Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos do sigilo da doação de material genético, e como consideramos importante, destacaremos também os conflitos de interesse existentes entre o direito do concebido de conhecer a sua origem genética e do doador de manter o seu anonimato.
O primeiro diz respeito ao direito de conhecer a sua origem biológica, direito este inerente a todos os seres humanos, e o segundo, se relaciona com o direito de se manter anônimo, tendo em vista que, ao doar o material genético, o doador não possui interesse em manter qualquer relação com o concebido.
Evolução histórica
Antes de analisarmos os aspectos jurídicos do sigilo dos doadores de material genético, é importante entendermos a evolução história da doação de material genético até os dias atuais.
Para a medicina alcançar as técnicas utilizadas atualmente foi preciso realizar muitos estudos e trabalhos. Há indícios de que nos séculos passados as pessoas já utilizavam algumas técnicas de inseminação artificial.
Segundo Heloisa Helena Barboza, “os árabes e os babilônicos praticavam a inseminação artificial em palmeiras, para obter maior número de tâmaras. Há notícias também de inseminação artificial de peixes no século XIV e com o bicho-da-seda no século XV[1]”.
Nota-se que, a princípio, as práticas eram limitadas à agricultura, mais tardar as experiências foram realizadas em mamíferos. Assim, expõe Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “a primeira experiência científica exitosa (e comprovada), envolvendo a reprodução assistida de mamíferos data de 1772[2]”.
Somente no final do século XVIII, ocorreram as primeiras experiências da técnica de reprodução assistida com os seres humanos. De acordo com João Álvaro Dias, Hunter, cirurgião inglês e diretor do Hospital S. George, conseguiu que uma paciente sua tivesse um filho em razão da inseminação artificial.[3]
No século XX, nasceu o primeiro “bebê de proveta”, Willian Artur Pussi relata: “Afinal, em 20.07.1978, nascia Louise Joy Brown, no General Hospital, na cidade de Oldham (Inglaterra), graças ao trabalho dos doutores Steptoe e Edwards, que vinham se dedicando à pesquisa há mais de quinze anos[4]”.
No Brasil, o primeiro bebê de proveta nasceu em 7 de outubro de 1984 e recebeu o nome de Anna Paula Caldeira. E, assim, as técnicas foram evoluindo até os dias atuais.
Doação de material genético e a técnica de reprodução assistida
A reprodução assistida possibilita que muitas pessoas que antes não poderiam ter filhos, realizem esse desejo.
Essa técnica, que a princípio era inimaginável, hoje se tornou muito comum, e resolve muitos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação.
Hoje em dia, muitos casais que sonham em ter filhos, mas que não podem, por motivos de infertilidade, realizam esse sonho por meio da reprodução assistida. Vale destacar que essa técnica pode ser utilizada, também, para casais do mesmo sexo.
Nesse sentido, Elvio Tognotti destaca: “É o método de tratamento que utiliza estimulação ovariana sob controle ultrassonográfico seriado e desencadeamento do processo ovulatório para planejar o coito fecundante ou para a inseminação intrauterina de sêmen do cônjuge ou de doador. Também são considerados reprodução assistida todos os tratamentos e procedimentos que incluem a manipulação in vitro de oócitos, espermatozoides ou embriões, com o objetivo de conseguir uma gestação”.[5]
São diversas as técnicas de reprodução assistidas, das quais podemos destacar: Transferência Intratubária de Gameta; fertilização in vitro; inseminação artificial; reprodução assistida homóloga; e reprodução assistida heteróloga.
No presente artigo, a técnica mais relevante para o desenvolvimento e análise do tema abordado é a da reprodução assistida heteróloga, assim definida por Silvio Rodrigues: “é a fecundação realizada com material genético de, pelo menos, um terceiro, aproveitando ou não os gametas (sêmen ou óvulo) de um ou de outro cônjuge[6]”.
Para Juliane Fernandes Queiroz, a doação de gametas é “o contrato mediante o qual o doador, por liberalidade, transferirá, do seu patrimônio corporal, óvulos (no caso da mulher) ou esperma (no caso do homem) para a titularidade de um terceiro[7]”.
Nessa técnica, o material genético é doado por pelo menos um terceiro, ou seja, uma pessoa alheia à relação. Pode ocorrer também a doação de dois terceiros, e, nesse caso, o concebido não possui material biológico de nenhum dos parceiros.
