Análise da relação entre a Lei nº 13.467/2017 e o Direito à Saúde e Segurança do Trabalhador a partir da leitura de Roberto Lyra Filho e Jorge Luiz Souto Maior

11/06/2018 às 12:28
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Qual é a natureza de uma nova Lei que viola os fundamentos históricos do Direito do Trabalho, a lógica e o conhecimento produzido por juristas, engenheiros, médicos e psicólogos do trabalho?

Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.”

Roberto Lyra Filho

A Lei nº 13.467 de 2017, dentre outros objetivos, buscou alterar regras relacionadas à saúde e segurança do trabalho. Introduziu mudanças no artigo 59 da CLT com o propósito de facilitar a adoção de banco de horas, com a possibilidade de compensação no prazo de 6 (seis) meses por acordo individual escrito (artigo 59, §5º, CLT) e compensação em 1 (um) mês por acordo individual, tácito ou escrito (artigo 59, §6º, CLT).

Inseriu o artigo 59-A na CLT que facilita a prática da jornada 12x36, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, com concessão ou indenização dos intervalos para descanso e alimentação e, ainda, remuneração que abrange descanso semanal remunerado, feriados e prorrogação do trabalho noturno. O artigo 59-B, parágrafo único, da CLT, passou a consignar que “A prestação de horas extras habituais não descaracteriza o acordo de compensação de jornada e o banco de horas”. O parágrafo único, do artigo 60, da CLT, afastou a exigência de licença prévia para prorrogação de jornada em ambientes insalubres no regime 12x36.

A referida Lei definiu no artigo 611-A, da CLT, que mesmo em matéria de jornada de trabalho, intervalos e enquadramento do grau de insalubridade, o negociado prevalece ao legislado e consignou no artigo 611-B, parágrafo único, da CLT que, para fins de negociação coletiva, “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho”. Autorizou, ainda, a redução do intervalo intrajornada mínimo em jornada diária superior a 6 horas para 30 minutos, por meio de negociação coletiva e minimizou as consequências de sua redução ilegal, limitando-as ao pagamento indenizado do período suprimido do descanso (artigos 71, §4º e 611-A, III, CLT).

Aponta-se, ainda, a tentativa de limitação das indenizações por danos pessoais (artigo 223-G, §1º, CLT) e a possibilidade da gestante trabalhar em ambiente insalubre em grau mínimo e médio e da lactante trabalhar em ambiente com qualquer grau de insalubridade, salvo se apresentarem atestado de saúde (artigo 394-A, II e III, CLT).

Pode-se admitir, entretanto, sem críticas, que essas regras constituem normas de segurança e saúde do trabalho? É possível incorporar ao Direito lei que nega a realidade? É possível negociar o grau de insalubridade? Como aceitar a supressão, mediante indenização, de intervalos para descanso e alimentação para quem trabalha 12 horas no mesmo dia? A exploração de horas extraordinárias habituais não desvirtua o sistema de compensação, em razão de previsão em lei? É possível afirmar que, por meio de uma alteração legislativa, regras sobre duração do trabalho e intervalos não são mais consideradas como normas de saúde e segurança do trabalho, apesar da garantia constitucional do valor social do trabalho, da redução dos riscos inerentes ao trabalho e do conhecimento construído pelo Direito do Trabalho, pela Engenharia de Segurança do Trabalho, Medicina e Psicologia do Trabalho?

Em primeiro lugar, para ter validade, uma lei deve ser compatível com a Constituição Federal, tanto no aspecto formal quanto material, requisito descumprido pela Lei nº 13.467 de 2017.

Sem prévio debate social, a Lei nº 13.467 de 2017 introduziu, a toque de caixa, mais de 200 alterações na CLT, sem preocupação com a coerência com o sistema constitucional. Se isso não bastasse, para reparar erros da lei indicados no Senado, sem que o projeto de lei tramitasse de forma regular e voltasse para ser discutido na Câmara dos Deputados Federais, por inusitado acordo entre parlamentares e Executivo Federal, em desrespeito ao disposto no artigo 65 da CF, após aprovada a lei sem emendas do Senado, foi editada a MP 808 de 2017 com a pretensão de corrigir mais de 80 pontos. Entretanto, por não ter sido sequer discutida no seu prazo de vigência, em 23 de abril de 2018, a MP perdeu sua eficácia desde a edição, o que tornou irremediáveis os vícios formais da edição da lei, conforme análise de Jorge Luiz Souto Maior:

Lembre-se que o advento de uma Medida Provisória foi o argumento utilizado por muitos Senadores para que uma lei com vários dispositivos assumidamente inconstitucionais ou de má técnica fosse aprovada.
Desde então a situação se tornou incorrigível.

Quando os Senadores agiram desse modo, a legitimidade da lei estava dada.
Ora, no Estado Democrático de Direito só tem autoridade de lei a regulamentação que emerge da vontade popular, que, nas democracias representativas, se substitui pelas instituições que, pelo voto, atuam no processo legislativo, regulado constitucionalmente.

