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O fenômeno da antinomia jurídica

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14/05/2005 às 00:00
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1.3. A problematização entre o princípio da coerência do sistema jurídico e a antinomia jurídica

O fenômeno jurídico da antimonia, conforme já ressaltado, é algo inerente ao sistema jurídico. Porém tal contradição deverá ser suprida, pois o princípio da unidade do sistema jurídico formula a idéia teórica da coerência, ou seja, o antagonismo entre as normas deste sistema deve ser solucionado. A professora Maria Helena Diniz (2001) aponta com maestria:

"A antinomia é um fenômeno muito comum entre nós ante a incrível multiplicação das leis. É um problema que se situa ao nível da estrutura do sistema jurídico (criado pelo jurista), que, submetido ao princípio da não-contradição, deverá ser coerente. A coerência lógica do sistema é exigência fundamental, como já dissemos, do princípio da unidade do sistema jurídico. Por conseguinte, a ciência do direito deve procurar purgar o sistema de qualquer contradição, indicando os critérios para solução dos conflitos normativos e tentando harmonizar os textos legais". [17]

A essência da relevância do princípio da unicidade, também chamado de princípio da não–contradição, para o direito é configurada ao sabermos que o fato não será analisado sob a ótica de uma norma, mas sim sobre o conjunto de normas formadoras do sistema jurídico. Assim sendo o fato é regulamentado pelo sistema de uma maneira global. É o sistema jurídico em sua totalidade que normatiza o fato e não apenas uma lei em específico. O doutor João Baptista Machado (1998) é contundente ao descrever tal assertiva:

"O caso é que o interesse tutelado por uma norma não pode ser isolado da totalidade dos interesses considerados e tutelados pelo sistema jurídico global. O ordenamento jurídico só pode ser entendido como um sistema de valores tomado como unidade e totalidade, dentro do qual se coordenam e hierarquizam os diferentes valores parciais afirmados pelas diferentes normas. Portanto, qualquer problema jurídico só pode ser adequadamente resolvido em função do ordenamento jurídico global – ou, para usar de novo palavras de Falzea, ‘o efeito determina-se cumpridamente, não em função de cada norma específica (o quer que isso seja), mas em função de todo o sistema’". [18]

A relevância é tamanha que alguns doutrinadores entendem que é inconcebível a idéia da existência do sistema jurídico sem o cumprimento integral do princípio da não-contradição, ou seja, não poderia haver antinomias jurídicas sem solução. Tal pensamento é descartado ao encaramos o sistema como algo mutável e a nova valoração do fato sob ótica condizente com o pensamento vigente no tempo será, em sua grande maioria, antagônica a velha vontade, ali representada pela norma anterior. O desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e aclamado doutrinador, Paulo Gusmão (2000), discorre com propriedade a obrigatoriedade da resolução da antinomia jurídica, quando se trata de análise de um determinado caso concreto, esta sim plausível:

"(...) os casos de antinomia, que, segundo Bobbio ("Sui criteri pre risolvere le antinomie" nos Studio in Onore di Antoniom Segni), é a incompatibilidade entre duas normas pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico.

(...)

Não sendo possível, do ponto de vista lógico, a aplicação de normas incompatíveis entre si, pois uma só delas deve reger o caso a ser julgado (...)

Ditos procedimentos visam a restabelecer a harmonia que deve haver entre os direitos e, em cada direito, entre suas normas, bem como manter a hierarquia das regras de direito, sem qual inexiste ordem jurídica". [19]

Assim sendo toda e qualquer contradição, utilizando os procedimentos via critérios pré-definidos, deverá ser eliminada para manutenção da aplicação do direito, via interpretação. Porém caso o intérprete e aplicador da lei seja submetido a uma antinomia jurídica real, não terá como conciliar a aplicação das duas normas válidas e muito menos autonomia de ab-rogar definitivamente a sua escolha, uma das leis confrontantes. Assim sendo o sistema existe mesmo com antinomia jurídica real, porém a permanência de tal fenômeno é contrária a um dos princípios basilares (o da não-contradição) da idéia de sistema jurídico e por isso deverá ser eliminada. A antinomia deverá ser suprida primeiramente, pelo caminho da invalidez de eficácia de uma das Leis e assim estará a aplicação justa do direito resguardada. Estamos diante das classificações da antinomia jurídica, aparente (conciliável solucionada via interpretação) ou real (inconciliável solucionada via retirada de validade de uma das normas).


