Análise da desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório

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08/06/2018 às 00:00
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2.    DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O presente capítulo apresenta o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, e para isto serão demonstrados os fatores que impulsionaram o surgimento do instituto, supramencionado, no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os precedentes judiciais e as necessidades sociais.

O capitulo demonstra a atuação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em vários ramos do ordenamento jurídico brasileiro e, sobretudo das relações submetidas ao direito público.

2.1 PERSONALIDADE JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO

O direito romano não reconhecia a possibilidade da união de pessoas com a finalidade de administrar e compartilhar bens. Isto porque não havia a figura abstrata da pessoa jurídica.[54]{C}

A necessidade da união de bens e de conjugar esforços para conseguir evoluir no mercado impulsionou o surgimento pessoa jurídica.{C}[55]

Para o Venosa a pessoa física ou natural quando só é pequeno para desenvolver grandes empreendimentos:

O ser humano, pessoa física ou natural, é dotado de capacidade jurídica. No entanto, isoladamente é pequeno demais para a realização de grandes empreendimentos. Desde cedo percebeu a necessidade de conjugar esforções, de unir-se a outros homens, para realizar determinados empreendimentos, conseguindo, por meio dessa união, uma polarização de atividades em torno de grupo reunido[56]{C}

Desta forma, a pessoa jurídica surgiu a partir da necessidade de reunir esforços, com o objetivo de exteriorizar atividades elementares no empreendimento.

Para Maria Helena Diniz a pessoa jurídica é a união de pessoas naturais ou de patrimônios, que tem a finalidade de obter certos fins. Tal pessoa jurídica formada por essa união poderá, dessa forma, ser sujeito de direito e obrigações. {C}[57]

O jurista De Plácio indica que a pessoa jurídica está subordinada à lei e, também, ao propósito da sua criação:

Em oposição à pessoa natural, expressão adotada para a indicação individualidade jurídica constituída pelo homem, é empregada para designar instituições, corporações, associações e sociedades, que, por força ou determinação da Lei, se personalizam, tomam individualidade própria, para construir uma entidade jurídica, distinta das pessoas que a formam ou que a compõem. Diz-se jurídica porque se mostra uma encarnação da lei. E, quando não seja inteiramente criada por ela, adquire vida ou existência legal somente quando cumpre as determinações fixadas por lei.{C}[58]

Assim sendo a pessoa jurídica deverá, para sua constituição, representar seu propósito inicial, que está no seu estatuto de criação. O artigo 45 do Código Civil, expressa que a pessoa jurídica passa a ter existência a partir do registro dos seus atos constitutivos, como o estatuto e o contrato social.

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.

ilvio Venosa indica que para a constituição da pessoa jurídica são necessários três requisitos, bem como a vontade humana criadora, observância das condições legais para sua formação e finalidade lícita.[59]{C}         

Ainda no tocante à definição da pessoa jurídica, entende que aqueles associados que constituíram a personalidade jurídica possuem personalidade jurídica e patrimônio diversos desta.[60]

A autonomia patrimonial protege o empreendedor do risco que o mercado oferece e, portanto, além de estimular a evolução no empreendimento promove a proteção do patrimônio dos gerenciadores das pessoas jurídicas, como no caso da Sociedade Limitada (LTDA).

Destarte assim a personalidade jurídica é um marco da evolução do sistema capitalista, que visa a evolução das relações econômicas.

Contudo a técnica jurídica feita para acompanhar tal evolução restou, às vezes, frustrada. O jurista Silvio Venosa indica que:

Hoje, na pessoa jurídica, a pessoa natural despersonaliza-se, torna-se um objeto, um joguete de interesses. Os poderosos controladores da pessoa jurídica do presente podem, sem nenhuma hesitação, torna-se o mecanismo obsoleto do amanhã. Tais reflexos não devem ser esquecidos pelo legislador, porque repercutem decididamente na questão social ou econômica com relação direta com o desemprego e produção.[61]

Dessa forma, na ausência das limitações nos atos das personalidades jurídicas, mediante lei, poderão ocorrer ações lesivas à sociedade, vez que o uso irrestrito da personalidade jurídica pode gerar ações diversas daquelas indicadas no ato de constituição, em virtude do “mau uso” do instituto jurídico. Tal técnica proposta pelo homem pode ter seu propósito, que é iluminador para as relações econômicas, ofuscado pelo uso incorreto e lesivo à sociedade.

