratione legis, ou seja, crime militar é aquele definido como tal pela Lei Penal Militar. Tal critério evidencia-se na Constituição Federal de 1988 pelo disposto nos arts. 124 e 125, § 4º.

Além disso, o artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro traz o chamado princípio da continuidade, pelo qual não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. Diante disso, não cabe ao entendimento ou jurisprudência dos tribunais ter o condão de alterar a Lei Penal Militar, pois o Judiciário não tem poder legiferante em suas interpretações, cabendo apenas a outra lei, ou emenda constitucional, revogar ou alterar o art. do CPM.

Os argumentos sempre focavam na questão do julgamento desses crimes que passaram à competência da justiça comum (tribunal do júri) e por esse motivo passou a ser considerado crime comum, tentando afastar as atribuições investigavas das autoridades militares.

Contrapondo esse argumento é possível citar, dentre diversas doutrinas e julgados dos tribunais em favor do que seria a vontade da lei (art. 82 § 2º do CPPM), o entendimento de Neves e Streifinger[12] , no livro Manual de Direito Penal Militar, que dissertaram sobre a “clareza da nova redação do parágrafo 4º, do art. 125, da CF/88 ao consagrar a competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes militares dolosos contra a vida de civil perpetrados por militares estaduais, trazendo a percepção que nitidamente o dispositivo não mencionou a desnaturação do crime doloso contra a vida de civil para um crime comum, mas, ao contrário, enumerou um conjunto de delitos, o dos crimes militares, excepcionado um deles para o julgamento do Tribunal do Júri. Diante disso, o Tribunal do Júri passou a julgar crimes militares, os dolosos contra a vida de civis.”

Ainda nesse sentido, o Ministério Público Federal, no Conflito Negativo de Competência nº 75.364/MG, firmou o entendimento que o delito é crime militar: “O crime de homicídio praticado por militar (federal ou estadual) não deixou de ser crime militar impróprio, que também está previsto no Código Penal comum, mas passou por força de lei a ser julgado pela Justiça Comum.”

O Presidente do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, Paulo Adib Casseb, em Relatório oferecido na Ação Direta Incondicionalidade 001/10, asseverou:

Saliente-se que decorre do próprio sistema constitucional a possibilidade de julgamento de crime militar pela Justiça Comum, uma vez que nos Estados-membros nos quais não se criou Tribunal de Justiça Militar coube ao Tribunal de Justiça a competência para julgar os crimes militares, na condição de Corte de 2ª Instância

Por esse motivo, a transferência da competência julgadora dos crimes dolosos contra a vida, cometidos por militares e com vítimas civis, para o Júri, em nada altera a natureza militar desses delitos.

Conforme acima afirmado, a Justiça Comum sempre pode julgar crimes militares, em 2ª instância, a diferença é que para o delito em questão, passara a fazê-lo já na 1a instância, assim, de nada isso alteraria a natureza do crime.

Em razão dessas discussões que se iniciaram na década de 1990, gerou-se um antagonismo por parte delegados da Polícia Civil, no que diz respeito à apuração dos crimes dolosos contra a vida de civil, que naturalmente, fica a cargo da polícia judiciária militar.

Essa problemática também foi argumentada no citado trabalho deste discente que buscando analisar os motivos que, na década de 1990, fizeram com que a competência fosse deslocada para o Tribunal Júri. Foi constatado que teve início com a Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar o Extermínio de Crianças e Adolescentes, a qual, em seu relatório final, concebeu como uma das propostas a alteração do Código Penal Militar e do Código de Processo Penal Militar através do Projeto de Lei nº 3321/92, in verbis:

Altera o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, remetendo à Justiça Comum o julgamento, em tempo de paz, de crimes cometidos contra civil

O Congresso Nacional decreta:

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Art. 1"O artigo do Código Penal Militar passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

"Art. 9....................................................................................

Parágrafo único. Não se consideram crimes militares, em tempo de paz, os praticados por qualquer agente contra civil. Art. O artigo 82 do Código de Processo Penal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

"Art. 82.....................................................................................

Parágrafo único. Não está sujeito ao foro militar, em tempo de paz, o julgamento de crimes praticados por qualquer agente contra civil.

Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.

Foi o Projeto de Lei que deu origem à Lei 9.299/96 e a alteração sugerida por ele não foi seguida pelo legislador, se o legislador quisesse na época que o crime doloso contra a vida de civil fosse crime comum, bastaria manter o texto original deste projeto de lei, e isso não ocorreu.

Nesse contexto, houve questionamentos por parte dos delegados de polícia civil e até de advogados sobre o exercício da polícia judiciária militar nos crimes dolosos contra a vida de civis.

Em 1997, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Civil (ADEPOL), logo após a edição da Lei 9.299/96, levou a controvérsia ao STF que decidiu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. º 1.494-3, pela constitucionalidade do art. 82, § 2º do CPPM, negando a liminar requerida, não havendo posteriormente o julgamento da ADI.

Os delegados de polícia tentaram conduzir a interpretação de que o delito em questão não era mais crime militar devido a mudança de competência da Justiça Militar para a Justiça Comum, tentando impedir que as investigações continuassem em sede de IPM, ou seja, defendiam que as instituições policiais civis deveriam conduzí-las.

O Ministro Marco Aurélio votou indeferindo o pedido liminar, argumentando que “ocorrido um fato a envolver policial militar – elemento e natureza objetiva - deve-se ter a instauração inicial do inquérito no âmbito militar”.

Já o Ministro Carlos Veloso alegou que cabe à Justiça Militar dizer se o crime é doloso ou não e que, se doloso, encaminhará os autos do IPM à Justiça Comum: “é a lei, então, que deseja que as investigações sejam conduzidas, por primeiro, pela polícia judiciária militar”. Alegou ainda que: “o inquérito ocorrerá por conta da polícia judiciária militar, mediante inquérito policial militar".

O Ministro Sydney Sanches argumentou que o § 2º, do art. 82, da Lei nº 9.299, impõe a instauração de IPM sempre que houver suspeita de que um militar praticou crime doloso contra a vida de civil.

Neri da Silveira arguiu que o determinado pela lei foi que, nas circunstâncias em que haja um policial militar praticado determinado delito, que pode até envolver um homicídio doloso, envolver lesões corporais, ou se tratar de crime que não seja de competência da Justiça comum, o inquérito deve se instaurar no âmbito da corporação militar, bem como vinha sendo feito.

O Ministro Moreira Alves acompanhou o Ministro Marco Aurélio e os que o seguiram, indeferindo também o pedido.

Os Ministros Sydney Sanches e Néri da Silveira alegaram também, que haveria a possibilidade da instauração de inquéritos concomitantes pelas Polícias Militares e Civis e, investigando o mesmo fato, em tese, criminoso. O que de fato é vedado pela constituição Federal “§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

Em 2010, novamente, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI nº 4164, perante o STF, questionando mais uma vez a constitucionalidade da Lei nº 9.299/96, sobre a mudança do art. 82, § 2º, do CPPM. Nesse processo tanto a Procuradoria Geral da República quanto a Advocacia Geral deram parecer pela constitucionalidade do art. 82.

O Advogado-Geral da União, em parecer oferecido nos autos da ADI nº 4164, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, acentua que:

[...] a fixação da competência do júri para o processamento desses crimes não é suficiente para que se conclua pela inviabilidade da apuração dos mesmos pela autoridade policial militar [...]a qualidade de servidor militar do agente que pratica tais crimes não se desnatura pelo só fato de o crime ser cometido contra civil, razão pela qual os fatos por ele cometidos devem ser submetidos à investigação da autoridade policial militar (grifo nosso). De fato, embora atinjam civis, os crimes disciplinados pelos dispositivos sob invectiva não deixam de ser praticados, [...] por militares em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar [...] ‟(Artigo , inciso II, alínea c, do Decreto-Lei nº 1.001/69). (grifo nosso)

Em julho de 2010, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, editou a Resolução SSP-110, que disciplinaria o procedimento em ocorrências que envolvessem crime dolosos contra a vida praticados por policiais militares contra civis, determinando que nesses delitos, os autores deveriam ser imediatamente apresentados à autoridade policial civil para as providências decorrentes de atividade de polícia judiciária, alegando que seria indevida a condução de autores desses crimes, em razão de prisão em flagrante delito, às unidades da Polícia Militar para a prática de atos de polícia judiciária militar.

A referida Resolução deu exórdio à Arguição de Inconstitucionalidade Nº 001/10 no Tribunal de Justiça Militar de São Paulo (TJM/SP), reconhecendo que ao contrariar o disposto no § 2º, do art. 82, do CPPM, incorreu em inconstitucionalidade reflexa, produzindo norma contra legem [13]e extrapolou os limites impostos pela natureza dos atos meramente regulatórios emanados do Poder Executivo.

Ademais, incorreu em vício de inconstitucionalidade direta, por ter assumido, indevidamente, conteúdo normativo autônomo em flagrante discrepância com o mandamento do § 4º, do art. 144, da CF/88, já supracitado, e declarou também o TJM/SP que: “toda a fase pré-processual desenvolver-se-á perante a polícia judiciária militar, afinal o texto legal refere-se, expressamente, a “autos do inquérito policial militar”, o que pressupõe sua existência e finalização.”

