3.4 - AS NORMAS PENAIS (REGRAS PENAIS (18))
O Direito Penal, como se viu, é eminentemente normativo. As proibições ou imposições de deveres (e punições correspondentes) são estabelecidas normativamente, de maneira que tal tarefa não fique ao arbítrio do julgador ou dos órgãos repressores ou punitivos do sistema penal. Assim sendo, caracterizando-se as normas penais como fontes imediatas de conteúdo, a primeira indagação de ordem lógica refere-se ao que são as normas jurídicas. Após, indagar-se-á a respeito especificamente das normas penais (regras penais).
As normas jurídicas (19) consistem em diretrizes e regras de conduta e procedimento impostas coativamente pelo Estado, que possuem caráter genérico e abstrato. Elas ordenam, proíbem ou estimulam condutas, e, ainda, estabelecem procedimentos (requisitos de validade formal) e critérios (requisitos de validade material) para ações privadas e estatais (20). Caracterizam-se, para tais fins, como mandamentos de dever ser (21). Para a esfera penal, devido à importância do princípio da legalidade, interessam em especial as normas penais legisladas, ou seja, contidas em leis (22).
As normas penais, por sua vez, são normas jurídicas cujo objeto refere-se de algum modo (prescritivo, permissivo, explicativo etc) à idéia de crime. São diretrizes ou regras de conduta, num primeiro plano, e regras interpretativas e complementares de tais regras de conduta (num segundo plano). Assim, as normas penais (como corolário lógico do próprio conceito de Direito Penal) são normas jurídicas que definem os crimes e suas respectivas sanções, bem como estabelecem as condições (positivas e negativas) de aplicação dessas sanções.
As normas penais, na mesma linha de qualquer norma jurídica, possuem como principais características: - generalidade (têm eficácia ‘erga omnes’); abstração (dirigem-se a hipotéticos fatos futuros); estatalidade (possuem origem estatal); coercibilidade (possibilitam o uso da coerção estatal); imperatividade (impõem-se a todos).
Por outro aspecto, são destinatários das normas penais: os cidadãos, no sentido de obediência (sentido ‘negativo’, de prevenção e repressão de crimes) e referência frente ao Estado (sentido ‘positivo’, de garantia contra a eventualidade de arbitrariedade estatal); os órgãos estatais, para a prevenção delitual, para a aplicação punitiva das normas (jurisdicional e executiva) e para a definição dos limites de sua atuação repressiva e punitiva.
Partindo-se da definição proposta de normas penais, e destacando-se delas as diretrizes (normas-princípio), pode-se afirmar que elas se dividem em dois grandes grupos distintos: aquelas que definem os crimes e estabelecem as sanções, chamadas de normas (regras) penais incriminadoras; e aquelas que estabelecem as condições (de sentido positivo ou negativo) para aplicação dessas sanções, chamadas de normas (regras) penais não incriminadoras.
3.4.1 - Normas Penais Incriminadoras
Como se viu, a definição dos crimes e a identificação das sanções que a eles correspondem está nas normas penais incriminadoras. Elas poderão ser encontradas no Código Penal dispostas a partir do artigo 121, na Parte Especial do Código (23). Na legislação penal complementar estão esparsas nas diversas leis.
Sua estrutura lógica segue a idéia da ‘proposição jurídica’ kelseniana: "Se A é, B deve ser". Ou seja, as normas incriminadoras caracterizam-se como proposições de dever ser, hipotéticas e abstratas, em que para a hipótese abstratamente descrita está prevista uma conseqüência jurídica.
Compõem-se, assim, de preceito + sanção. O preceito caracteriza-se como a parte descritiva da norma incriminadora, na qual são definidas as características peculiares de cada crime. É através do preceito normativo que se forma o tipo penal (modelo incriminador) (24).
Seu caráter descritivo, porém, não lhe retira a condição de designar um imperativo de conduta, através de um comando implícito proibitivo ou obrigacional (de dever). Assim, de uma norma como a do caput do artigo 121 do Código Penal, que descritivamente prevê "Matar alguém" (estabelecendo para tal conduta descrita a pena de reclusão de 06 a 20 anos), retira-se o comando proibitivo ‘é proibido matar’. Já de uma norma como a do artigo 135 do Código Penal, que descritivamente prevê "Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, a criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo (...)", retira-se o comando obrigacional (de dever) ‘todos têm o dever de prestar socorro quando possível fazê-lo sem risco pessoal’.
