Análise da desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório

Exibindo página 3 de 4
08/06/2018 às 00:00
Leia nesta página:

3. DA APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O capitulo propõe uma analise, mediante a dialética, da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em processo licitatório.

A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, nas sanções administrativas previstas no artigo 87 da Lei 8.666/1993, não tem previsão legal, tampouco, há, também, regulamentação quanto ao procedimento da aplicação do referido instituto. Contudo a anuência da Administração Publica aos atos fraudulentos de gerenciadores de pessoa jurídica, nos processos de licitação, provocam a violação dos princípios da Administração Pública, bem como a moralidade administrativa e a indisponibilidade dos bens públicos, consequentemente, o interesse público.

Destarte, assim, nesse contexto, será exposto, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no processo de licitação. Da mesma forma, o procedimento de aplicação do instituto. Por fim será ilustrado o embate, de forma dialética, em julgados, demonstrando o posicionamento do Judiciário frente a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em sanções administrativas que estão previstas no artigo 87 da Lei 8.666/1993.

3.1     APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONAIDADE JURÍDICA NA EXTENSÃO DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS PREVISTAS NA LEI DE LICITAÇÃO 8.666/1993

Conforme demonstrado no primeiro capítulo deste trabalho, na Administração Pública tem princípios norteadores, que possuem força normativa. Os princípios da indisponibilidade do interesse público e da moralidade administrativa possibilitam a garantia do interesse público, e formam a fundamentação para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, na extensão das sanções administrativas previstas na lei 8.666/1993.[81]

Pires entende que uma vez explicita as condições para a desconsideração da personalidade jurídica, bem como a fraude no desvio de finalidade, deverá a Administração Pública agir. O autor salientar que ignorar a fraude no processo licitatório é aviltar o direito, igualmente, compactuar com a fraude e desvincular com a moralidade administrativa.[82]

Quanto ao princípio da moralidade, sustentáculo no fundamento da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, vale destacar o sentindo indicado por Marrara:

A moralidade administrativa representa o respeito aos valores maiores do Estado, ou seja, aos valores, eleitos democraticamente e consagrados no ordenamento jurídico, que justificam a existência e a ação do Poder Públicos, inclusive de modo a restringir a liberdade e a propriedade privada em algumas situações. Nesse sentido, a moralidade administrativa representa o dever de que as autoridades e instituições públicas observem constantemente as finalidades maiores do Estado – previstas no art. 3° da Carta Magna, por exemplo. 109

O referido autor indica que os agentes públicos, autoridades e instituições públicas, são responsáveis pela observância constante da prática da moralidade administrativa que está nos valores democráticos da Constituição Federal.

O princípio da indisponibilidade do interesse público impulsiona o ato administrativo que aplica a desconsideração da personalidade jurídica conforme indica Pires:

Ao dizermos que o princípio da moralidade oferta à Administração o sustentáculo adequado para a desconsideração da personalidade jurídica, não podemos esquecer que agregado a esse, temos outro princípio de igual magnitude, o princípio da indisponibilidade do interesse público, a impulsionar a Administração a uma tomada de decisão que venha ao encontro do interesse público.

O referido autor afirma que os princípios da moralidade administrativa e indisponibilidade do interesse público são pilares para a aplicação do referido instituto jurídico.

A título de exemplo vale destacar a seguinte hipótese, em que determinada empresa (pessoa jurídica) é contratada, mediante Licitação, pela Administração Pública, para prestar serviços de locação de ambulâncias, durante o período de 12 meses. E que mesmo diante do cumprimento do contrato pela Administração Pública a contratada deixa de fornecer os serviços estabelecidos no contrato, ocasionando a morte de um cidadão destinatário do serviço público. Mediante tal conduta a Administração Pública decide sancionar a empresa, e impedi-la de participar de processo licitatório, nos termos do artigo 87 da Lei 8.666/1993.

Para que pudesse participar do processo licitatório, os gerenciadores da referida empresa, no caso hipotético, decidem constituir nova pessoa jurídica com o mesmo objeto no contrato social e os sócios de empresa sancionada, com a finalidade de participar de processo licitatório.

Insta salientar que o interesse público, no caso hipotético foi frustrado mediante a má execução do contrato, vez que causou prejuízos aos cidadãos aos quais foram destinados os serviços públicos. A aplicação da sanção administrativa ocorre para impedir ocorrência das praticas que frustram o interesse público. Assim, a constituição de nova pessoa jurídica com a finalidade de burlar a sanção administrativa é novamente ato que burla o interesse público.