Finalmente, pode-se relatar mais dois julgados da Justiça de São Paulo no tocante a oficiais da Polícia Militar paulista. Um deles, um oficial se viu obrigado a ingressar com um habeas corpus preventivo, obtendo o Ordem, em face do Delegado de Polícia local pretender indiciá-lo por desobediência pelo fato do oficial, quando encarregado de IPM que apurava crime doloso contra a vida de civil, ter apreendido uma espingarda ligada ao crime. O Delegado passou a exigir que o referido oficial não apreendesse a espingarda, mas a apresentasse a ele sob pena de crime de desobediência.

Já outro oficial da PM paulista também impetrou habeas corpus no processo nº 318.01.2008.002559-7/000000-000 (Controle n. 144/2008), visando obstar o curso de procedimento inquisitorial que o imputava dos delitos de prevaricação e desobediência, instaurado por delegado de polícia. O oficial teria se negado a entregar arma de fogo utilizada por policiais militares em ocorrência envolvendo civil. O desembargador julgou o Recurso em Habeas Corpus n. 990.08.005203-9 e decidiu:

[...] in casu, o recorrido agiu por dever de ofício imposto a ele pela Justiça Militar, obedecendo o Provimento nº 04/07 da Corregedoria Geral da Justiça Militar Estadual, expedido com caráter normativo (fls. 29), não havendo que se falar em configuração de crime.

No Piauí, advogado de dois policiais militares impetrou o Habeas Corpus nº 2012.0001.001077-9-Teresina /9ª Vara Criminal - 2012, alegando que o IPM causaria constrangimento ilegal em seus pacientes, suscitando a dúvida de quem detinha a competência para a instauração de inquérito em crimes dolosos contra vida. De certo a ordem do HC foi denegada

Decisão: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, acordam os componentes da Egrégia 2ª. Câmara Especializada Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, por votação unânime, em conhecer do presente Habeas Corpus, mas DENEGAR a ordem impetrada, constatada a legalidade da manutenção do Inquérito Policial Militar (grifo nosso) como procedimento aclaratório à denúncia, em consonância com o parecer da Procuradoria Geral de Justiça

No Rio Grande do Sul, o Conflito de Competência nº 120.201/RS de 2011, julgado pelo STJ, inferiu que policial militar que em serviço troca tiros com criminoso age no exercício de sua função e em atividade de natureza militar, o que evidencia a existência de crime militar, ainda que cometido contra vítima civil. Inclusive, aduziu a Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz que “tão-somente a ausência de indícios mínimos do animus necandi afasta a competência da Justiça Comum para investigar a eventual prática de crime de homicídio praticado por militares contra civil”.

Além disso, invocaram o RHC 16.150/SP, no qual ficou decidido que na hipótese em que policiais militares identificando-se como tal, atuando em razão da função, ainda que de folga, movidos por dever de ofício, qual seja, de reprimir a prática de infração penal, causando lesões corporais contra civis, a responsabilidade recai sobre a Justiça Militar.

Diante disso tudo, por mais que esteja clara e definida legalmente a questão da atribuição da investigação dos crimes dolosos contra a vida de civil, a aceitação ainda não é pacífica por parte dos “estudiosos do direito comum” e de delegados de polícia, que insistentemente, mesmo com seus índices diminutos de solução de crimes investigados, continuam a intervir na atuação das autoridades militares.

Em agosto de 2017, cerca de dois meses antes da promulgação da Lei 13.491/17, o Tribunal de Justiça Militar de São Paulo determinou que, em caso de crime doloso de policial militar contra a vida de civil, oficiais da corporação apreendam os objetos encontrados na cena do delito. Tratava-se da Resolução 54/17 do TJM-SP que estabelece que a autoridade policial militar deve recolher os instrumentos apreendidos na cena do crime doloso de policial contra a vida de civil e requisitar exames periciais aos técnicos civis, com o seguinte teor:

Resolucao - 54/2017 ASSPRES

São Paulo, 18 de agosto de 2017.

Dispõe sobre apreensão de instrumentos ou objetos em Inquéritos Policiais Militares.

O Presidente do Tribunal de Justiça Militar, no uso de suas atribuições legais e regimentais;

CONSIDERANDO que o § 4º do artigo 125 da Constituição Federal dispõe que os crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil, são da competência do júri;

CONSIDERANDO que o § 2º do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar dispõe que nesses casos a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum;

CONSIDERANDO que os Títulos II e III do Livro I do Código de Processo Penal Militar tratam detalhadamente do exercício da polícia judiciária militar e da elaboração do inquérito policial militar;

CONSIDERANDO que, ainda assim, quando da instauração de inquéritos policiais militares para apuração de crimes dolosos contra a vida de civil, algumas dúvidas têm surgido sobre o correto proceder em relação à apreensão de instrumentos ou objetos que digam respeito ao fato;

CONSIDERANDO a conveniência de se disciplinar o assunto, evitando que essas dúvidas resultem no desatendimento do princípio constitucional da celeridade no trâmite desses feitos;

CONSIDERANDO o decidido pelo E. Pleno na Sessão Administrativa Extraordinária de 18 de agosto de 2017;

RESOLVE:

Art. Em obediência ao disposto no artigo 12, alínea b, do Código de Processo Penal Militar, a autoridade policial militar a que se refere o § 2º do artigo 10 do mesmo Código, deverá apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com a apuração dos crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil.

Art. Em observância ao previsto nos artigos , alínea g, e 321 do Código de Processo Penal Militar, a autoridade de polícia judiciária militar deverá requisitar das repartições técnicas civis as pesquisas e exames necessários ao complemento da apuração dos crimes militares definidos em lei, quando dolosos contra a vida de civil.

Art. Nos casos em que o órgão responsável pelo exame pericial proceder a liberação imediata, o objeto ou instrumento deverá ser apensado aos autos quando da remessa à Justiça Militar, nos termos do artigo 23 do Código de Processo Penal Militar.

Art. 4º Nas hipóteses em que o objeto ou instrumento permaneça no órgão responsável pelo exame pericial e somente posteriormente venha a ser encaminhado à autoridade de polícia judiciária militar, esta deverá também prontamente, quando do recebimento, efetuar o envio desse material à Justiça Militar, referenciando o procedimento ao qual se relaciona.

Parágrafo único – O mesmo procedimento deverá ser adotado pela autoridade de polícia judiciária militar quando do recebimento do laudo ou exame pericial.

Art. 5º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. REGISTRE-SE. PUBLIQUE-SE. CUMPRA-SE.

SILVIO HIROSHI OYAMA

Presidente.

A notícia dessa decisao do TJM de São Paulo foi veiculada na página web Consultor Jurídico [14] datada do 24 de agosto de 2017, com o título “críticas de delegados” e subtítulo “Corte militar de SP determina que PM apreenda objetos de crime contra civil”.

O inteiro teor dessa matéria, nada mais é do que o próprio título diz, uma crítica, entretanto sem o mínimo de fundamento técnico. Nela diz que essa função (apreensão de objetos do crime militar doloso contra a vida) era exercida pela Polícia Civil, e a mudança tem gerado protestos de delegados. Que de acordo com eles, a alteração é inconstitucional e sinaliza que a Polícia Militar quer acobertar crimes praticados por seus integrantes.

É possível notar na fala dos delegados o ataque gratuito à imagem da PM de São Paulo ao afirmar que cumprindo o que determina a lei, estariam acobertando crimes.

A matéria afirma também que a resolução busca esclarecer dúvidas sobre o procedimento de apuração desses crimes e aumentar a celeridade dele. E que para isso, ela estende medidas de investigação de delitos militares previstas no Código de Processo Penal Militar (grifo nosso). Contudo, essas regras não se aplicam a crimes dolosos contra a vida praticados por PMs contra civis (grifo nosso). Quando o Código Penal Militar foi outorgado, em 1969, na ditadura militar, estabeleceu que esses delitos seriam julgados pela Justiça Militar. Isso mudou com a Lei 9.299/96 que determinou que os crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil são da competência da Justiça comum.

As três afirmações equivocadas (ou tendenciosas) acima nos remetem às discussões já vencidas em diversas decisões dos tribunais superiores em favor das atribuições investigativas das autoridades militares. Afinal, é o mandamento da lei no art. 82 § 2º do CPPM que define que o crime doloso contra a vida de civil será investigado através de IPM.

A matéria afirma ainda que o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) questionou a Resolução 54/2017 do TJM-SP junto ao Corregedor Nacional de Justiça, e ao Corregedor-Geral de Justiça de São Paulo e que segundo o sindicato, “não cabe às Polícias Militares a realização dos atos de Polícia Judiciária que são atinentes à Polícia Civil e vice-versa, mas tão somente o exercício de atribuições previstas pelo próprio Código de Processo Penal Militar. Da mesma forma, não cabe à Polícia Militar investigar ou dirigir inquéritos policiais envolvendo homicídios contra civis”. [...] “Ou seja, é evidente que não existe a competência da ‘autoridade policial militar’ para apreensão dos instrumentos e objetos que serão investigados pela Polícia Judiciária, através da presidência de um inquérito policial por um delegado de polícia”,

Mais uma vez, afirmações sem respaldo legal por parte de delegados, em razão da alínea b do art. 12 do CPPM determinar justamente o contrário do que eles afirmaram:

Medidas preliminares ao inquérito

Art. 12. Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal militar, verificável na ocasião, a autoridade a que se refere o § 2º do art. 10 deverá, se possível:

a) dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e a situação das coisas, enquanto necessário

b) apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato;

c) efetuar a prisão do infrator, observado o disposto no art. 244;

d) colher todas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias.