Assim, o vício formal na elaboração de uma lei gera o efeito inevitável da perda de sua legitimidade, que sequer precisa ser declarada judicialmente tal é a gravidade da irregularidade.

Não se pode deixar de reconhecer que os Senadores não votaram o texto que lhes foi submetido. De fato, aprovaram um texto ainda inexistente, mesmo que o teor desse texto desconhecido tivesse sido enunciado pelo Senador Romero Jucá, brandindo, de forma até caricata, uma folha de papel, que estaria assinada pelo Presidente da República.

Esse fato, de conhecimento público, é mais que suficiente para negar legitimidade à Lei n. 13.467/17.

Mas há mais. A Lei n. 13.467/17 foi publicada no Diário Oficial da União em 14 de julho de 2017, com vigência prevista para o dia 11 de novembro do mesmo ano.

Passaram-se quase quatro meses e a Medida Provisória não veio e a lei entrou em vigor sem que a tal “correção” tivesse vindo, em clara demonstração de que não era de “pequenos defeitos” que se cuidava.
A Medida Provisória, número 808, só veio ao mundo jurídico em 14 de novembro de 2017, trazendo nada mais, nada menos, do que 84 alterações na Lei n. 13.467/17.

Depois disso, o Congresso Nacional teve quatro meses para aprovar a MP 808, mas não o fez, e em 23 de abril de 2017, como se sabe, a MP 808 caducou.
É bastante revelador o fato de que 08 meses não foram suficientes para que o governo e o Congresso formulassem e aprovassem os acertos em uma lei cujo teor foi elaborado e aprovado em 02 meses.

O efeito insofismável de tudo isso é o de que a MP caducou e levou consigo qualquer possibilidade de se reconhecer alguma legitimidade à Lei n. 13.467/17.
O raciocínio para se chegar a essa conclusão é bastante fácil de ser formulado: os Senadores não podiam ter abdicado do seu dever de legislar, mas mesmo admitindo, com muito esforço de tolerância democrática, a validade do procedimento adotado, sem a existência concreta da Medida Provisória não se tem mais nenhum argumento para atribuir legitimidade ao processo legislativo de aprovação da Lei n. 13.467/17, ainda mais depois que a MP 808 explicitou alguns dos diversos problemas da lei.
E é bom que se diga, não há qualquer mecanismo jurídico que possa superar esse vício formal de ilegalidade e de ilegitimidade.1

No aspecto material, as regras propostas violam o valor social do trabalho, fixado como fundamento da República no artigo 1º, da CF, a função social da propriedade disposta no artigo 5º, XXIII, CF, o princípio da proteção e progressiva melhoria das condições de vida do trabalhador, estampado no artigo 7º, caput, da CF, o direito fundamental à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, previsto no artigo 7º, XXII, da CF, bem como a subordinação da ordem econômica ao valor social do trabalho e à busca de existência digna e a justiça social, conforme disposto no artigo 170, da CF.

Se não bastasse a violação da Constituição Federal tanto no aspecto formal quanto material, a Lei nº 13.467 de 2017 desrespeitou transformações sociais, liberdades e garantias conquistadas pela sociedade ao longo da História, que caracterizam patamar civilizatório mínimo, que não pode ser negado.

O Direito não se reduz ao seu elemento normativo, mas constitui fenômeno complexo e dinâmico de organização da sociedade, que abrange dimensões políticas, econômicas, sociais, psicológicas e éticas, dentre outras, próprias do ser humano.2 Como nos ensina Roberto Lyra Filho, direito não é algo pronto e acabado, mas é processo dentro do processo histórico3.

Especialmente quanto ao Direito do Trabalho, explica Jorge Luiz Souto Maior:

Não se pode perder de vista que o direito é histórico exatamente porque seus valores, ou, em certo sentido, seus princípios, são históricos. Há uma razão e uma experiência que dão sentido ao direito. Daí porque, embora sem retomar a ideia do direito natural, deve-se reconhecer que o direito não é só a lei. (…)

O direito do trabalho tem uma razão histórica inequívoca e uma função, decorrente dessa razão, que, igualmente, não se pode questionar. O direito do trabalho surgiu com reação à enorme injustiça social, provocada pelo advento da produção em massa, e objetivou, por isso, humanizar as relações de trabalho.

Negar a aplicabilidade dos princípios do direito do trabalho, que são extraídos dessa situação, obstando que sejam determinantes da elaboração das normas trabalhistas e da interpretação das normas existentes, equivale a negar a razão e a função específica do direito do trabalho, obscurecendo seu dado histórico. Equivale, em suma, a negar a própria existência do direito do trabalho, pois, como dito por Goldschmidt, “um direito sem princípios nunca houve verdadeiramente”.4

Assim, como podemos classificar regras introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei nº 13.467 de 2017, que desrespeitam os fundamentos históricos do Direito do Trabalho, a lógica e o conhecimento produzido não só pela área jurídica, como por engenheiros, médicos e psicólogos que dedicam suas vidas à área de segurança e saúde do trabalho? Qual é a natureza de uma regra, formal e materialmente inconstitucional, que tenta negar a realidade e a História pela força do Estado, chegando a afirmar que regras sobre duração do trabalho e intervalos não são normas de saúde e segurança do trabalho?