2.2 INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem origem no direito anglo saxão, que é caracterizado pelo sistema common law, e foi absolvido no ordenamento jurídico brasileiro anos posteriores aos primeiros precedentes.

O instituto “disregard doctrine” foi desenvolvido nos países que adotam o sistema commom law, bem como Estados Unidos da América e Inglaterra. O primeiro precedente ocorreu no ano de 1809, e ficou conhecido como o caso bank of United Startes V. Deveaur, nos Estado Unidos da América. Na ocasião foi decidido pelo reconhecimento do instituto, pelo juiz Mashall, em virtude da garantia das cortes federais sobre as corporations {C}[62]

Posterior ao caso supramencionado, no ano de 1897, ocorreu o primeiro impasse legal, na aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, na Inglaterra. O embate jurídico conhecido como caso Salomon v Salomon e Co, reconheceu a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, contudo que posteriormente foi reformado pela câmara dos Lordes. [63]

Mais incisivamente foi proposto pelo alemão Rolf Serick nos anos de 1950, a sistematização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica bem como:

(I) caso a estrutura formal da pessoa jurídica seja utilizada da maneira abusiva, o juiz poderá descarta-la para frustrar o resultado contrário ao Direito que se persegue; (II) não é suficiente a alegação de que sem a desconsideração não se possa atingir a finalidade de uma norma ou de um negócio jurídico; (III) as normas fundantes nas qualidades ou capacidades humanas, ou que considerem valores humanos, também deve, ser aplicadas às pessoas jurídicas quando a finalidade da norma corresponder a esta classe de pessoas admitindo-se que se penetre na personalidade das pessoas situadas atrás da pessoa jurídica para comprovar se concorrem as hipóteses das quais dependente a eficácia da norma; (IV) se a forma da pessoa jurídica for utilizada para ocultar a identidade que, de fato, existe entre as pessoas que intervieram em um determinado ato, poderá ser descartada tal forma quando a norma dos sujeitos interessados não é puramente nominal, mas verdadeiramente efetiva.[64]

Rolf Serick demonstrou que poderiam ocorrer limites nos atos da pessoa jurídica  sempre que ocorresse abuso do direito no uso desvinculado daquele previsto na constituição da pessoa jurídica. Indicou que poderia, dessa forma, ocorrer a responsabilização dos gerenciadores.   

Nesse tocante, na limitação aos direitos da pessoa jurídica, Koury indica que a função da pessoa jurídica é prevenir os riscos aos empreendedores/empresários, sendo certo que a união de patrimônio e a distinção da personalidade jurídica promovem o desenvolvimento econômico, proteção do patrimônio dos sócios, e, portanto, o desenvolvimento social. Contudo todo instituto jurídico poderá ter sua finalidade desviada. [65]

Para Koury, o pressuposto elementar para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é o desvio de função, que ocorre quando a empresa é usada deliberadamente para obter resultados diversos àqueles previstos na constituição da pessoa jurídica.[66]

Para Venosa os atos praticados pela pessoa jurídica que não coadunam com sua finalidade, que ocorrem com o objetivo de lesar terceiros, são fraudulentos e ilegítimos.{C}[67]

Da mesma forma Venosa indica que nesses atos ocorre a desconsideração da personalidade técnica, e indica que:

Imputa a responsabilidade aos sócios e membros inegrantes da pessoa jurídica que procuram burlar a lei ou lesar terceiros. Não se trata de considerar sistema taticamente nula a pessoa jurídica, mas, em caso específico e determinado, não a levar em consideração. Tal não implica, como regra geral, negar validade à existência da pessoa jurídica.{C}[68]

Rubens Requião, que definiu a “disregard doctrine” através de seu objetivo, indicou que o objetivo do instituto não é anular a personalidade jurídica, contudo afastá-la apenas nos casos concretos de abuso de direito.[69]

Em diapasão Fábio Ulhoa salienta que o efeito da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica gera apenas “ineficácia episódica” da personalidade jurídica.[70]

O instituto possibilita afastar os efeitos da personalidade jurídica com o propósito de responsabilizar os sócios/gerenciadores, coibindo assim a consumação de fraudes. Flavio Tartuce indica que:

Tal instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos cometidos pelos mesmos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa.[71]

A doutrina aponta duas formulações para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, bem como as denominadas maior e menor.[72]

Para Fabio Ulhoa existem duas formulações, bem como a subjetivista e a objetiva. Como os próprios nomes revelam, a primeira estabelece elementos para a limitação da personalidade jurídica através de elementos subjetivos, e, a segunda, objetiva, que constrói os elementos em preposto objetivos.[73]{C} 

Fábio Konder Comparato entende que na concepção objetiva deverá apontar a confusão patrimonial e o desaparecimento do objeto social para aplicação do instituto jurídico enquanto a subjetiva se concentra a fraude pelo abuso do direito.