E como afirmado anteriormente, será discutido no próximo tópico desse estudo, bem como ficou demonstrada a ampla discussão nos tribunais desde a década de 1990, que a competência para julgamento dos crimes militares em nada altera a sua natureza (para crime comum), e de fato, também não altera a atribuição investigativa, demonstrando total equívoco e falta de fundamento legal das afirmações contidas nessa matéria.

A resolucao do TJM de São Paulo foi editada dentro da legalidade, e mesmo não sendo necessária para que os oficiais apreendessem objetos do crime, pelo fato de já estar determinado na legislação processual penal militar (alínea b, do art. 12), foi útil para eliminar qualquer resquício de dúvidas no que é atinente aos procedimentos preliminares ao inquérito diante de um crime dolosos contra a vida de civil praticado por policial militar em serviço.

Em outubro de 2017, com a promulgação da Lei 13.491/17, houve a ratificação de que o crime doloso contra a vida de civil, que se enquadra na alínea c do inciso II do art. 9º, é um crime militar, que atipicamente, é processado e julgado pelo Tribunal do Júri, atualmente na Justiça Comum.

Caso tentem concluir de forma diversa, ou seja, o crime doloso contra a vida de civil ser crime comum, deve-se concluir também, que o novo art. e seus incisos são inconstitucionais em virtude do disposto no art. 124 da CRFB/88: “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, já que estaria atribuindo à Justiça Militar a competência para processar e julgar crime comum, pois segundo o art. , compete à JMU o julgamento do crime doloso contra a vida de civil praticado por militar das Forças Armadas.

CRIMES MILITARES CONTRA A VIDA EM RELAÇÃO À LEI 13.491/17

ANTES

DEPOIS

Homicídio

Art. 205 CPM

Homicídio

Provocação direta ou auxílio a suicídio

Art. 207 CPM

Provocação direta ou auxílio a suicídio

Art. 123 CP

Infanticídio

Art. 125/126 CP

Aborto provocado por terceiro

Além disso, é importante ressaltar a ampliação do rol dos os crimes militares dolosos contra a vida, uma vez que, diante da nova redação do inciso II do art. 9º, os crimes de aborto e o infanticídio são “crimes militares extravagantes” se praticados nas condições das alíneas do citado artigo.

Citamos os seguintes exemplos:

a) Tenente PM, logo após parto em hospital militar, mata sob a influência do estado puerperal, seu próprio filho;

b) Capitão PM, atendendo ao pedido da gestante, sua colega de trabalho Tenente PM, pratica aborto dentro do Batalhão de Polícia;

c) Sgt PM de folga, insatisfeita com gestação, adentra ao hospital militar, e pratica aborto em si mesma

Mais uma vez, inobstante as legislações, julgados e doutrinas trazidas à baila, é veiculada matéria direcionando ataques à atuação das autoridades militares e das justiças militares estaduais. O site do UOL notícias, publicou do dia 02 de janeiro de 2018 o seguinte título: “PM de SP usa lei exclusiva às Forças Armadas para justificar investigações de mortes”.

Figura 1

Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/02/pm-de-sp-usa-lei-que-autoriza-exercitoainvestigar-crimeseacirra-animos-com-policia-civil.htm. Acesso em 04 jan 2018.

À primeira vista, talvez não para o leitor leigo, é possível perceber a afirmação desacertada (ou tendenciosa) no título da matéria, ao inferir que a Lei 13.491/17 vale apenas para integrantes das Forças Armadas. Inicialmente afirmam que A PM (Polícia Militar) de São Paulo está se baseando em uma lei federal destinada exclusivamente às Forças Armadas para justificar o poder de investigação em ocorrências de PMs que terminam em morte. E que baseada na lei que não inclui polícias militares estaduais, a corporação paulista tem desempenhado o papel da Polícia Civil e acirrado os ânimos entre as duas polícias.

Atentando às considerações básicas sobre a lei, é possível verificar os erros suscitados acima:

1) A lei federal não se destina exclusivamente às Forças Armadas, do contrário, na nova redação do art. 9º, ela reservou dois artigos referente aos crimes dolosos conta a vida de civil. Sendo o art. 1º destinado exclusivamente aos militares estaduais (Polícias Militares). Isso porque, no delito em questão, o artigo firmou competência para do Tribunal do Júri, fato que não ocorre quando o crime é praticado por militares das Forças Armadas, pois nesse caso, a competência será da JMU, ficando essa redação bem clara no art. 2º, este sim, exclusivo para militares federais.

2) Outro ponto equivocado é a relação que é feita da Lei 13.491/17 com o poder de investigação em ocorrências de PMs (crimes militares). A atribuição de polícia judiciária militar não decorre da nova lei, que é de natureza penal. Como supracitado, ela decorre do DECRETO-LEI Nº 1.002, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969, o Código de Processo Penal Militar. A investigação de crimes militares, inclusive o crime doloso contra a vida do civil, está prevista na conjugação da alínea a do art. com § 2º do art. 82 do CPPM, in verbis:

Competência da polícia judiciária militar

Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:

a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria

[...]

Foro militar em tempo de paz

Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:

§ 1º [...]

§ 2º Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum.

A matéria ainda traz a informação que após uma perseguição e uma suposta troca de tiros, um suspeito foi morto e sua arma apreendida e encaminhada à autoridade de polícia judiciária militar. E que até então, era o DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, que fazia esse trabalho, mas a entidade só foi avisada pela PM oito horas após o caso e com a remoção de provas e alteração do local do crime, a investigação civil teria sido prejudicada.

O corregedor da PM respondeu da seguinte forma: "Parece que a Polícia Civil vai até querer me indiciar, porque está achando que vai perder espaço de investigação em todos os crimes comuns que eram de competência deles. Não teve nada de ilegalidade, já tem jurisprudência a respeito”. complementou o coronel Marcelino Fernandes à reportagem: "Isso aí [o caso em que Melo morreu] não é a primeira vez. Obviamente, se não fosse competência da PM, não seria apreendido. Se nós não apreendermos as armas, vamos responder por prevaricação na Justiça Militar"(grifo nosso)

Continuando as considerações:

3) A atuação da PMSP está correta e dentro dos mandamentos legais já citados. O fato da DHPP da Polícia Civil realizar os procedimentos de apuração nesses casos, está eivado de ilegalidade, bem como há violação constitucional. Nos crimes militares a atuação é exclusiva da polícia judiciária militar como preconiza a CRFB/88, art. 125 §4º; “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

Em seguida, a matéria como um dos subtítulos “Beco sem saída”, diz que, segundo a Corregedoria da PM, os policiais militares estariam em uma espécie de beco sem saída porque se recolhem as armas na cena do crime, podem ser autuados pela Polícia Civil. Se não o fazem, podem responder por prevaricação através da Justiça Militar. (grifo nosso).

Continuando as considerações:

4) A afirmação destacada acima, salta aos olhos, pelo fato de ter sido feita (segundo afirmou a matéria) pela própria Corregedoria da PMSP. Isso se deve ao fato de que, pela simples análise da nova redação do art. do CPM, que é de conhecimento amplo na PMSP, não é possível autuação de PMs pela Polícia Civil das condutas apontadas como: desobediência, usurpação de função pública ou abuso de autoridade. Aliás, nenhuma conduta, em tese ilícita, praticada por policial militar em serviço ou em razão da função, pode ser apreciada por autoridade policial civil, pelo fato de que de todo e qualquer crime nessas circunstâncias são crimes militar. Ante o exposto, caso isso ocorra, o presidente do flagrante, ou seja, o delegado de polícia, poderá ser responsabilizado criminalmente por abuso de autoridade, constrangimento ilegal ou outro tipo penal, a depender do elemento subjetivo.

Finalizando os apontamentos incoerentes dessa matéria, vale ressaltar que nem todos foram analisados nesse estudo, caso contrário ficaria muito extenso e repetitivo os assuntos, tem-se o posicionamento de uma Juíza de Direito, da 4º câmara Criminal do TJ, Ivana David, que afirmou que lei federal é um erro que tem como objetivo fazer com que crimes praticados por policiais militares fiquem mais impunes, porque fica mais difícil saber se houve um tiroteio ou assassinato, e, assim, aparentar à população que a segurança pública em São Paulo está controlada ( grifo nosso)

O professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Rafael Alcadipani afirmou que o que os estudos científicos mostram é que, quando a PM investiga ações que terminam em letalidade, a Justiça Militar e a Corregedoria tendem a ser mais lenientes do que a Justiça civil. No meu ponto de vista, isso tem um potencial de gerar maior impunidade nas ações em que policiais militares cometem crimes. (grifo nosso)

As considerações a respeito das afirmações da Juíza e do professor da FGV serão feitas ao final desse estudo.

Analisando o segundo eixo de alteração do art. 9º, no tocante à retificação de competência para os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares estaduais contra civis do art. 1º, tendo em vista que não se fala mais em “justiça comum” para excepcionar a regra de competência, é possível concluir por duas linhas de raciocínio da forma seguinte.

1º - A idéia que é sustentada neste estudo, que o art. 1º não se aplica aos Militares das Forças Armadas, tendo definição de competência para o Tribunal do Júri quando militares estaduais praticarem crimes dolosos contra a vida de civil e que o art. 2º não se aplica aos militares estaduais tendo definido competência para a JMU quando militares federais praticarem o mesmo delito. Em suma, militares estaduais respondem perante o Tribunal do Júri (atualmente na Justiça Comum) e militares federais perante os Conselhos de Justiça na Justiça Militar;

2º - Seguindo uma segunda linha de pensamento, o art. 1º, ao não excepcionar a regra de competência para justiça comum e sim ao tribunal do júri, teria sido um ganho técnico, em adição, ele abrangeria tanto os militares dos Estados como das Forças Armadas, já que não restringiu explicitamente sua aplicação a este ou àquele grupo. Em consequência disso, ao fazer a conjugação dos artigos 1º e 2º, a pretensão da nova lei é de que o crime militar doloso contra a vida, quando praticado por militar federal, seja processado e julgado pelo Tribunal do Júri, mas na Justiça Militar da União. Assim, criou-se uma lacuna para a possibilidade de formação de um Tribunal do Júri Militar.

A implantação do Tribunal do Júri na Justiça Militar, Federal ou Estadual, nos mesmos moldes do Tribunal do Júri comum, presidido pelo Juiz Auditor ou Juiz de Direito do Juízo Militar, formando um Conselho de Sentença composto por civis, nada mais é do que a observância expressa ao texto constitucional, dos ditames do art. 125 § 4º, in verbis:

Art. 125

[...]

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças

Tomando como apoio os argumentos de José Osmar Coelho Pereira [15] em seu artigo sobre o Tribunal do Júri na Justiça Militar do Estado, que assevera que otexto constitucionall, supracitado, fala em Tribunal do Júri, e esse não se confunde com juiz sumariante, até mesmo por que o juiz de direito da vara comum não detém competência para decidir e julgar sobrecrime militarr, e como não resta dúvida. o crime doloso contra vida de civil ainda é crime militar. E assevera também:

A própria Constituição traz a ideia norteadora de tribunal do júri, e o mesmo vem elencado no título dos direito e garantias fundamentais, trazendo com isso inclusive, algumas vozes que se ergueram para sustentar que o júri não fazia parte do poder judiciário, sendo entendimento minoritário, mais o que importa é que o júri não pode ser confundido com o juiz de direito que faz a primeira fase e ao final dá a sentença, seja ela de pronuncia, impronuncia, desclassificação ou absolvição

A constituição tratando sobre a matéria do tribunal do júri traz a seguinte ideia:

“Art. 5º................

XXXVIII - e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”

Momento algum a Constituição proibiu ou suprimiu o tribunal do júri da justiça militar, trazendo apenas os princípios norteadores que a lei que for regular a matéria sobre o tribunal do júri precisa respeitar e seguir.

Ficou claro que o crime doloso contra vida de civil continua a ser crime militar e como tal não pode ser julgado pela justiça comum, e a EC 45ª muito longe de afirmar a constitucionalidade do parágrafo único do artigo do CPM, veio afirmar que apenas quer no caso em especifico seja o fato julgado por um tribunal do júri, tribunal esse que não existe óbice de ser criado na justiça militar do estado. (grifo nosso)

Essa grande anomalia da Justiça Comum julgar o crime militar doloso contra a vida de civil é resultado gerado pela busca de distanciamento da competência da Justiça Militar na década de 1990. No mundo prático pode gerar até mais lentidão nos processos e uma grande incoerência com relação aos crimes mais graves (por exemplo o latrocínio), como cita o juiz civil Fernando Galvão Rocha do Tribunal Militar de Minas Gerais:

Não seria mesmo razoável que a Constituição Federal concedesse à Justiça Comum competência para o julgamento de apenas alguns crimes militares, quebrando a harmonia e o tratamento uniforme da competência em razão da matéria que justificam a instituição das justiças especializadas. Muitos seriam os problemas advindos de uma infeliz repartição de competência. Veja-se, por exemplo, a hipótese de desclassificação do crime doloso para o culposo no plenário do Tribunal do Júri. Tal desclassificação importaria em reconhecimento de incompetência da Justiça Comum para o julgamento do crime militar culposo praticado contra civil. Por outro lado, se à Justiça Comum fosse concedida a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida do civil, que razão justificaria a preservação da competência da Justiça Militar para o julgamento de outros crimes militares graves igualmente praticados contra civis, como por exemplo o latrocínio? Estas singelas reflexões permitem perceber que a pretendida repartição da competência viola a harmonia do sistema normativo e coloca em xeque a sua racionalidade. (grifo nosso)

O mesmo autor assevera ainda, em seu artigo “Tribunal do Júri na Justiça Militar Estadual”, que ao preservar a competência do Tribunal do Júri, quando a vítima for civil, a Constituição Federal não estabeleceu uma nova Justiça especializada: uma justiça do júri e que o Tribunal do Júri não materializa nenhuma Justiça especializada, mas apenas um órgão jurisdicional que compõe a organização judiciária da justiça competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, complementando:

A única conclusão a que se pode chegar é que a Emenda Constitucional determinou que se institua o Tribunal do Júri na Justiça Militar Estadual, que é a competente para o julgamento dos crimes militares praticados por militares estaduais. Fica muito claro que a finalidade da ressalva foi impedir expressamente que o juiz de direito do juízo militar julgue singularmente os crimes militares dolosos contra a vida cometidos contra civil. Conforme a norma do § 5º do art. 125 da CF/88, a regra geral é que o juiz de direito do juízo militar julgue singularmente os crimes cometidos contra civil. O dispositivo anterior (§ 4º) excepciona esta regra para preservar a garantia fundamental do Tribunal do Júri.

Diante do exposto, é possível concluir que a própria Constituição, alterada em 2004 pela Emenda Constitucional nº 45, prevê a instituição do Tribunal do Júri na Justiça Militar e que isso não constitui nenhuma excepcionalidade, uma vez que este órgão jurisdicional não é exclusivo da Justiça Comum Estadual e também existe na Justiça Comum Federal.

Partilhando da conclusão chegada por Pinto, o mais adequado para solucionar essa questão na Justiça Militar do Estado seria, a inclusão no CPPM de um capítulo sobre o Tribunal do Júri ou então todo o procedimento ser feito perante a vara da Justiça Militar do Estado, no caso do Rio de Janeiro, a AJMERJ, e o juiz aplicar o artigo alínea a do CPPM”:

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar; frente a omissão do código quanto o rito do júri e se utilizar da legislação processual penal comum, fazendo com que exista celeridade processual, não seja lesado o princípio do juiz natural, e também não se sustentaria a falaciosa argumentação de corporativismo.

Passaremos agora a analisar um tema que parece ser tabu no âmbito acadêmico e no meio militar ante a falta de publicações e julgados dos tribunais com base na legislação vigente: o CPM e o CPPM.

4.3 Crime militar praticado por civil na esfera estadual

Diferentemente do que ocorre com o crime militar doloso contra a vida de civil praticado por militar na esfera estadual, que possui ampla discussão no meio jurídico e acadêmico, o inverso não se sujeita à mesma atenção, não sendo objeto de muitas publicações no cenário brasileiro, qual seja prática de crimes militares por agentes civis contra as instituições militares estaduais. Isso chama a atenção, uma vez que não é raro o cometimento de ilícitos penais tipificados no Código Penal Militar por civis, do contrário, ocorre com bastante frequência no Estado do Rio de Janeiro, podendo ser citado como exemplo, os diversos ataques às bases das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) perpetrados por marginais da lei que disputam os territórios dos morros e favelas pelo controle do tráfico de drogas na localidade.

Antes de fazer considerações se os civis podem cometer crimes militares não previstos na parte especial do CPM em virtude da Lei 13.491/17, é preciso identificar as hipóteses em que o civil poderá cometer crimes contra as instituições militares estaduais. Torna-se imperioso destacar o disposto no inciso III do art. do CPM, que dispõe:

Crimes militares em tempo de paz

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – [...]

II – [...]

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Considerando o aspecto legal acima exposto, resta claro quais as circunstâncias em que civil pratica crime militar. Entretanto, urge ressaltar, que há interpretações de doutrinadores que somente as Forças Armadas e seus integrantes poderiam ser sujeitos passivos de um crime militar que tivesse como autor um civil, como é o caso de Coimbra Neves. Com anteriormente exposto, para o citado doutrinador, a configuração de um crime militar depende de um outro fator: além do fato se amoldar à parte especial do CPM e as circunstâncias estarem previstas em um dos incisos do art. , o sujeito ativo do crime também deve poder ser processado e julgado pela Justiça Militar, que apreciará o delito. Como já foi afirmado, com a devida vênia, não é possível concordar com esse pensamento.