Pode-se afirmar, com base nas lições de Roberto Lyra Filho, que a legislação produzida dependerá das características do Estado, se reveste uma estrutura social voltada à justiça social ou à espoliação dos trabalhadores, se democrático ou autoritário, mas seu freio, de toda forma, será o respeito aos Direitos Humanos, que “conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da História, para transformar-se em opção jurídica indeclinável”. Assevera, ainda, que esse patamar civilizatório, construído pela luta social, condena “qualquer Estado ou legislação que deseje paralisar o constante progresso, através das ditaduras burocrático-policiais, sejam elas cínicas e ostensivas ou hipócritas e disfarçadas”.5 Dessa forma, a legislação contrária aos avanços e às conquistas sociais construídas na História não constituem Direito, mas tem natureza de Antidireito:

A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto, correto, e a negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido.

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A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ao acima das leis. (…)

Repare o leitor na arrogância com que todo governo mais decididamente autoritário repele a “contestação” (como se as remodelações institucionais não fossem uma proposta admissível e até parcialmente reconhecida em leis – no caso das emendas constitucionais, por exemplo); na pretensão do poder que, cedendo à “abertura” inevitável, quer, depois, controlar o diâmetro, a seu gosto; na irritação com que fala em “radicalismo” de toda oposição que ameace trocar, mesmo pelas urnas, o estado de coisas presente; nas “salvaguardas” com que pretende garantir o status quo (isto é, na estrutura implantada, os esquemas vigentes); na astúcia que procura separar os “confiáveis” (isto é, os grupos e pessoas que são vinho da mesma pipa) e os “não confiáveis”(isto é, os grupos e pessoas que propõem alguma forma de reestruturação social, mesmo quando o fazem com a recomendação de meios pacíficos). 6

Nestes termos, as regras relacionadas à Segurança e Saúde do Trabalho, previstas na Lei nº 13.467 de 2017, além de inconstitucionais, não se incorporaram ao Direito em razão do desrespeito ao patamar civilizatório estabelecido por progressivos ajustes, conquistas e avanços de nossa sociedade na História, que não comportam a exploração do trabalho sem o respeito ao seu valor social, à vida e à dignidade do trabalhador.

Não se destrói, com tanta facilidade como imaginam, o Direito à Segurança e Saúde do Trabalhador, conquistado por lutas sociais ao longo da História contra a superexploração do trabalho. Não é possível, em nosso atual patamar civilizatório, negar a proteção à vida, à saúde e à dignidade da classe que vive do trabalho. Haverá mais lutas, dentro e fora do Poder Judiciário, porque a Lei nº 13.467 de 2017 é verdadeiro Antidireito do Trabalho e, como já defendido por Jorge Luiz Souto Maior, sua única saída é a revogação7.

Referências Bibliográficas

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros Passos, 62). 13ª reimpr. 17ª ed. de 1995.

MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e mudança social. Franca: FHDSS – UNESP, 2005.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: Ltr, 2000._____________

__________________________. A MP 808 caducou e levou com ela o seu assunto(a lei nº 13.46717). Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-mp-808-caducou-e-levou-com-ela-o-seu-assunto-a-lei-n-1346717, consulta realizada em 06/06/2018.

1SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A MP 808 caducou e levou com ela o seu assunto(a lei nº 13.46717). Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-mp-808-caducou-e-levou-com-ela-o-seu-assunto-a-lei-n-1346717, consulta realizada em 06/06/2018.

2 MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e mudança social. Franca: FHDSS – UNESP, 2005.

3LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros Passos, 62). 13ª reimpr. 17ª ed. de 1995, Pág. 86

4SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: Ltr, 2000, Págs. 288/299.

5LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros Passos, 62). 13ª reimpr. 17ª ed. de 1995. Pág. 10.

6Idem. Págs. 8/9.

7Em entrevista concedida em 25/04/2018 à Rede Brasil Atual, o Professor da USP Jorge Luiz Souto Maior defendeu que a única saída para nova lei trabalhista é a revogação, destacando que "É uma lei péssima até para seus objetivos" e ponderando que até mesmo os empregadores, beneficiados com as mudanças, não conseguirão superar a insegurança jurídica e a “balbúrdia” que o texto traz. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/04/para-juiz-unica-saida-para-nova-lei-trabalhista-e-a-revogacao, consulta realizada em 06/06/2018.

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Sobre o autor
Luis Henrique Salina

Especialista em Direito do Trabalho pela USP, graduado em Direito pela UNESP, Analista Judiciário do TRT da 15ª Região e Professor do Curso de Engenharia de Segurança do Trabalho da Extecamp – Escola de Extensão da Unicamp.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto elaborado como instrumento de debate para o curso de Engenharia de Segurança do Trabalho da Unicamp. O autor publicou outros textos dessa natureza, como, por exemplo, um dos capítulos do livro "Responsabilidade Civil nas Relações de Trabalho: questões atuais e controvertidas. 1ªed.São Paulo: Editora LTr, 2011, v., p. 140-161.

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