É na reprodução assistida heteróloga que surgem os conflitos de direitos: de um lado, o direito do doador de se manter anônimo e, de outro, o direito do concebido de conhecer a sua origem.
De acordo com Anna Morais Salles Beraldo, “os maiores problemas residem nos processos heterólogos, pois haverá a participação de um doador, estranho à relação. O consentimento para a reprodução assistida é ainda mais essencial nas técnicas heterólogas, tendo em vista o emprego de material genético de um terceiro desconhecido[8]”.
“Importante destacar que é garantido o anonimato do doador[9]”.
O grande problema surge quando o concebido cresce e decide buscar a sua origem biológica: por um lado temos o seu direito fundamental e por outro, o direito de anonimato do doador.
A esse respeito, Ana Cláudia Silva Scalquette dispõe:
Se de um lado o direito ao sigilo é garantido ao doador, com base no direito à intimidade e à sua dignidade, de outro o filho gerado com material doado tem igual direito de não viver à sombra de um pensamento de dúvida sobre quem seria aquele que lhe permitiu o nascimento. É também o mesmo fundamento da garantia de respeito à sua dignidade que impulsiona a busca por essa informação.[10]
É imprescindível que analisemos as questões jurídicas do direito do anonimato do doador e os conflitos existentes a partir disso. Para tanto, analisaremos a legislação brasileira e como ela busca resolver esse embate.
Direito ao anonimato do doador de material genético versus o direito do concebido de conhecer a sua origem biológica
Primeiramente, analisaremos o direito ao anonimato do doador, à luz da Constituição Federal Brasileira de 1988.
A princípio, o art. 1º, III, que estabelece como fundamento a dignidade da pessoa humana, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana”.
Segundo Alexandre de Moraes, a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[11].
A dignidade da pessoa humana é inerente a todos os seres humanos e possui relação com o direito natural, que é aquele que nasce com o homem, portanto, estão interligados.
Destaca Edilson Pereira:
Assim, respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições subhumanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares.[12]
Podemos considerar que muitos direitos derivam do princípio da dignidade da pessoa humana, tais como: saúde, educação, integridade física, liberdade, privacidade entre outros.
Nesse sentido, disserta Ingo Wolfgang Sarlet:
(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida[13].
De acordo com Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz, “o respeito à pessoa humana manifesta-se como limitador de qualquer legislação que venha a surgir sobre reprodução humana assistida[14]”.
Embora o direito ao anonimato, assim como o do conhecimento à identidade genética, não estejam previstos expressamente na Constituição Federal Brasileira de 1988, podemos extraí-los do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
Conforme exposto no art. 5º, X, são invioláveis a intimidade e a vida privada, por essa razão consideramos o direito ao anonimato fundamental.
Tendo em vista o fato de que o doador não possui interesse em manter uma relação socioafetiva com o concebido, e por isso se mantém anônimo, violar tal escolha significa violar o direito à sua intimidade e à sua vida privada.
Para Juliane Fernades Queiroz, o anonimato do doador, bem como dos receptores, é elemento caracterizador de todo o procedimento para a consecução das técnicas de reprodução assistida.[15]
No mesmo sentido a autora expõe:
“O anonimato é, ao mesmo tempo, medida de proteção de todas as partes envolvidas. De um lado, a doação do esperma veio para contribuir com o projeto parental de um casal impossibilitado de procriar. A esse casal nunca esteve presente a vontade de enquadrar um terceiro – o doador biológico – ao seu projeto. Em outro ângulo, o doador não possui nenhum projeto parental, é desinteressado quanto ao destino do sêmen e, portanto, não deseja nenhuma relação de filiação[16]”.
Ainda nas palavras de Juliane Fernandes Queiroz: “A experiência tem mostrado que, se não acobertados pelo anonimato, os doadores não se submeteriam a doar seus espermas[17]”.
Do mesmo modo, para Eduardo de Oliveira Leite: “o anonimato é a garantia da autonomia e do desenvolvimento normal da família assim fundada e também a proteção leal do desinteresse daquele que contribui na sua formação[18]”.
Portanto, temos que o direito ao anonimato do doador é fundamental e sem ele talvez não existissem doadores, tendo em vista que esse é um elemento de muita importância: aquele que doa não possui interesse em manter algum vínculo com o concebido.