Essa circunstância de fato ocorre: na esfera estadual um civil não pode ser processado e julgado por crime militar contra as instituições militares, como preconiza o mandamento constitucional do § 4º do art. 125. No entanto, como assevera Adriano Alves Marreiros[16] “o art. 125, § 4.º, da Carta Magna é uma mera regra de competência e não uma abolitio criminis, não tendo derrogado o art. 9º do CPM”. O mesmo doutrinador afirma também:

Direito penal e processual não se confundem, por mais que certas decisões nos confundam ao misturar as duas quando tratam de crime militar. Nota-se certo modismo, na doutrina, de se exigir analisar se o sujeito ativo pode ou não ser processado e julgado pela justiça militar para configurar um crime militar: mostrando o equívoco de confundir competência (processual) com a natureza de crime militar (penal).

Por isso mesmo, ao falarmos de crimes militares, faz-se mister deixarmos claro que a mudança de competência por critérios ratione personae e ratione muneris, inclusive de índole constitucional, não implica a mudança da natureza de certas condutas que permanecem crimes militares, mesmo que seu julgamento não se dê na Justiça Militar.

[...]

O Código Penal Militar é uma lei especial, e a lei especial prevalece sobre a lei comum (Lex specialis derogat generali; semper specialia generalibus insunt; generi per speciem derogantum) Sendo uma lei em pleno vigor, o Código Penal Militar deve ser aplicado e respeitado como qualquer outra lei deste País. A prática de conduta delituosa prevista em qualquer de seus artigos enseja a aplicação de uma sanção penal.

[...]

Não se pode deixar de aplicar a lei por não gostar dela, por não conhecê-la ou por não entendê-la. Não pode deixar, portanto, de ser aplicado o Código Penal Militar, quando há ofensa às instituições militares estaduais, apenas porque a Justiça Militar Estadual não pode julgar civis. Muda a competência, mas não muda a lei, não muda a natureza de crime militar da conduta, como, aliás, ocorre com qualquer outra justiça. (grifo nosso)

O fato da CRFB/88 retirar da Justiça Militar Estadual a competência para o julgar civis pelos crimes militares praticados não afasta a aplicabilidade do CPM para a proteção das instituições militares estaduais.

Esse entendimento é ratificado pela própria sumula nº 53 do STJ que declara apenas que “caberá à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil quando acusado de prática de crime contra as instituições militares estaduais”, (grifo nosso), o que não desqualifica a conduta amoldada no CPM como crime militar.

Também assim é o entendimento de Milton Morassi do Prado[17]:

[...] o civil, em verdade, comete o crime militar na esfera estadual, porquanto não há singular dispositivo que diga em sentido oposto, havendo, tão somente, a restrição da competência de julgamento. Por essa visão, o civil cometeria o crime militar, podendo inclusive ser indiciado em inquérito policial militar, devendo ser julgado, à luz do CPM, pela Justiça Comum Estadual, que possui competência residual no sistema de distribuição de competências grafado pela Lei Maior. (grifo nosso)

Ademais, se fosse possível a definição do crime militar através da competência para julgamento teríamos as seguintes anomalias:

a) Os crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar em serviço, cuja competência recai sobre o tribunal do júri, (atualmente fora da justiça militar) seria crime comum, devendo concluir também, que novo § 2º e seus incisos são inconstitucionais em virtude do disposto no art. 124 da CRFB/88: “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, já que estaria atribuindo à Justiça Militar a competência para processar e julgar crime comum;

b) O Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica não responderiam por crimes militares, uma vez que o art. 102 da CRFB definiu competência do STF para processar e julgar as infrações penais comuns (nesse contexto, são crimes que não são de responsabilidade[18], incluídos os delitos militares)

c) Os crimes de competência a Justiça eleitoral quando praticados nas condições da nova redação do art. do CPM também não seriam crimes militares;

d) Os crimes relativos à graves violações a direitos humanos, de competência da Justiça Federal, quando praticados nas condições da nova redação do art. do CPM também não seriam crimes militares;

Finalizando esse entendimento, se o CPM não foi revogado os por outra lei, deve ser aplicado mesmo ao civil que pratica crime militar contra as instituições militares, dito isto, será feita a análise das hipóteses em que o civil pode figurar como agente nos “crimes militares extravagantes” em virtude da Lei 13.491/17.

Embora não tenha sido diretamente alterado pela nova lei, utilizando-se do inciso II para definir seu campo de aplicação, o inciso III, remete aos incisos anteriores, mais precisamente, ao caput de cada um deles. Cabe recapitular:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

O inciso III ao fazer remissão aos incisos I e II, se fosse reescrito ficaria da seguinte maneira:

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais os crimes previstos apenas na parte especial deste código ou nele definidos de modo diverso da legislação comum, os previstos neste código com igual definição na legislação comum, bem como os previstos na legislação penal, nos seguintes casos:

Além disso, para configuração do delito é necessário também que a conduta se amolde àquelas diversas do inciso II, ou seja, às alíneas a até d do inciso III, relembrando:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Isso porque, como assevera Alvez Marreiro[19], o legislador optou por não deixar sob o livre crivo do intérprete a interpretação do que seriam os crimes contra as instituições militares, dessa forma, definiu na própria norma, considerando como tais os das alíneas do art. 9, inciso III.

É possível concluir diante de todo o exposto que se o civil pratica um crime compreendido no inciso II, isto é, previsto no Código Penal Militar ou na legislação penal (Código Penal comum mais as leis extravagantes), como aduz a nova redação, bem como existindo subsunção em alguma hipótese das alíneas das a a d do inciso III, esse crime será militar.

Outrossim, se esse crime não estiver tipificado no CPM, será um “crime militar extravagante” praticado por civil contra as instituições militares estaduais.

Em termos práticos, nos procedimentos em crimes cometidos por civis as autoridades militares devem seguir o mandamento do CPPM:

1) Medidas preliminares ao IPM previstas no art. 12, como dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e a situação das coisas, apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato, como o ocorrido na PMESP em matéria citada neste trabalho, que aprendeu a arma do criminoso e enviou à polícia técnica para perícia, no caso do Rio de Janeiro, para o Centro de Criminalística (CCRIM) ou outro centro técnico de perícia civil;

2) Instauração do IPM, remetendo ao final para Justiça Militar estadual, no caso do Rio de Janeiro, para a AJMERJ.

Finalizando esse tema, cabe enfatizar que a competência para julgamento do crime militar praticado pelo civil não pertence à Justiça Militar estadual, portanto, a AJMERJ remeterá o IPM, caso conclua pela existência de crime, para a Justiça Comum.

4.4 As soluções trazidas para a atividade investigativa

Para a atividade de polícia judiciária militar a Lei 13.491/17 trouxe benefícios que simplificaram algumas complexidades que causavam inquietações desde a década de 1990.

Inicialmente, quando o fato envolvia o concurso de crimes comuns e militares, duas situações ocorriam: entendimento diversos da autoridade policial civil no que tange à classificação do crime, somando a isso, a intervenção na atividade investigativa dos comandantes militares, fato que trazia animosidade entre as Instituições Polícia Civil e Polícia Militar.

É possível citar o caso do policial militar morto durante um treinamento físico dentro de um quartel da PM no Rio de Janeiro em 2014. A matéria foi publicada na página do jornal extra, em 27 de janeiro de 2014 com o seguinte título: “Delegado conclui que houve tortura em treino da PM que terminou com recruta morto: ‘Maldade gratuita e desnecessária’”

No bojo da matéria o delegado responsável pela investigação afirma: “Os fatos são graves e merecem uma resposta imediata do poder público. Instaurei inquérito para investigar se houve tortura e todos os relatos apresentam proximidade com esse tipo penal.

Notoriamente, houve uma violação à legislação militar, tendo o fato ocorrido em lugar sujeito à administração militar, além do crime em tese, ter sido praticado por militar contra militar, circunstancias que, a princípio, classificam o delito como militar. A PMERJ também instaurou um procedimento para apurar o fato. Em que pese à época tortura ser crime comum nesse caso, apenas com a finalização do IPM poderia se chegar à conclusão da sua ocorrência ou não, e se positivo a conclusão por tortura, seria remetido inquérito para justiça comum através da AJMERJ.

Inegável que deveria ter sido instaurado apenas o IPM. Em razão disso, neste mesmo caso surge outra problemática, o duplo inquérito que é submetido o policial militar. A investigação irregular da Polícia Civil em paralelo ao IPM. O que ao final pode concluir por dois crimes diferentes para o mesmo fato, sendo um crime comum e outro militar, e em consequência, dois processos tramitarem em paralelo, nas Justiças Militar e Comum. Entretanto, por razões desconhecidas, as autoridades militares permitiram tal violação legal, dentro de uma unidade militar.

Isso porque, nos crimes dolosos conta a vida de civil, deve prevalecer o exercício exclusivo da polícia judiciária militar, o IPM é o único meio adequado a apurar essa espécie de crime, isso já ficou demonstrado neste trabalho através da legislação, da doutrina e da jurisprudência, não podendo haver concomitantemente instauração de inquérito da Polícia Civil. Policial militar não pode responder a dois procedimentos administrativos pela prática do mesmo fato, pois este ato é eivado de flagrante ilegalidade, caracterizando constrangimento ilegal face a insegurança jurídica provocada nos investigados.