Mediante situação supramencionada a Administração Pública, mesmo na ausência de lei, deverá com base nos princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade do interesse público aplicar o instituo da desconsideração da personalidade jurídica.[83]

Celso Antonio  Bandeira de Mello menciona a importância do princípio, e indica a gravidade da violação deles:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio ofende não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra{C}[84]

Assim a Administração Pública não poderá justificar sua omissão frente às fraudes em processo licitatório em virtude da ausência de previsão legal, vez que sua anuência aos fatos por falta de regulamentação de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, colide com o interesse público e, consequentemente, com os princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade do interesse público.[85]

Luiz Eugenio Scarpino Junior entende pela possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, e fundamenta a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no poder- dever de agir da Administração Pública.[86]

Para Scarpino o poder – dever de agir está intimamente ligado a efetividade dos princípios da legalidade e eficiência da Administração Pública.

Indica, ainda, que em situação conflitante ao interesse público deverá a Administração agir de forma mais incisiva com o objetivo de restaurar a legalidade e moralidade.{C}[87]

A ocorrência da aplicação do referido instituto no processo licitatório deverá observar os requisitos previstos no artigo 50 do Código Civil 2002, que indica as possibilidades da desconsideração da personalidade jurídica, bem como na hipótese de desvio de finalidade oriunda da fraude.

A fraude, no processo licitatório, se caracterizada na constituição de pessoa jurídica com os mesmos sócios, gerente e objeto social de pessoa jurídica sancionada por infrações administrativas previstas na Lei de Licitação 8.666/1993.

3.2 PROCEDIMENTO DA APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO LICITATÓRIO  

O presente item do capitulo apresenta algumas hipóteses de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório em âmbito administrativo.

Vale destacar que as hipóteses foram propostas antes da vigência do Novo Código de Processo Civil, e desta forma não foram mencionadas o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos artigos 133 a 137 do Novo Código de Processo Civil.

Pires propõe o debate sobre a possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, e fundamenta no caráter autoexecutório do ato administrativo.{C}[88]

De acordo com referido autor a Administração Pública poderá aplicar o instituto de desconsideração da personalidade jurídica em processo licitatório sem a presença do judiciário. Isto porque uma vez explicita a fraude, no desvio de finalidade ou da confusão patrimonial da pessoa jurídica, não poderá ser omissa.

O autor entende que a autoexecutoriedade é uma função administrativa, vez que há a indisponibilidade das competências da Administração.[89]

  Salienta, ainda, que necessário se faz a observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV da Constituição Federal de 1988) que está expresso, também,  na Lei 9.784/99 da Lei do Processo Administrativo Federal.

Destarte assim, nessa hipótese, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo tem caráter autoexecutório mesmo sem Lei que regulamente tal característica no ato. E, assim, mediante fraude – confusão patrimonial e desvio de finalidade (artigo 50 Código Civil) – deverá - no sentido obrigatório - a Administração Pública aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, em virtude da necessidade administrativa em combater a irregularidade no processo licitatório.

Outrora vale destacar a hipótese indicada por Scarpino que indica a possibilidade do ente público instaurar um processo administrativo próprio.[90]

O referido autor indica que uma vez constatada a presença dos elementos da fraude no abuso de direito da pessoa jurídica, a Administração Pública deve instaurar, mediante requisição ou até mesmo de oficio, processo administrativo.[91] Para tanto é necessário garantir o direito ao contraditório e ampla defesa, e isso fundamenta o procedimento.

Insta salientar, novamente, que as supramencionadas hipóteses não foram propostas mediante o Novo Código de Processo Civil, que regulamentou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Quanto a isto necessário se faz demonstrar o posicionamento do Tribunal de Contas da União, no acórdão 98/2017, que decidiu pela judicialização da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório, em virtude do procedimento expresso no NCPC.

Vale destacar que as decisões sobre a aplicação do instituto vêm sendo tomadas no judiciário, vez que tais medidas aplicadas são, na maioria das aplicações, recorridas nos Tribunais, mediante “writ” mandado de segurança, conforme decisões expostas no item a seguir.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

De todo modo não há posicionamento consolidado sobre a aplicação do referido instituto visto que há não regulamentação específica.

3.3.PRECEDENTES DO JUDICIÁRIO E DO TRIBUNAL DE CONTAS SOBRE A APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXTENSÃO DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS 

Neste item são expostos casos decididos no Tribunal de Contas e no Judiciário que ventilam a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório.

A priori destaca o recurso ordinário julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em mandado de segurança RMS 15166 BA 2002/0094265-7, no ano de 2002.  O STJ julgou e decidiu, no mencionado caso, pela possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica para extensão dos efeitos da sanção de inidoneidade para licitar, contra gerenciadores de empresa sancionada.

O referido julgado fundamentou a aplicação do instituto com base nos princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos, e tornou precedente na aplicação do instituto de direito privado no processo licitatório.