Além do respaldo constitucional, identificamos a questão da doação de material genético e do anonimato na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, sendo válido citar alguns artigos, in verbis:
“Art. 1º O genoma humano constitui a base da unidade fundamental de todos os membros da família humana bem como de sua inerente dignidade e diversidade. Num sentido simbólico, é o patrimônio da humanidade.
Art. 7º Dados genéticos associados a indivíduo identificável, armazenados ou processados para uso em pesquisa ou para qualquer outro uso, devem ter sua confidencialidade assegurada, nas condições estabelecidas pela legislação.
Art. 9º Visando a proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais, limitações aos princípios do consentimento e da confidencialidade somente poderão ser determinadas pela legislação, por razões consideradas imperativas no âmbito do direito internacional público e da legislação internacional sobre direitos humanos”.
É possível observar que a Declaração considera a confidencialidade como proteção aos direitos humanos, bem como às liberdades fundamentais. Entretanto, relativiza tal direito, pois estabelece que ele pode ser limitado, desde que determinados na legislação, por razões imperativas no âmbito do direito internacional público e da legislação sobre direitos humanos.
Portanto, podemos considerar que o anonimato é um direito fundamental e de extrema importância quando se fala em doação de gametas, entretanto, pode ser limitado para proteger um direito de maior valor.
Ainda nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina se manifestou e editou a Resolução nº 2.121/2015, a fim de adotar as normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida.
O anonimato é abordado no Título IV, itens 2 e 4 da referida resolução, in verbis:
“2- Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
4- Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a)”.
Novamente vemos a relativização da confidencialidade do doador, entretanto, não é em qualquer hipótese, mas sim, diante de situações especiais, como por exemplo, motivação médica.
A esse respeito, é válido abordar, também, o direito do concebido de conhecer a sua identidade genética. Aqui é cabível o mesmo argumento referente ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Para sustentar tal argumento utilizaremos as palavras de Selma Rodrigues Petterle:
“Nesse sentido, a identidade genética da pessoa humana é um bem jurídico a ser preservado, enquanto uma das manifestações essenciais da personalidade humana[19]”.
Ainda nesse sentido, destaca:
“Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito fundamental à vida, (...) o direito à identidade genética é um direito fundamental implícito na ordem constitucional brasileira[20]”.
Alguns motivos, como por exemplo, necessidade médica e questões psicológicas, podem levar o filho socioafetivo a querer conhecer a sua origem biológica, e é nesse momento que ocorre o choque entre os dois direitos fundamentais expostos.
De acordo com Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz: “ (...)não há como se negar a importância da origem genética para a pessoa, dos pontos de vista psicológico, sociológico, médico ou jurídico[21]”.
Aqui se encontra o conflito que atualmente a legislação brasileira não o resolve. Portanto, nos valemos da doutrina para buscar alguma solução.
Robert Alexy relata:
“Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições[22]”.
Podemos concluir que o direito ao anonimato deve ser relativizado na medida em que o desconhecimento da origem genética do concebido possa trazer a ele enormes prejuízos; ou seja, não são todas as situações que devem autorizar tal quebra de sigilo.
A esse respeito, Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz leciona:
“O fato de alguém querer saber sua origem biológica simplesmente por curiosidade, sem que a ausência de tal informação tenha lhe gerado dano psíquico ao longo da vida, sem que haja perigo para a sua saúde ou possibilidade de relacionamentos consanguíneos, pode não justificar, no caso concreto, a revelação da identidade civil do doador[23]”.
Caso o Projeto de Lei nº 115/2015, cuja elaboração foi realizada pela Professora Dra. Ana Claudia Silva Scalquette e apresentado à Câmara pelo deputado Juscelino Rezende Filho, seja aprovado, teremos mais segurança ao abordar o tema, tendo em vista que o art. 19 trata exatamente do principal assunto abordado no presente artigo.
“Art. 19 O sigilo é garantido ao doador de gametas, salvaguardado o direito da pessoa nascida com utilização de material genético de doador de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial. Parágrafo único. O mesmo direito é garantido ao doador em caso de risco para sua vida, saúde ou, a critério do juiz, por outro motivo relevante”.
Portanto, notamos que, atualmente, o conflito existe e não possui uma solução. Todavia, caso seja aprovado o referido Projeto de Lei, finalmente teremos a solução para tal colisão.