1.4. A caracterização da real antinomia

O tipo de solução usada para o conflito normativo nos traz a antinomia real ou a antinomia aparente, dependendo da casuística. Antinomia aparente é introdutoriamente tratada por Kelsen (1997):

"Como ciência jurídica procura conhecer o direito como um todo de sentido, deve descrevê-lo em proposições isentas de contradição lógica, partindo do pressuposto de que os conflitos normativos podem e devem ser resolvidos pela via interpretativa". [20]

Caracteriza-se como aparente, a antinomia que é conciliável ao conceito de sistema jurídico do direito, pois a mesma não fere, essencialmente, o princípio da unidade do sistema e idéia da coerência entre os elementos normativos. A conciliação se dá por via interpretativa, buscando qual entre as Leis em questão deve ser aplicada ao caso concreto. O apontamento de uma Lei em detrimento de outra será por critérios preexistentes (cronológico, hierárquico e da especialidade).

O conceito de antinomia jurídico real é tratado com propriedade por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1978):

"A oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado". [21]

Para a configuração de uma antinomia como real é necessário o preenchimento das seguintes condições:

- Ambas as normas sejam jurídicas; ou seja é inconfrontável legislações de gêneros distintos

; não se caracteriza antinomia real um antagonismo entre uma lei físico – natural e uma norma jurídica ou ainda, uma norma moral e uma norma jurídica.

- Ambas sejam vigentes e pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico

; nesta pesquisa estamos tratando do ordenamento jurídico brasileiro, não há antinomia real entre norma jurídica deste ordenamento com a norma jurídica do ordenamento português.

- Ambas devem emanar de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, prescrevendo ordens ao mesmo sujeito

;

- Ambas devem ter operadores opostos (uma permite e outro obriga) e os seus conteúdos (atos e omissões) devem ser a negação interna um do outro

; a contradição deve ser caracteriza na atitude exigida pelas normas conflitantes, assim são antinômicas a norma A que prescreve é permitido fumar neste recinto e a B, que estatui é obrigatória a omissão de fumar neste recinto.

- O sujeito, a quem se dirigem as normas conflitantes, deve ficar numa posição insustentável

; quando a antinomia se dá entre normas cronológica, hierárquica e especialmente semelhantes e não há nos critérios existentes solução capaz de desvendar qual a norma deve ser aplicada.

Assim sendo tais condições podem ser resumidas em três: incompatibilidade entre as normas, indecibilidade do sujeito e necessidade de decidir qual norma a ser aplicada.

A antinomia real merece um aprofundamento em seu mérito. A questão pertinente em alguns doutrinadores é o reconhecimento da existência deste tipo de antinomia. Estes acreditam que não é possível o sistema jurídico existir com antinomias reais, pois estas, mesmo sendo solucionadas em determinado caso concreto, continuaram a existir dentro do sistema. Assim sendo a existência de antinomia real é algo inconcebível para o princípio da unicidade do sistema jurídico e não para o sistema propriamente dito, e deverá ser suprida.


1.5. Classificação das antinomias jurídicas

As antinomias jurídicas podem ser classificadas em conformidade com os seguintes critérios: solução, conteúdo, âmbito e extensão da contradição.

1.5.1. Quanto à solução

Critério de solução: já foi evidenciado, pois quanto a este critério a antinomia poderá ser aparente ou real. Aparente quando os critérios para solucioná-la forem normas integrantes do ordenamento jurídico e real quando estiverem presentes as condições supra-citadas (incompatibilidade, indecibilidade do sujeito e necessidade de decisão).

1.5.2. Quanto ao conteúdo

Critério de conteúdo: a antinomia será classificada em própria e imprópria. A antinomia imprópria poderá se apresentar como: de princípios, valorativa e teleológica.

A Antinomia própria acontece quando uma norma é a negação da outra. As atitudes exigidas pelas normas são inconciliáveis, pois uma proíbe e a outra autoriza. Exemplificando, uma norma determina a proibição do aborto e outra permite tal prática. A aqui se trata de antinomia em razão formal e não propriamente do seu conteúdo material. Uma norma poderá advir de uma Lei sobre matéria completamente diferente da outra e mesmo assim serem contraditórias.

Um exemplo é o caso de um soldado membro das Forças do Exército Brasileiro que recebe uma ordem de seu comandante para fuzilar um prisioneiro de guerra. O Estatuto dos Militares assim prescreve o dever do militar de obedecer a ordens de seu comandante:

"Art. 35 - Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente:

(...)

IV - a disciplina e o respeito à hierarquia;

V - o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens;" [22]

Antagônico ao prescrito no Estatuto está o Código Penal que estabelece em seu artigo 121 a tipificação do ato de matar alguém como crime de homicídio. A antinomia reside na razão formal. Formal entende-se por "3. que diz respeito mais a aparência do que o conteúdo. 18. relativo a uma relação generalizável e paradigmática entre termos em um enunciado, a despeito de qualquer conteúdo empírico ou material". [23] Assim sendo na antinomia própria não se leva em consideração o conteúdo material propriamente, mas sim a conduta distinta exigidas pelas normas.

A antinomia própria, em virtude de sua razão formal, é solucionada com objetividade, ou seja, com a aplicação de um dos critérios de solução objetivos: o cronológico ou o hierárquico. Esta objetividade é tratada com maestria pelo Dr. João Baptista Machado (1998):

"Os dois mencionados critérios (o cronológico e o hierárquico) têm de característico referirem-se a dados (de facto ou de direito) facilmente verificáveis, a poderem ser aplicados sem a intervenção de valorações pessoais do julgador – pelo que os podemos apelidar, neste sentido, de critérios "objetivos", como faz Bobbio (op. cit., p.239). Mas isto significa também, por outro lado, que eles são essencialmente critérios de justiça formal. Quer dizer: em vez de se procurar estabelecer qual das regras antinômicas è a "mais justa", através de um processo de justificação que no caso, teria de ser altamente subjetivo, utilizam-se critérios fixos e susceptíveis de fácil determinação, por amor da certeza do direito.

(...)

Só pelo recurso a critérios deste tipo se poderá, como diz Bobbio, ‘garantir uma objectividade que baste para satisfazer a necessidade social de uniformidade das decisões’ (op. cit., p.240)". [24]

Neste caso exemplificado, o critério cronológico é o solucionador, pois quando a antinomia é parcial, uma norma limita a validade da outra. A limitação no exemplo se evidencia na realidade do espaço temporal que o soldado comandado vive, caso seja de paz aplica-se à norma penal, ou de guerra à lei militar.

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A antinomia imprópria ocorre em virtude de conteúdo material das normas evidenciadas, podendo ser: de princípios, valorativa ou teleológica.

Primeiramente ao conceito de antinomia imprópria de princípios, se faz mister apresentar a acepção de princípios. O doutrinador De Plácido e Silva (2001) assim transcreveu:

"No sentido, notadamente no plural, significa as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. (...)". [25]

Os princípios são axiomas basilares da ciência do direito. Os princípios gerais fundamentam todos os ramos do direito e os específicos giram em torno dos seus respectivos ramos do direito. Antinomia imprópria de princípios se dá quando estas idéias norteadoras do direito entram em contradição. Vale ressaltar que tal antinomia pode ser aparente, pois é passível a co-existência entre princípios, que em dado fato concreto se contradizem. A solução do aplicador e intérprete deverá ser sempre guiada pela opção mais socialmente aceita e a mais moralmente justa, conforme a interpretação sociológica. Em um singelo artigo Renato Zugno (2004) esboça a hierarquização axiológica, da interpretação sistemática, dos princípios como método de solução entre conflito destes:

"Estes, que estão expressos ou implícitos no ordenamento jurídico, sobremaneira na Constituição, devem guiar e conduzir qualquer averiguação jurídica, pois, posicionam-se no ápice do sistema jurídico iluminando os caminhos possíveis de percorrer sem que se fira a ética, a moral, a liberdade, a igualdade, a segurança jurídica e a dignidade humana, por exemplo.

Tais princípios que, segundo o jurista italiano Francesco Carnelutti, são as leis das leis, devem ser manejados conforme à predominância axiológica apreendida pelo intérprete numa determinada época e situação quando analisar um caso concreto, eis que não há antinomia de princípios porque podem perfeitamente conviver harmonicamente dentro de um mesmo sistema. O que acontece, é que em virtude de peculiariedades, o intérprete obrigatoriamente tem que hierarquizá-los * axiologicamente (vide Juarez Freitas in A Interpretação Sistemática do Direito, ed. Malheiros) ou dar-lhes precedência (Robert Alexy, El Concepto y la Validez del Derecho ed. Gedisa), de forma que um sobreponha outro para solver adequadamente um litígio, sem olvidar que o princípio preterido não só não é excluído do sistema como, poderá num outro momento e em idêntico caso, ser alojado no cume hierárquico". [26]

O artigo também nos traz um brilhante exemplo de antinomia imprópria de princípios do doutrinador Robert Alexy e a sua sucessiva solução:

"Para ilustrar, Robert Alexy na mesma obra antes citada, menciona o caso de um Tribunal que deveria realizar uma audiência oral contra um acusado que corre o perigo de um ataque cerebral ou de um infarto. O Tribunal constata que em tais casos existe uma relação de tensão entre o dever do Estado de garantir uma aplicação efetiva do Código Penal (princípio da prestação e eficácia do direito) e o direito do acusado a sua vida e a sua integridade física (princípio do direito à vida). Esta relação teria que ser solucionada de acordo com a máxima de proporcionalidade (outro princípio não menos relevante). Ou seja, qual dos dois interesses (ou princípios), abstratamente do mesmo nível, deveria ter um peso maior no caso concreto. Pois, no caso que tinha que decidir, se tratava de perigo real e provável de que o acusado, caso se realizasse a audiência oral, poderia morrer ou sofrer graves danos à saúde. Sob estas circunstâncias, o Tribunal aceitou a precedência do direito à vida e a integridade física do acusado. Este é um exemplo, no qual o princípio da prestação judiciária cedeu ao princípio do direito à vida sem que um excluísse o outro do ordenamento jurídico, apenas, num caso concreto, um Tribunal entendeu de adotar um em detrimento do outro". [27]

O doutrinador Reis Friede (2002) nos traz um outro exemplo de antinomia imprópria dos axiomas basilares do direito. Neste caso o embate apresentado era entre a "segurança jurídica" e a "justiça":

"Não é por outra razão que, após duas horas acaloradas de debates, o Superior Tribunal de Jusdiça tomou uma decisão inédita no Brasil. Negou o cancelamento do registro de paternidade, mesmo após um exame de DNA comprovar que um pediatra de Goiás não era o pai biológico de uma criança. A razão: a sentença já havia transitado em julgado.

O STJ optou por manter a sentença para preservar a "segurança jurídica" no campo do Direito Civil. A ação foi julgada em primeira instância em 1993 e a decisão, à base de provas testemunhais, foi pelo reconhecimento da paternidade. Em segunda instância, manteve-se a decisão. E, em grau de recurso, chegou o caso ao STJ, que não julgou a ação por se tratar de matéria de prova (é conveniente lembrar que o STJ só tem competência para julgar matéria de direito).

Só depois de vencidos os prazos legais em que podia recorrer, o pediatra entrou com uma ação de negação de paternidade, exigindo o exame de DNA e pedindo o cancelamento do registro civil.

O exame provou que não era ele o pai. Mas aos olhos da lei era tarde demais.

Prevaleceram no STJ os argumentos de que a matéria julgada deveria ser preservada, sob pena de abrir um precedente que determinaria a possibilidade de reavaliação constante de ações já julgadas, fazendo, desta feita, pois, prevalecer o princípio de segurança jurídica sobre o valor da justiça, como valor axiológico básico inerente ao Direito, considerando, sobretudo, a natureza não penal do Direito Processual vertente à hipótese". [28]

Os princípios do direito poderão receber diferente valoração, de acordo com o ramo do direito em estudo. No caso supra apresentado a coisa julgada prevaleceu sobre a segurança jurídica no ramo do direito civil, mas o mesmo não acontece no campo do direito penal. Reis Friede (2002) discerne:

"Segundo este prisma, o Direito Processual, ao se subdividir nos ramos processual penal e processual não penal (civil lato sensu), por exemplo, procurou, acima de tudo, estabelecer um diferente equilíbrio entre os fatores axiológicos da justiça e da segurança, favorecendo o primeiro em detrimento do segundo no caso do Direito Processual Penal (DPP), em contraposição crítica à inversa situação existente no direito Processual Civil (DPC).

Um dos resultados práticos, facilmente observados, com esta medida foi particularmente a imposição do prazo decadencial de dois anos para a interposição da competente ação autônoma de impugnação no cível (ação rescisória), em contraste com a ausência de qualquer prazo para o ajuizamento de equivalente ação na esfera penal (revisão criminal), demonstrando, claramente, a intenção de privilegiar no DPP, por versar este ramo sobre aspectos instrumentais associados à liberdade do indivíduo, o valor da justiça em questões de natureza patrimonial, ao contrário, o valor da segurança sobre eventuais considerações alusivas à justiça no sentido axiológico". [29]

A antinomia imprópria valorativa se dá quando o legislador não for fiel a uma valoração por ele próprio realizada, pondo-se em conflito com as próprias valorações. Um exemplo bem nítido quando uma norma prescreve pena mais leve para um delito considerado como mais grave ou ainda quando no sistema encontram-se normas que transcrevem penas diferentes para condutas iguais. Um exemplo é dado pelo artigo 303 do Código Brasileiro de Trânsito e pelo § 6º do artigo 129 do Código Penal, assim descritos:

"Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". [30]

"Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.

(...)

§ 6º Se a lesão é culposa:

Pena – detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano". [31]

Maria Helena Diniz trata tal antinomia como algo aceitável ou tolerado para o aplicador: "não podendo ser removida pela ciência do direito, mas deve constituir um estímulo ao aplicador para ver se ela pode ser eliminada por meio de técnica interpretativa". [32]

A antinomia imprópria poderá ainda ser da forma teleológica quando se apresentar incompatibilidade entre os fins propostos por certa norma e os meios previstos por outra para consecução daqueles fins. O legislador quer alcançar um determinado fim com uma norma, porém em outra rejeita os meios para obter tal finalidade. Um exemplo à citação postal na Lei de Execução Fiscal está prevista na Lei 6.830/80, artigo 8°, incisos I e II, e é aplicada, via de regra, caso a Fazenda Pública não a requeira de outra forma, in verbis:

"I - a citação será feita pelo correio, com aviso de recebimento, se a Fazenda pública não a requerer por outra forma;

II - a citação pelo correio considera-se feita na data da entrega da carta no endereço do executado; ou, se a data for omitida, no aviso de recebimento, 10(dez) dias após a entrega da carta na agência postal; ". [33]

A finalidade da citação em uma execução é dar ao executado a oportunidade de nomeação de bens a penhora ou o pagamento de tal dívida (cristalizado nos artigos 10 e 11 da L.E.F.), porém isto não acontecerá caso a pessoa que receba a citação via postal não entregar a mesma ao seu real destinatário. Ainda a citação defeituosa em questão prejudica o direito nas hipóteses de defesa indireta, tais como alegação de nulidade dos embargos, ou exceção de pré-executividade em que o devedor nem precisaria penhorar seus bens ou pagar para se defender.

1.5.3. Quanto ao âmbito

Critério quanto ao âmbito, ter-se-á como referência a esfera que a norma se apresenta. Podendo ser antinomia de direito interno, antinomia de direito internacional ou antinomia de direito interno-internacional.

A antinomia de direito interno, ocorre entre normas dentro de um ramo do direito (norma de direito civil conflita com outra de direito civil) ou entre normas de diferentes ramos jurídicos (norma de direito constitucional conflita com norma de direito administrativo). Já a antinomia de direito internacional aparece entre normas de direito internacional público, como: tratados ou convenções internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas, decisões judiciárias, opiniões dos publicistas mais qualificados como meio auxiliar de determinação de normas de direito (art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça), normas criadas pelas organizações internacionais e atos jurídicos unilaterais.

A antinomia de direito interno-internacional merece um destaque, pois sua solução surge não tal somente dos critérios solucionadores, os quais serão devidamente estudados, mas sim através da filiação das teorias específicas sobre o assunto. Tal antinomia surge entre norma de direito interno e norma de direito internacional público. Um exemplo é a convenção Dos Direitos Humanos intitulada de Pacto San José da Costa Rica, tratado internacional o qual o Brasil é signatário. A antinomia interno-internacional dá-se ente o Pacto, artigo 13 do tratado, e o 223 da Constituição Federal:

"Art.13 - Liberdade de Pensamento e de Expressão.

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda a natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

(...)

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controle oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos usados na difusão da informação, nem por obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões." [34]

"Art. 223: Compete ao poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observando o princípio da complementaridade dos sistemas privados, públicos e estatal". [35]

O tratado prescreve que o direito da comunicação será exercido sem prévia licença do Poder Estatal, porém a Constituição estabelece que o Poder Executivo através do Ministério das Comunicações concederá concessão para os interessados no serviço de radiodifusão comunitária.

A solução desta espécie de antinomia não depende tão somente da utilização dos critérios solucionadores, mas sim da ótica da teoria utilizada pelo aplicador. A corte Suprema Brasileira, o Supremo Tribunal Federal, assim como a grande maioria dos magistrados, utiliza a teoria dualista nacionalista moderada como resposta às antinomias apresentadas neste âmbito. Dualista por considerar que o ordenamento jurídico internacional e o ordenamento nacional são independentes. Nacionalista por acreditar que o ordenamento Estatal prevalece sobre o internacional adotado. E moderada pelo tipo de procedimento adotado para incorporação do tratado, ou seja, somente exige-se a formulação de um decreto-lei pelo Congresso e depois promulgado pelo Presidente e não a formalização através de Lei ordinária.

Esta teoria prescreve que os acordos internacionais assinados pelo Brasil são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro como lei infraconstitucional.

Tratar o Pacto San José da Costa Rica como Lei infraconstitucional é colocá-lo abaixo da Constituição Federal. Assim sendo a solução é a utilização da norma advinda da C.F. em detrimento ao do Pacto.

1.5.4. Quanto à extensão

Critério quanto à extensão da contradição. Em relevância a este critério a antinomia poderá se apresentar de maneira total-total, total-parcial e parcial-parcial.

A antinomia total-total é a incompatibilidade absoluta entre duas normas, ou seja, entre uma norma e outra não poderá haver conciliação na aplicação. Uma norma não poderá ser aplicada em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra. Maria Helena Diniz (2001) cita a ilustração feita por Hans Kelsen quanto a esta espécie de antinomia:

"A esse respeito bastante interessante é a posição de Hans Kelsen. Para ele, haverá conflito entre duas normas quando o que uma estabelecer como certo for inconciliável com o que outra estatuir como devido, e a observância ou aplicação de uma delas comportaria, necessária ou possivelmente, a violação da outra". [36]

Um exemplo bem didático para a antinomia total-total é o caso hipotético de uma norma estatuir: norma 1 – a bigamia deve ser punida; e uma outra norma prescrever: norma 2 – a bigamia não deve ser punida. Ora o dispositivo normativo advindo da norma 1 é contrário em totalidade em relação ao dispositivo da norma 2. A aplicação da norma 1 necessariamente entrará em conflito com a norma 2 e vice-versa.