Mais recentemente vale destacar o posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, nos julgamentos do recurso de apelação 0386867-11.2003.8.26.0000 e 0003090-12.20008.8.265.0236 que foram julgados em 2010 e 2012 respectivamente. Ambos os julgados inclinaram na possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Em diapasão, no dia 16 de maio de 2018 foi julgado o recurso de apelação de processo n° 1000241-47.2017.8.26.0038, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que decidiu pela possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em empresa vencedora de certame licitatório, pois possuía os mesmos sócios, gerente e objeto social de empresa suspensa de licitar. A decisão mencionou que:

“(...)A alteração pura e simples do nome, através da constituição de nova empresa, embora formalmente legítima, é materialmente deturpada, de sorte que estender a penalidade à mesma (...)”           

A decisão julgou a legalidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pelo Egrégio Tribunal de Contas da União (TCU), em processo de licitação (Processo TC – 000.723/2013-4. )

Vale destacar que neste caso ocorreu a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica mediante supostas irregularidades em processo licitatório. Vale destacar, ainda, que foi o Tribunal de Contas da União que aplicou o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

 A ementa da referida decisão expressa que:

“Representação. Licitação, na modalidade pregão, promovida pela Valec S/A, para aquisição de trilhos. Irregularidades. Gravíssimas. Nulidades. Concessão de medida cautelar para paralização dos procedimentos. Oitiva de todos os participantes do processo revogação do pregão pela valec, posteriormente à demonstração pelo TCU das nulidades. Procedimento licitatório com uma única possibilidade de fornecedor, dada a magnitude do objeto. Inequívoco direcionamento da licitação. Prática de atos com abuso da personalidade jurídica. Extensão da sanção aplicada, com fundamento no art. 7° da Lei do pregão, para empresa vinculada. Conhecimento. Procedência parcial da representação por múltiplos fundamentos. Determinações. Ciência”

A decisão do TCU ensejou a impetração do manado de segurança 32.494 DF pelo representante de empresa sancionada.

A impetrante fundamentou, em contrapartida com a decisão do TCU, que a aplicação do instituto de direito privado, desconsideração da personalidade jurídica, ofende o texto da Constituição da República de 1988, nos artigos 1°, inciso IV, 5°, incisos XLI, e 71, contestando em duas perspectiva a decisão do TCU, bem como a ofensa à legalidade em virtude da ausência de norma que dispôs sobre aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e, da mesma forma, quanto ao limite da competência do Tribunal de Contas da União. Alegou que o princípio das transcendências das sanções administrativas impede a extensão da aplicação das sanções administrativas.

O Supremo Tribunal Federal julgou a liminar, e decidiu pela suspensão cautelar da decisão do TCU, que aplicou a desconsideração da personalidade jurídica no processo licitatório para a extensão das sanções administrativas. O STF entendeu que a matéria ainda carece de análise, vez que não há regulamentação. Outrossim porque há  defensores da tese de violações de princípios na aplicação conforme a ementa:

“Ocorre, no entanto, que razões de prudência e o reconhecimento da plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte impetrante impõem que se outorgue, na espécie, a pretendida tutela cautelar, seja porque esta Suprema Corte ainda não se pronunciou sobre a validade da aplicação da “disregard doctrine” no âmbito dos procedimentos administrativos, seja porque há eminentes doutrinadores, apoiados na cláusula constitucional da reserva de jurisdição, que entendem imprescindível a existência de ato jurisdicional para legitimar a desconsideração da personalidade jurídica (o que tornaria inadmissível a utilização dessa técnica por órgãos e Tribunais administrativos), seja porque se mostra relevante examinar o tema da desconsideração expansiva da personalidade civil em face do princípio da intranscendência das sanções administrativas e das medidas restritivas de direitos, seja, ainda, porque assume significativa importância o debate em torno da possibilidade de utilização da “disregard doctrine”, pela própria Administração Pública, agindo “pro domo sua”, examinada essa específica questão na perspectiva do princípio da legalidade. Sendo assim, em sede de estrita delibação, e sem prejuízo de ulterior reexame da pretensão mandamental deduzida na presente causa, defiro o pedido de medida liminar, para suspender, cautelarmente a eficácia do item 9.4 do Acórdão nº 2.593/2013 do Plenário do E. Tribunal de Contas da União.”

Destarte assim que a aplicação e o processo de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na extensão das sanções administrativas, no processo de licitação, ainda carecem de posicionamento consolidado. De todo modo há uma inclinação sólida perante o Judiciário e o Tribunal de Contas na possibilidade do uso do referido instituto de direito privado na extensão das sanções administrativas previstas na Lei 8.666/1993, bem como nas restritivas do direito de participar do processo licitatório – declaração de inidoneidade e suspensão do direito de licitar. Destaca ainda que no procedimento, mediante nova redação expressa no Novo Código de Processo Civil, há mediante decisão mencionada no item anterior que a tendência é da judicialização da aplicação do instituto no processo licitatório.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos