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Usucapião de bens móveis tombados.

Uma análise em busca da efetividade protetiva do Decreto-Lei nº 25/1937

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04/05/2005 às 00:00
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6. A NECESSIDADE DA INTERVENÇÃO MINISTERIAL NAS AÇÕES DE USUCAPIÃO DE BENS MÓVEIS DE VALOR CULTURAL

            Como sabido, nos últimos tempos o Ministério Público tem repensado a sua forma de atuação como custos legis no processo civil e adotado medidas com o intuito de racionalizar a sua intervenção nos feitos de forma a viabilizar a maior utilidade e efetividade na atuação ministerial no papel de defensor da sociedade, em benefício dos interesses sociais, coletivos e individuais indisponíveis, assumindo seu novo papel constitucional delineado nos arts. 127 e 129 da Carta Magna, que nitidamente priorizam a defesa de tais interesses por parte do Ministério Público, na qualidade de órgão agente.

            Como exemplo desse moderno pensamento institucional podemos citar a Recomendação nº 01, de 03 de setembro de 2001, expedida pelo Conselho Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais que "Fixa orientações funcionais, sem caráter normativo, sobre a intervenção do Ministério Público no Processo Civil", recomendando aos Membros do Ministério Público que oficiam no âmbito cível para não mais intervir em vários feitos, incluindo aqueles que versam sobre o usucapião de bem móvel. (19)

            De igual forma, o Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União, na chamada "Carta de Ipojuca", datada de 13 de maio de 2003, deliberou no sentido de ser desnecessária a intervenção ministerial em demandas envolvendo usucapião de bens móveis. (20)

            Embora seja indiscutível a necessidade de se otimizar a atuação ministerial em feitos cíveis, deve-se ter redobrado cuidado com as generalizações acerca da não-intervenção, sendo indispensável a verificação, em cada caso concreto, sobre a eventual hipótese que justifique a presença do Parquet como custos legis nos autos, seja em razão da qualidade das partes envolvidas, seja em razão da natureza da lide (art. 82, III, CPC).

            Assim, por exemplo, no caso de ação de usucapião de bem móvel consistente em uma peça sacra de grande importância artística e histórica (patrimônio cultural na dicção do art. 216 da CF/88), indiscutível a necessidade da intervenção ministerial ante a flagrante presença de interesse público evidenciado pela natureza da lide, uma vez que se verifica o interesse público, pela natureza da lide, em casos em que a aplicação do direito objetivo não pode ficar circunscrita às questões levantadas pelos litigantes, mas, ao contrário, deve alcançar valores mais relevantes. (21)

            Com efeito e como nos ensina Rui Arno Richter, invocando a doutrina de Carlos Frederico Marés:

            Todos os bens culturais são gravados de um especial interesse público – seja ele de propriedade particular ou não. Aliás, isto ocorre não apenas com os bens culturais, mas também com os ambientais em geral. Esta nova relação de direito entre os bens de interesse cultural ou ambiental com o Estado e os particulares vem dando margem a uma nova categoria de bens, os bens de interesse público que não se reduz apenas a uma especial vigilância, controle ou exercício do poder de polícia da administração sobre o bem, mas é algo muito mais profundo e incide diretamente na sua essência jurídica. A limitação imposta aos bens de interesse público é de qualidade diferente da limitação geral imposta pela subordinação da propriedade privada ao uso social. As limitações gerais produzem obrigações pessoais aos proprietários que devem tornar socialmente úteis as suas propriedades, enquanto as limitações impostas a esses bens de interesse público são muito mais profundas pois modifica a coisa mesma, passando o poder público a, diretamente, controlar o uso, transferência, a modificabilidade e a conservação da coisa, gerando direitos e obrigações que ultrapassam a pessoa do proprietário, atingindo o corpo social, que passa a ser co-responsável, interessado e legitimado para a sua proteção, além do próprio poder público. (Meio Ambiente Cultural. Curitiba, Juruá, 2003, pp. 49-50)

            Em caso como o acima exemplificado o Ministério Público deve intervir no feito perquirindo inclusive sobre a origem do bem em litígio e eventual proteção administrativa ou legal dada ao mesmo, objetivando obstar eventuais manobras das partes no sentido de se burlar a vedação de se alienar bens tombados sem a prévia notificação e oferecimento aos entes federativos, como exigido pelo Decreto-Lei 25/37, sob pena de tornar letra morta as suas disposições acerca da circulação dos objetos tombados.