A questão é saber se há a conciliação da aplicação das normas. Tal conciliação deve sempre se ater às finalidades para quais as normas foram criadas e o conteúdo material das mesmas. Caso seja possível a conciliação entre as normas, dependendo da abrangência desta conciliação teremos a antinomia total-parcial ou antinomia parcial-parcial. Anteriormente a disposição destas duas classificações mister se faz evidenciar as palavras de João Baptista Machado (1998) sobre a matéria:

"No caso de as normas em concurso prescreveram diferentes conseqüências jurídicas, temos que encarar as seguintes possibilidades:

a)Ou há uma aplicação cumulativa das duas normas produzindo-se tanto a conseqüência jurídica de uma com a da outra;

b)Ou o indivíduo cuja esfera jurídica é afectada pelas conseqüências jurídicas das duas normas pode optar por uma delas (aplicação alternativa);

c)Ou conseqüências jurídicas das duas normas se excluem reciprocamente, pelo que apenas uma das normas em concurso pode ser aplicada.

Neste último caso – o único que aqui nos interessa – existe uma ‘contradição’ da lei que é uma contradição ou um ‘conflito de normas’: uma norma, quer expressamente, quer pelo seu sentido, exclui a aplicação da outra quando ambas ‘concorrem’ sobre a mesma situação concreta.

Quando as conseqüências jurídicas de duas regras cujas hipóteses se encontram realizadas na mesma situação concreta não são entre si contraditórias (ou seja, quando elas não imponham condutas antagônicas – contradição lógica), é muito difícil saber se aquelas conseqüências jurídicas podem produzir-se conjuntamente (cumulativa ou alternativamente) ou se, diversamente, uma das regras jurídicas é excluída pela outra – ou seja, se elas estão efectivamente em conflito. Não é uma questão que possa ser respondida logo com base na simples lógica formal, como à primeira vista poderia supor-se. Antes, só lhe poderemos responder através de considerações de natureza teleológica, deixando-nos determinar pelo fim da lei e pela inserção de cada norma do seu verdadeiro contexto material". [37]

A possibilidade da cumulação normativa ou alternativa do mesmo fato latu senso é representada pelas antinomias total-parcial e parcial-parcial.

A antinomia total-parcial é visível quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra, enquanto a outra tem um campo de aplicação que conflita com a anterior apenas em parte. Nas palavras magistrais de Norberto Bobbio (1999):

"Se, duas normas incompatíveis, uma tem um âmbito de validade igual ao da outra, porém mais restrito, ou em outras palavras, se o seu âmbito de validade é, na íntegra, igual a uma parte do da outra, a antinomia é total por parte da primeira norma com respeito à segunda, e somente parcial por parte da segunda com respeito à primeira, e pode-se chamar total-parcial. A primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda; a segunda tem uma esfera de aplicação em que não entra em conflito com a primeira.

Exemplo: ‘É proibido, aos adultos, fumar das cinco às sete na sala de cinema’ e ‘É permitido, aos adultos, fumar, das cinco às sete, na sala de cinema, somente cigarros.’

(...)

A situação antinômica, criada pelo relacionamento entre uma lei geral e uma lei especial, é aquela que corresponde ao tipo de antinomia total-parcial. Isso significa que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a geral cai parcialmente". [38]

A especificidade apresentada pela norma derrogadora é uma exceção à norma derrogada. A extensão da antinomia se dá quando as duas normas tiverem um campo de aplicação que em parte um entre em conflito com o da outra e em parte não entra se define como sendo parcial-parcial. As duas normas apresentam tanto uma parte conflitante entre elas e uma outra parte conciliável. O exemplo de Norberto Bobbio (1999) esclarece: "É proibido, aos adultos, fumar cachimbo e charuto das cinco às sete na sala de cinema" e "É permitido, aos adultos, fumar charuto e cigarro das cinco às sete na sala de cinema". [39]

A simples leitura do exemplo nos traz, indubitavelmente, a acepção desta antinomia, pois a primeira norma e a segunda se contradizem na permissibilidade da conduta: fumar charuto, porém se conciliam sobre o cachimbo e o cigarro.

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Sobre o autor
Bruno José Ricci Boaventura

sócio do Escritório Boaventura Advogados Associados S/C

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Bruno José Ricci. O fenômeno da antinomia jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 678, 14 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6707. Acesso em: 22 dez. 2024.

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