A confusão patrimonial, na teoria objetiva, tem que ser demonstrada em juízo. Deve ser comprovado em concreto que a fraude ocasionou dano a terceiro, conforme indica Hent:

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Com a quebra do rigor da personalidade jurídica, a execução de obrigações assumidas pelos sócios, particularmente, será estendida, nos seus efeitos, à sociedade da qual fazem parte. Bem como, nas obrigações sociais, permite atingir os sócios, nos seus bens particulares. É necessário, porém, que haja abuso da personalidade jurídica em prejuízo de terceiros, o que deve se verificar in concreto.[74]

A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, desta forma, será mais clara quando utilizados de formas objetiva os pressuposto para a aplicação,  no caso, nas questões atinentes a confusão patrimonial.

2.2.1  DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica surgiu, de forma tímida, pela primeira no ordenamento jurídico brasileiro na Consolidação das Leis Trabalhistas, no artigo 2, §2º.

Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

Outrossim, no projeto do Código Civil de 1975, no artigo 59, também foi demonstrado, de forma simplista, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Públicos, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Venosa indica que a redação do artigo 59 do projeto do Código Civil de 1975 pouco tratou da teoria estrangeira da desconsideração da personalidade jurídica, e em virtude da má redação não especificou as hipóteses da aplicação no caso concreto e, tampouco, atuação de terceiros interessados.[75]

A primeira disposição a tratar do instituto da desconsideração da personalidade jurídica é o artigo 28  do Código de Defesa do Consumidor na Lei 8.078/90. Tal artigo expressa que:

Art. 28 O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimentos do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

O artigo mencionado indica a possibilidade da aplicação da desconsideração pelo próprio juiz. Tal medida é obrigatória quando presentes os requisitos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, e desta forma afasta a discricionariedade e concretizou suas ações na proteção da parte hipossuficiente.[76]

Também há no ordenamento jurídico brasileiro na Lei 12.529/11, conhecida como Lei Antitruste, hipótese da desconsideração da personalidade jurídica. O artigo 34 expressa que:

A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poderm infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatos ou contrato social.

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A Lei Antitruste, conforme indica a redação do artigo 34, não assegura a parte mais fraca de uma relação jurídica, mas o interesse público que se desdobram da relação jurídica.[77]

Na proteção dos direitos coletivos e difusos, a Lei 9.605/98 regulamentou a responsabilidade dos danos causados no meio ambiente. O artigo 4° da referente Lei expressa que:

Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Nesta lei é possível observar a possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, civil e penal.[78]

Da mesma forma foi atribuído ao ordenamento jurídico brasileiro, no Código Civil de 2002, no artigo 50, possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, A redação do artigo 50 do Código Civil expressa que:

em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

O Código Civil de 2002 estabeleceu hipóteses restritivas para aplicação do instituto. A hipótese de abuso da personalidade jurídica que pode ocorrer devido a confusão patrimonial e a possibilidade quando ocorrer desvio de finalidade.

Antonio Cecilio Moreira Pires entende que a fraude também é uma hipótese de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, vez que está no conceito de abuso de personalidade quando trata de desvio de finalidade.[79]

Mais recentemente foi incorporado na Lei 12.846/2013, denominada de Lei anticorrupção, no artigo 14, possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica. A redação do artigo expressa que:

A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

Maurício Zockun considera que os objetivos ilícitos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica na Lei Anticorrupção são as condutas previstas no artigo 5° da Lei Anticorrupção. Se as condutas praticadas provocarem a confusão patrimonial poderá ocorrer a aplicação do instituto. Outrossi,  Zockun, entende que nos atos descritos anteriormente, os administradores das pessoas jurídicas são os beneficiários da lesividade à probidade administrativa, e portanto ocorrerá punição.[80]

O artigo 5° da referida Lei expressa os atos lesivos à Adminsitração Pública. São atos lesivos aqueles que atentem contra o patrimônio público, contra os princípios da Administração Pública. Insta salientar que o referido artigo no inciso IV regulamenta as licitações e o contrato.

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