            A ausência da intervenção ministerial em causas envolvendo discussão sobre bens de valor cultural (integrantes do que hodiernamente se chama meio ambiente cultural, bem jurídico que deve ser defendido pelo Ministério Público por expressa determinação constitucional) gera a nulidade absoluta do feito.

            A jurisprudência, a propósito, tem decidido sobre o tema:

            A interpretação contemporânea do art. 82, III, do CPC, não pode desviar-se da vontade constitucional (art. 127) de outorgar ao Ministério Público a missão precípua de participar, obrigatoriamente, de todas as causas que envolvam aspectos vinculados à proteção do meio ambiente, por ressaltar a preponderância do interesse público. (STJ – RESP 486645 – SP – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 09.02.2004 – p. 00129)

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            EMBARGOS A EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL - OBRIGAÇÃO DE FAZER - RETIRADA DE TIRANTES PROTENDIDOS - IMÓVEL URBANO DE VALOR HISTÓRICO E CULTURAL - TOMBAMENTO PELO PATRIMÔNIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ - LEGÍTIMO INTERESSE DO PODER PÚBLICO NO ACAUTELAMENTO E PRESERVAÇÃO DOS IMÓVEIS ENVOLVIDOS NA QUESTÃO EM DESLINDE - INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO - INTERESSE PÚBLICO EVIDENCIADO PELA NATUREZA DA LIDE - ART. 82, III, DO CPC - AUSÊNCIA - NULIDADE ABSOLUTA AB INITIO - DECRETAÇÃO DE OFÍCIO - DETERMINAÇÃO NO SENTIDO DE SER REFEITA A INSTRUÇÃO PROCESSUAL COM A INTERVENÇÃO DO AGENTE DO PARQUET - APELAÇÃO PREJUDICADA. Decisão: Acordam os desembargadores integrantes da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, de ofício, anular o processo, restando prejudicada a apelação. (Apelação Cível nº 0117006500, Acórdão 20876, 2ª Câmara Cível do TJPR, Curitiba, Rel. Des. Hirose Zeni. j. 30.04.2002)


7. CONCLUSÕES

            Ante as considerações acima expendidas podemos concluir que:

            1.Os bens tombados, ainda que particulares, se sujeitam, por força do que dispõe o Decreto-Lei 25/37, a um peculiar regime jurídico que muito se aproxima do regime jurídico público.

            2.Os bens particulares tombados, conquanto permaneçam como propriedade de seu titular, saem da órbita da vontade exclusiva deste e ficam submetidos a uma finalidade coletiva e impessoal.

            3. Os bens particulares tombados têm sua alienabilidade restringida, sendo considerados coisas fora do comércio enquanto não satisfeitas as condições legalmente exigidas para a sua alienação.

            4.A validade do negócio jurídico oneroso envolvendo bens móveis tombados fica condicionada ao prévio oferecimento de tais coisas ao Poder Público, na forma estabelecida pelo Decreto 25/37.

            5.A alienação onerosa de bens móveis particulares tombados, sem obediência ao disposto no Decreto-Lei 25/37, não transfere ao adquirente a posse da coisa, mas a mera detenção, que não tem o condão de assegurar posterior direito ao usucapião do bem.

            6.É absolutamente impossível particulares usucapirem coisas tombadas de propriedade do Poder Público, tanto em razão do disposto na Súmula 340 do STF, quanto do disposto no art. do Decreto-Lei 25/37.

            7.A intervenção do Ministério Público nas ações de usucapião de bens móveis de valor cultural é obrigatória sob pena de nulidade, uma vez que evidenciado o interesse público em decorrência da natureza da lide.