A jurisprudência ratifica esse pensamento no Recurso de Habeas Corpus 1999.03990776390, da Quinta Turma do Tribunal Regional Federal:

[...] bem se sabe que para cada fato delituoso corresponde um inquérito para apurá-lo. Assim como ninguém pode ser acusado ou condenado por idêntico fato duas vezes, também é certo que dois inquéritos para investigar o mesmo fato constituem-se em constrangimento ilegal.

Situação semelhante ocorria com o crime dolosos contra vida de civil, quando a Polícia Civil agia intervindo na atribuição investigativa dos comandantes militares, instaurando inquéritos em paralelo ao IPM. Nesse caso, a título de exemplo, o policial ao se envolver em um confronto armado com resultado fatal para marginais da lei, era submetido a dois inquéritos no qual um investigava, ilegalmente, cabe ressaltar, o inexistente crime do art. 121 do CP e outros conexos, e outro, o IPM, que investigava o crime do art. 205 do CPM e outros crimes conexos. Isso acarretava uma dificuldade maior para instrução do IPM, pois o encarregado fazia um trabalho “pobre” e pela metade, pois a medidas preliminares não haviam sido realizadas, ou seja, apreensão das armas dos policiais para perícia, recolhimento de provas, dentre outras.

Diante das circunstâncias acima, a autoridade policial militar deveria tomar as medidas previstas na alínea b do art. 12º do CPPM, apreendendo os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato, fazendo a apreensão das armas dos PM’s. Também, por se tratar de uma investigação ilegal da Polícia Civil, não realizar apresentação de policiais para qualquer diligência e por fim requisitando (poder de mando) qualquer informação já obtida a fim de instruir a apuração.

Como já citado neste trabalho, a Lei 13.491/17, ratificou que o crime doloso contra a vida de civil é crime militar e sua investigação deve ser feita através de IPM. Além disso, para os casos como o do suposto crime de tortura ocorrido dentro de unidade militar investigado por autoridade policial civil, a nova lei representa o afastamento de possibilidade de recorrência do fato ocorrido. Nas condutas, em tese criminosas, praticadas por policiais militares em serviço, ou, ainda que de folga, atuando em razão da função ou em local sujeito à administração militar não existe a possibilidade de apreciação do fato por delegado de polícia.

Assim, se a mesma situação ocorre nos dias atuais, o acusado seria investigado em sede de IPM, e se ao final fosse confirmado o crime de tortura, o policial responderia perante à Justiça Militar estadual (AJMERJ) por conduta tipificada na Lei nº 9.455 de 07 de abril de 1997, Lei dos crimes de Tortura, combinada com art. , II, a, do CPM.

Dessa maneira, em qualquer outra situação que envolvesse circunstâncias semelhantes, toda parte pré processual: apreensão de objetos, recolhimento de provas, instrução de inquérito, é de responsabilidade dos comandantes militares, sendo vedado por força constitucional à Policia Civil, conduzir investigações de crimes militares.

Não obstante o potencial de benefício que a lei representa para a atividade de polícia judiciária militar, no Rio de Janeiro, a Polícia Militar permanece inócua em relação a investigação do crime doloso contra a vida de civil. Delegados de polícia, ao arrepio da Constituição, continuam investigando praticamente sem questionamento algum este crime militar, bem como, investigam sem nenhum questionamento, os crimes militares praticados por civis contra as instituições militares.

No dia 23 de outubro, apenas alguns dias depois da promulgação da lei 13.491/17, veiculou na página do portal G1 a notícia com o seguinte título: “Corregedor da PM do RJ pede exoneração do cargo”. Isso ocorreu, segundo própria matéria, devido à transferência da investigação do caso da Rocinha para a Delegacia de Homicídios (DH).

Figura 2

Fonte: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/corregedor-da-pm-do-rj-pede-exoneracao-do-cargo.ghtml .Acesso em 04 jan 2018.

O caso em tela envolveu policial militar que atingiu com disparo de fuzil uma turista na comunidade Rocinha durante uma abordagem policial. A mesma foi socorrida pelos policiais, mas morreu antes de chegar ao hospital

A matéria diz que a princípio a apuração da ocorrência com a turista estava sendo feita pela 1ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM), mas o caso foi enviado à DH.

O caso repercutiu internacionalmente, mas a questão intrigante é o fato das investigações terem sido passadas à Policia Civil. Não em razão de estar em vigor a nova lei que alterou o CPM em 2017, como já foi afirmado, ela não alterou a atribuição investigativa nos crimes dolosos contra a vida de civil, que desde 1969, é obrigação da Polícia Militar a instrução pré processual.

Algumas consequências podem advir dessa postura das autoridades militares. Citamos Costa[20], o qual entrevistou em 2010 a Promotora Pública, Isabella Pena Luca, que atuava junto à 1ª Promotoria Militar do Rio de Janeiro.

[...] ao ser indagada sobre a possibilidade de responsabilização penal da autoridade de polícia judiciária militar (mesmo o delegado de policia já havendo instaurado) que não instaurava o devido inquérito policial militar, se eximindo de sua competência, foi taxativa: afirmou que tal autoridade deveria obrigatoriamente, fazê-lo. Explicou que, dependendo do caso concreto, a autoridade de polícia judiciária militar que não instaurasse o inquérito policial militar de sua competência estaria, em tese, incorrendo em um dos dois tipos de crimes contra o dever funcional capitulados no CPM: prevaricação, caso fosse verificada a desídia, visando simplesmente ter menos trabalho ou interesse particular ou condescendência criminosa, [...] (grifo nosso)

Forçosamente, se fosse possível considerar o crime em tela como comum, (homicídio previsto no art. 205 do CPM contra civil ou previsto no 121 do CP são crimes militares no caso em questão), caberia atribuição investigativa das autoridades militares. Em outras palavras, se o crime doloso contra a vida de civil fosse crime comum, os comandantes militares ainda teriam obrigação de instaurar IPM para o caso. Primeiramente porque só é possível concluir por dolo ou culpa através da investigação. Além disso, diante desse fato podem estar presentes as seguintes circunstâncias:

1- Crime doloso (crime militar de competência do Tribunal do Júri);

2- Crime culposo (crime militar de competência da Justiça Militar);

3- Excludentes de ilicitude (pode justificar arquivamento de IPM pela Justiça Militar ou Justiça comum).

Sedo assim, não há razão para uma postura contrária à Constituição Federal e à legislação militar em vigor. Cabe ressaltar que a conduta do delegado que assumiu as investigações de um crime militar também é passível de respozabilização juntamente com a autoridade militar, a princípio pelo crime de usurpação de função pública, do mesmo modo, vai depender do elemento subjetivo.

5. O IMPACTO DA NOVA LEI SOBRE A AUDITORIA DE JUSTIÇA MILITAR

No Estado do Rio de Janeiro a AJMERJ é responsável por exercer função de Justiça Militar Estadual, processando e julgando os militares da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar em 1º instância. Atualmente possui apenas uma juíza de direito titular para presidir os processos nos Conselhos de Justiça. Esses processos, não restam dúvidas que aumentarão de quantidade após a entrada em vigor da Lei 13.491/97. Isso porque, além da possibilidade da prática do “crime militar extravagante”, que já ficou demonstrado que o universo da legislação penal é bastante vasto, existem os processos já em tramitação na justiça comum, nos quais os fatos são agora classificados como crime militar, e podem ser remetidos à AJMERJ devido ao declínio de competência sobre esses crimes.

5.1 As complexidades trazidas para o processo penal militar

Além do potencial aumento do número de processos junto à Auditoria Militar do Rio de Janeiro os juízes militares têm uma complexa missão de deliberar sobre as novas questões trazidas ao direito militar com a ampliação do rol dos crimes militares, como a aplicação de medidas despenalizadoras da legislação comum, aplicação de lei especial em detrimento do CPM, a ação penal nos crimes de iniciativa privada. Passaremos então a essas análises com a formulação de perguntas e respostas.

  1. Aos “crimes militares extravagantes” são aplicáveis os dispositivos da parte geral do Código Penal comum?

As regras gerais de aplicação penal da legislação penal comum ou militar são de imprescindível conhecimento não só para Ministério Público Militar e os Conselhos de Justiça, mas também para os comandantes militares, que são autoridades de policias judiciária militar. A adoção das teorias que divergem do direito penal e no direito comum, como a do estado de necessidade, que pode ser teoria diferenciadora ou unitária. Esse conhecimento vai auxiliar em sede de IPM, após confecção de relatório, o poder judiciário e o MPM com a instrução processual. Citemos o exemplo trazido à baila por Neves[21]:

Recorra-se, para tornar a questão mais evidente, ao exemplo de um crime de abuso de autoridade, em que o encarregado de um IPM, deliberadamente, negue acesso do advogado do indiciado ao caderno de investigação, configurando-se, assim, crime militar extravagante nos termos da alínea j do art. da Lei n. 4.898/65, combinado com a alínea c (atuando em razão da função), b (contra civil em lugar sujeito à administração militar) ou e (contra a ordem administrativa militar”), conforme a interpretação. Ao aplicar a regra prescricional do Código Penal comum, abstratamente, a prescrição da pretensão punitiva ocorreria em 3 anos, de acordo com o inciso VI de seu art. 109, enquanto que se aplicada a regra do Código Penal Militar, pelo inciso VII do art. 125, a prescrição se daria em 2 anos, devendo-se buscar resposta para esse conflito. (grifo do autor)

Como aduz o mesmo doutrinador, a solução é apresentada pelo art. 12 do Código Penal comum que dispõe que suas regras gerais “aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.

Isso significa que aos “crimes militares extravagantes”, que tem incriminação dada por lei especial, o Código Penal Militar, deve prevalecer sobre o Código Penal comum.

Do mesmo modo, a nova redação do art. dispõe sobre a legislação penal comum, não abarcando os institutos de processo penal comum, apenas para os casos omissos como preconizado na alínea a do art. do Código de Processo Penal Militar haverá a aplicação do CPP, estando via de regra os processos dos crimes militares extravagantes à luz do CPPM.

  1. Qual será a regra para ação penal militar nos “crimes militares extravagantes de ação penal de iniciativa pública condicionada?

É possível inferir, seguindo a mesma linha do raciocínio anterior, com base na literalidade da nova lei, que o disposto nos artigos 121 e 122 do CPM, que tratam da ação penal, devem prevalecer:

A AÇÃO PENAL

Propositura da ação penal

Art. 121. A ação penal somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar.

Dependência de requisição

Art. 122. Nos crimes previstos nos arts. 136 a 141, a ação penal, quando o agente for militar ou assemelhado, depende da requisição do Ministério Militar a que aquele estiver subordinado; no caso do art. 141, quando o agente for civil e não houver coautor militar, a requisição será do Ministério da Justiça.

A regra é a ação penal militar de iniciativa pública incondicionada, com as exceções elencadas nos art. 136 a 141, são crimes contra a segurança externa do país, os principais bens tutelados pela legislação penal militar, nos quais há a condição de requisição, e da ação penal privada subsidiária (inciso LIX do art. da CF).

  1. Haverá aplicabilidade da Lei. 9.099/95 (juizados especiais criminais) aos “crimes militares extravagantes”?

No que diz respeito à Lei n. 9.099/95, a questão se aproxima da anterior. Nos crimes de menor potencial ofensivo a exemplo da injuria, calúnia e lesão corporal culposa, surgirá o questionamento da obrigação de colher a representação do ofendido nos novos crimes militares. A própria Lei 9.099, pelo disposto no art. art. 90-A, restringe a aplicação aos processos que tramitam na Justiça Militar: art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”. Cabe salientar, que a matéria já foi amplamente debatida pela doutrina especializada e nos tribunais, ratificando o que dispõe esse artigo antes da entrada em vigor da Lei 13.491/17. A Suprema Corte decidiu em sede de Habeas Corpus nº 94.934/AM, do relator o Ministro Ricardo Lewandowski, pela inaplicabilidade da Lei dos Juizados Criminais Especiais, mesmo após a edição da Lei n. 10.259/2001:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL MILITAR. CRIME DE DESERÇÃO. ART. 187 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. INAPLICABILIDADE DAS LEIS 9.099/95 E 10.259/01. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. I – A partir do momento em que a Lei 9.839/99 acrescentou o art. 90-A à Lei 9.099/95, ficou vedada a aplicação dos institutos despenalizadores que ela contempla, no âmbito da Justiça Militar. II – A Lei 10.259/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais na esfera da Justiça Federal, não revogou o art. 90-A da Lei 9.099/95. Ao contrário, em seu art. , é expressa ao dispor que a esses Juizados se aplica, em não havendo conflito, o disposto na Lei 9.099/95. III – O fato de o paciente ter se ausentado, sem justa causa, da unidade militar em que servia, quando já tinha cumprido a quase totalidade do seu tempo de serviço militar obrigatório não o exculpa da prática do delito de deserção. IV – Ordem denegada”.

  1. Haverá aplicabilidade das medidas despenalizadoras da Lei 13.343/06 (Lei de Drogas) aos “crimes militares extravagantes”?

Mais uma vez, margeando os entendimentos anteriores, não há que se falar em princípio da insignificância ou autolesão para os crimes previstos na lei de drogas, quando considerados militares. A priori, haverá aplicação para esses casos do art. 290 do CPM, que do mesmo modo que o art. 90-A da Lei 9.099, foi amplamente discutido na doutrina e nos tribunais, afastando os institutos despenalizadores da Lei 13.343 do âmbito militar, citamos Alves Marreiros [22]:

É importante lembrar que o presente capítulo está inserido no Título VI que trata dos Crimes contra a incolumidade pública. Isto por si só já afastaria qualquer alegação de autolesão quando se fala em drogas: o próprio legislador deixou claro que tais crimes afetam a incolumidade pública e não só a individual. Some-se a isso que a atividade militar envolve o uso de armas, de viaturas, emergências, segurança de instalações, equipamentos e armas e, principalmente de vidas humanas o que torna os crimes de drogas especialmente perigosos à sociedade e à administração pública em relação aos crimes comuns. Lembramos mais uma vez que hierarquia e disciplina não são apenas as bases constitucionais das forças armadas e das forças militares estaduais, mas vão além: são garantias constitucionais para o cidadão e a Sociedade, pois são as garantias de que as instituições armadas do Estado estarão sob o poder civil, a ele subordinado e deverão agir sempre dentro da legalidade e com respeito aos direitos fundamentais. Imaginemos o risco de um soldado armado com um Fuzil de combate automático como o FAL, de serviço, só em seu posto, que está com maconha pronta para ser consumida no bolso e a usa, ficando em estado alterado de consciência, ou que não tinha a droga e a recebe de outro que não estava de serviço. Muita coisa pode acontecer: pode acabar não reconhecendo o rondante e atirando nele, pode ficar prostrado permitindo assim que alguém subtraia sua arma para usá-la no crime, pode cair nessa mesma prostração ou no sono e deixar que vigiar sua área de atuação, permitindo a entrada de estranhos que poderão matar seus colegas e danificar, sabotar e subtrair coisas, como armas, munições e explosivos. Usando droga durante uma blitz, a depender da droga, um policial militar, poderia disparar arma contra inocentes, usar de violência em situações em que, alucinado, entende estar acontecendo outra coisa, abusar contra civis, ou, simplesmente, não cumprir adequadamente seu dever de dar segurança aos indivíduos, à sociedade e, com isso permitir que crimes se realizem, que armas de bandidos passem, que bêbados e drogados prossigam dirigindo e matem inocentes na calçada ou em outros carros. O bombeiro que, drogado, acaba deixando de salvar pessoas ou provoca a morte do colega que atua contando que ele está em sua atuação normal. Não, definitivamente a droga no quartel, a droga usada por militar que está trabalhando, não é caso simplesmente de autolesão ou coisa semelhante: é caso de polícia, de processo e de condenação!

Assim, o civil ou militar acusado de crime previsto na Lei 13.343, não será beneficiado por medidas despenalizadoras. Ademais, como asseverou Min. Ellen Gracie em Julgado do HC 94685, um julgamento favorável ao réu poderia fragilizar as instituições militares.

Dessa maneira, demonstrada a periculosidade, exaustivamente debatida pela doutrina, o militar que pratica crime previsto na Lei de Drogas, bem como ocorria com os crimes tipificados no art. 290 do CPM, responderá à luz e rigores da legislação militar, reafirmando, sem benefícios despenalizadores da legislação comum.

  1. Haverá possibilidade do arbítrio da fiança pela autoridade de polícia judiciária militar aos novos crimes militares?

O instituto da fiança está previsto no art. 322 do CPP e os crimes inafiançáveis no artigo seguinte, in verbis:

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único. Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.

Art. 323. Não será concedida fiança:

I - nos crimes de racismo;

II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos;

III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

[...]

Diante dos valores inerentes às instituições militares, como defendido pela doutrina especializada majoritariamente, sob risco de desestabilizar os pilares sustentadores dessas instituições, a hierarquia e a disciplina, não houve assimilação do instituto da fiança ao direito processual penal militar.

  1. A Lei nº 12.850/2013 (organizações criminosas) poderá ser aplicada

na apuração de crimes militares extravagantes?

Inicialmente, vale esclarecer que anteriormente à Lei 13.491/17, havia a possibilidade de aplicação de Lei de Organizações Criminosas, pois esta, ao definir quais são os crimes praticados por organizações criminosas não enumerou um rol taxativo e sim circunstâncias. Por essa razão, não excluiu os crimes militares de serem amoldados às atividades de organizações criminosas, e em consequência disso, é cabível a utilização desta lei como mecanismo de auxílio à investigação.

Pela visão doutrinária, a título de exemplo, uma associação de quatro ou mais policiais militares que pratiquem sob a forma organizada, hierarquizada, condutas tipificadas no CPM, poderiam ser enquadrados no conceito da Lei nº 12.850, aplicando-se os dispositivos processuais da lei por força da alínea a do art. do CPPM.