            8.Nas ações de usucapião de bens móveis de valor cultural deve o Ministério Público requerer as diligências necessárias para se aclarar a origem do bem em litígio além de eventual proteção dada ao mesmo, objetivando obstar eventuais manobras das partes no sentido de se burlar a vedação de se alienar bens tombados sem a prévia notificação e oferecimento aos entes federativos, como exigido pelo Decreto-Lei 25/37.


NOTAS

            1 Ementa n° 01 da Carta de Goiânia, que sintetizou as conclusões alcançadas durante o 1º Encontro Nacional do Ministério Público na Defesa do Patrimônio Cultural, realizado nos dias 22 e 23 de outubro de 2003, na cidade de Goiânia-GO. Disponível em www.mp.mg.gov.br/geppc

            2 Resolução PGJ 52/2003, disponível em www.mp.mg.gov.br/geppc

            3 Olinto Rodrigues dos Santos Filho, coordenador de campo do Inventário dos Bens Móveis e Integrados de Minas Gerais realizado pelo IPHAN, em artigo intitulado Pilhagem em Minas – Hora de Agir. In: Caderno Pensar. Jornal Estado de Minas. s.d.

            4 A jurisprudência desta Turma, bem assim da Primeira Turma, é no sentido de admitir indenização de área tombada, quando do ato restritivo de utilização da propriedade resulta prejuízo para o dominus. (STJ – RESP 401264 – SP – 2ª T. – Relª Minª Eliana Calmon – DJU 30.09.2002)

            5

Maria Coeli Simões Pires. Da proteção ao patrimônio cultural. Del Rey. 1994. p. 156 e 160. Trilhando indêntico entendimento, no julgamento do RESP 25371/RJ o Superior Tribunal de Justiça deixou consignado que: consoante dispõe a lei (Decreto-lei n. 25/37), ocorrendo o tombamento, o bem a este submetido, adquire regime juridico "sui generis", permanecendo o respectivo proprietário na condição de administrador.

            6

RT 147/785

            7

Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo II. Rio de Janeiro. Borsoi. 1954, p. 174.

            8

Silvio Rodrigues. Direito Civil. Parte Geral. Vol. 1. 8ª ed. Saraiva. 1978. p. 135.

            9

Direito Ambiental Brasileiro. 9. ed. Malheiros. 2001. p. 886.

            10 Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Forense, p. 440.

            11

Tito Fulgêncio. Da Posse e das Ações Possessórias. Forense, nº 51, p. 56/57.

            12

TJMG - Ap. Cível nº 241.446-4; Rel. Des. Almeida Melo.

            13

Tito Fulgêncio. id. ibid..

            14

TJMG. ACiv. 000.326.621-0/00 – Rel. Dês. Célio César Paduani.

            15

Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil. 4. ed. Atlas, 2004, Direitos Reais, v. 5, p. 212.

            16

TRF – 4ª Região – Terceira Turma - REO 199804010436598 - 29/04/1999- Rel. Juiza Maria de Fátima Freitas Labarrère.

            17

No Direito Português existe expressa e literal vedação da aquisição de bens culturais protegidos, através de usucapião. O art. 34 da Lei 107/2001, que "Estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural" dispõe que: "Os bens culturais classificados nos termos do artigo 15.º da presente lei, ou em vias de classificação como tal, são insusceptíveis de aquisição por usucapião".

            18

Autos 96.00.09170-6, 11ª Vara Federal. Belo Horizonte, Juíza Federal Angela Maria Catão Alves.

            19

Item a, VI, da Recomendação 01/2001, publicada no DOEMG de 12.09.2001.

            20

Item 4, IX, da Carta de Ipojuca (PE), Publicada no DOEMG de 14.10.2003.

            21

RT, 484:125.
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Sobre o autor
Marcos Paulo de Souza Miranda

Promotor de Justiça. Coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Especialista em Direito Ambiental. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais. Autor do livro "Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro" (Belo Horizonte: Del Rey, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Marcos Paulo Souza. Usucapião de bens móveis tombados.: Uma análise em busca da efetividade protetiva do Decreto-Lei nº 25/1937. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 668, 4 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6671. Acesso em: 28 mar. 2024.

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