O mesmo se aplica aos novos crimes militares, haja vista que não há dispositivo ou afronta aos valores militares que impeçam a aplicação dos meios de obtenção de prova do art. da Lei 12.850:

DA INVESTIGAÇÃO E DOS MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA

Art. 3o Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

§ 1o Havendo necessidade justificada de manter sigilo sobre a capacidade investigatória, poderá ser dispensada licitação para contratação de serviços técnicos especializados, aquisição ou locação de equipamentos destinados à polícia judiciária para o rastreamento e obtenção de provas previstas nos incisos II e V.

§ 2o No caso do § 1o, fica dispensada a publicação de que trata o parágrafo único do art. 61 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, devendo ser comunicado o órgão de controle interno da realização da contratação

7. Haverá possibilidade dos efeitos da Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos) aos “crimes militares extravagantes”?

O próprio dispositivo em análise definiu sua aplicação expressamente à legislação penal comum, “Art. São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:”. A doutrina especializada afirma que haverá a possibilidade de crime militar hediondo, desde de que, apenas nos crimes militares extravagantes, exemplifica Neves em artigo supracitado sobre as inquietações da investigação criminal após a Lei 13.491, afirmando que ao conjugar as duas leis (CPM e lei dos crimes hediondos), em um crime militar de homicídio qualificado por ter sido praticado por motivo fútil, previsto no inciso Ido § 2º do art. 205 do CPM, não há que se falar em aplicação dos dispositivos, entretanto, no caso do “crime militar extravagante” de feminicídio[23], cujo enquadramento se dá no inciso VIdo § 2º do art. 121 do CP, a citada lei poderá ser aplicada. Em razão disso, a aplicação desta lei atrai os institutos da prisão temporária, cuja aplicação também não é vedada aos “crimes militares extravagantes”. Ante o exposto, continuando a ilustração do caso do feminicídio, será permitindo à autoridade policial militar que requeira, ao Juiz de Direito do Juízo Militar, a prisão temporária do indiciado por prazo de 30 dias, com prorrogação por igual período, como prevê o § 4º do art. da Lei 8.072/90.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das questões evidenciadas neste trabalho, denota-se a grande modificação que a Lei 13.491/17 representa para o Direito Militar, trazendo modernização e melhorias para a atividade de investigação de crimes militares. Por outro lado, erguendo algumas questões complexas oriundas da legislação penal comum, que poderiam ou não, ser adequadas ao processo penal militar.

Ficou demonstrado que os benefícios oriundos da nova lei para a função exercida pelos comandantes militares apenas serão aproveitados se estes assumirem seu papel legal e constitucional diante da ocorrência de um crime militar, instaurando o devido inquérito policial militar, e providenciando as medidas preliminares previstas no art. 12 do CPPM, não incorrendo desta maneira, em um dos crimes previstos contra o dever funcional, ao permitir de delegados de polícia exerçam função que não lhes competem, inclusive, vedada pela Constituição, investigando infrações militares.

Abordamos tema que parece ser tabu para o meio militar: o crime militar praticado por civil contra as instituições militares estaduais, que por certo modismo da doutrina, alguns afirmam que civil não pratica crime militar na esfera estadual pelo fato de não ser competência da Justiça Militar. Deixamos mais que esclarecido o equívoco que representa essa afirmação. E que para esses crimes, a autoridade de polícia judiciária militar tem o dever de ofício de agir conforme o CPPM, inclusive indiciando por meio de IPM o agente civil, remetendo, ao final, o procedimento para AJMERJ, que vai deliberar sobre a existência ou não do crime, e se afirmativo, enviará os autos para Justiça comum, para que haja julgamento, mas nos termos da legislação militar.

Foi trazida à baila as complexidades que a nova Lei introduziu ao processo penal militar, pondo em conflito os “crimes militares extravagantes” oriundos da lei penal comum, com as regras que regem o processo penal militar, sendo constatado que, via de regra, os institutos despenalizadores benéficos ao indiciado ou acusado não se aplicam ao direito militar em razão da falta de previsão legal ou inadequação aos valores inerentes às instituições militares.

Os ataques gratuitos feitos às justiças militares e à atuação da polícia judiciária militar ficaram demonstrados através das matérias divulgadas em páginas da web, trazendo interpretações incorretas sobre a abrangência da nova lei por parte de juízes, “estudiosos” do direito comum, delegados e advogados criminalistas, todos com discursos semelhantes de que o crime militar dolosos contra vida de civil não deve ser investigado pela Polícia Militar por ser corporativista e que a Justiça Militar é condescendente com ações criminosas. Se pararmos brevemente para analisar isso, as conclusões podem ser diferentes. As próprias mídias publicam informações que não corroboram com essas acusações infundadas: 1) Em 2007, o Portal G1 publicou que um PM é preso a cada 25 horas no Rio. Levantamento revela que já foram 1.008 prisões de policiais militares desde 2004. Proporcionalmente, o número de expulsão de militares aumentou este ano (2007); 2) O Portal R7 publicou em 2012 que em 5 anos, PM do Rio expulsa quase mil policiais, o equivalente a 7 UPPs. De janeiro a setembro de 2012 , foram 247, praticamente um PM expulso por dia; 3) O site huffpostbrasil publicou no ano de 2014 que em quatro anos, 50 oficiais foram expulsos da Polícia Militar de SP; 4) O Portal G1, em 2017, publicou o seguinte: soldados da PM são expulsos por indisciplina em paralisação no ES e associações pedem direito à defesa; 5) O portal G1 publicou também em 2017, que no período de 2012 a 2016, a Polícia Militar do Rio de Janeiro demitiu 730 policiais.

Diante das ações supracitadas das Corregedorias e da Justiça Militar, punindo com a expulsão os policiais desviantes, qual é o cabimento para alegação de corporativismo? Os atores que apontam para as instituições e justiças militares como sendo lenientes com o crime, parecem fechar os olhos para o que ocorre na Justiça comum: O Portal G1 publicou em 2017 o seguinte: Audiências de custódia soltaram 61% dos presos em flagrante no RJ no primeiro trimestre de 2017. Os números do tribunal mostram que até 2015, mais de 58% dos presos iam para prisão preventiva. Em 2016, o número caiu para 42%. Ao que parece, ante esses números expressivos, será que leniente não seria a Justiça comum por deixar em liberdade elementos que representam perigo para sociedade? Finalizamos esse embate com essa reflexão e a alegação de um representante do Ministério Público na matéria acima:"As audiências de custódia estão servindo para uma soltura em massa de pessoas que foram presas cometendo crimes graves: roubos, tráfico e até violência sexual contra crianças. A gente sabe que as prisões estão lotadas, mas [ao] parar de mandar gente para lá a gente resolve o problema do estado, que deveria ter feito investimentos nessa área e não fez".

Encerramos nossas considerações remetendo às ações práticas que devem ser adotadas pelas autoridades de polícia judiciária militar propostas pela Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (FENEME) que editou uma norma técnica sobre a Lei13.4911/17, orientando os comandantes militares das policias de todo Brasil:

1. Militar em serviço ou em razão da função que praticar qualquer crime previsto na lei penal militar ou na legislação penal comum, deve ser imediatamente apresentado à autoridade de polícia judiciária militar competente com circunscrição na área, uma vez que a atribuição para a apurar é exclusiva a autoridade de polícia judiciária militar, e a polícia civil é incompetente, por força do art. 144, § 4º da Constituição, devendo o delegado de polícia ser responsabilizado por usurpação de função pública ou abuso de autoridade caso force o coato a submeter-se a ato de autoridade incompetente para tal apuração;

2. Militar que praticar, em qualquer situação (atuando em razão da função ou não, de serviço ou não), qualquer crime previsto na lei penal militar ou na legislação penal comum, em área sob jurisdição militar, deve ser imediatamente apresentado à autoridade de polícia judiciária militar competente com circunscrição na área, uma vez que a atribuição para a apuração é exclusiva da autoridade de polícia judiciária militar, e a polícia civil é incompetente, por força do art. 144,§ 4º da Constituição, devendo o delegado de polícia ser responsabilizado por usurpação de função pública ou abuso de autoridade caso force o coato a submeter-se a ato de autoridade incompetente para tal apuração;

3. Requerer ao juiz da jurisdição militar que requisite os inquéritos policiais civis que estejam em andamento e que envolvam militar em área de jurisdição militar, ou no qual o militar atuou em serviço ou em razão da função militar (em qualquer lugar), por se tratarem agora, de competência exclusiva da polícia judiciária militar;

4. Manter a instauração do inquérito policial militar nos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares, tendo em vista que a lei nova manteve inalterado o art. 82, § 2º do Código de Processo Penal Militar, e alterou a redação do parágrafo único do art. do CPM, suprimindo a competência da justiça comum, e prevendo estritamente a competência do tribunal do júri, ficando assim caracterizado como crime militar de competência do tribunal do júri, nos termos do art. 125, § 4º da CF/88.

7. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Leone Pinheiro Borges

Oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (CFO-PMERJ); Ex-Oficial da Reserva do Exército Brasileiro (CFOR-MatBel); Especialista em Operações de Choque – (COPC-PMERJ); Paraquedista Militar (C Bas Pqdt); Bacharel em Direito; Pós-graduado em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar; Pós-graduado em Ciências Jurídicas; Pós-graduando em Medicina Legal

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