Como regra geral, verifica-se que as normas penais incriminadoras conterão comandos implícitos proibitivos, e só excepcionalmente comandos obrigacionais (de dever). Tais comandos implícitos são decorrentes do tipo de definição do crime contido no preceito. Se o preceito, ao definir o crime, descrever uma ação para a qual é prevista a sanção, implicitamente haverá uma proibição. Se, no entanto, o preceito incriminador descrever uma omissão, um não fazer, tratar-se-á implicitamente de uma obrigação de conduta (de um dever de agir).
A sanção, por sua vez, caracteriza-se como a parte em que está prevista a pena, a punição. Para cada conduta descrita no preceito incriminador, há uma correspondente sanção, ordinariamente consiste em pena de detenção ou de reclusão.
3.4.2 - Normas Penais Não Incriminadoras
Definido o crime e estabelecida a sanção correspondente em uma norma penal incriminadora, não basta que um fato corresponda a tal definição para que se caracterize como crime, ou para que possa ser imposta uma pena a quem o praticou. É, primeiramente, necessário que algumas condições sejam preenchidas (condições ‘positivas’) para que haja o crime e seja imposta uma sanção (25). De outra parte, é também necessário que algumas hipóteses normativas não sejam preenchidas (condições ‘negativas’) - pois se forem ou não há crime ou não há possibilidade de impor a sanção (26). As normas que prevêem tais hipóteses (condições positivas ou negativas) são chamadas de normas penais não incriminadoras (27). Ademais, a interpretação de todas essas normas deve ser balizada pelos princípios jurídico-penais.
Importa frisar que as normas não incriminadoras não possuem caráter incriminatório-punitivo autônomo, mesmo quando expliquem conceitos ou de qualquer modo complementem normas incriminadoras. Por um lado, não criam novas incriminações (não prevêem novos crimes), nem ampliam especificamente alguma norma incriminadora (não acrescentam alguma hipótese qualificadora ou majorante à definição de crime). Por outro lado, tais normas não prevêem específicas sanções penais.
Atente-se: a expressão ‘não incriminadora’ significa apenas que tais normas não trazem definição de crime e estabelecimento de sanção. Representa apenas, então, que elas não são incriminadoras. Não significa, portanto, que elas sejam (ao menos não necessariamente) anti-incriminadoras (descriminalizantes ou despenalizantes).
De outra parte, as normas penais não incriminadoras podem ser divididas em quatro grupos:
a) diretivas: são as normas penais ou constitucionais-penais que prevêem princípios jurídicos, tendo efeito condicionante sobre a interpretação e aplicação das demais normas e dos demais conteúdos do Direito Penal (28).
a) permissivas justificantes: são normas que prevêem hipóteses que, sob as circunstâncias que descrevem, tornam permitido o que ordinariamente é proibido, tornam lícito o que ordinariamente é ilícito, tornam justificado o que ordinariamente é crime.
São exemplos de normas penais não incriminadoras permissivas justificantes as previstas nos artigos 23, 128 e 142 do Código Penal.
b) exculpantes: São normas que afastam a culpabilidade do fato (por não ser recriminável seu agente), ou determinam a impunibilidade ou a diminuição da punibilidade de certas condutas (embora o fato em si não se torne justificado).
São exemplos de normas penais não incriminadoras exculpantes os artigos 26, 27 e 181 do Código Penal.
d) complementares/explicativas/interpretativas: são normas de caráter múltiplo, pois ao menos duas das três características sempre estarão juntas. Elas complementam, esclarecem o conteúdo ou delimitam o âmbito de aplicação de outras normas, explicam conceitos gerais ou explicam expressões utilizadas em outras normas.
São exemplos de norma penais não incriminadoras complementares/ explicativas/interpretativas os artigos 4º a 7º, 10 a 12, 33, todos do Código Penal.
Em síntese, as normas penais (especialmente as legisladas, devido à preponderância do princípio da legalidade na esfera penal) podem ser assim divididas:
Normas Penais |
Incriminadoras |
|
Não Incriminadoras |
Complementares/Explicativas/ Interpretativas |
|
Permissivas Justificantes |
||
Exculpantes |
||
Diretivas |
3.5 – AS FONTES MEDIATAS
3.5.1 - Costumes
Os costumes definem-se como comportamentos sociais constantes e habituais, comuns a um vasto grupo de pessoas, que assim agem porque acreditam na necessidade de assim o agir. Partindo disso, dos costumes derivam regras sociais (morais) de conduta, de uso geral e constante, que as pessoas observam em suas vidas pela convicção de corresponderem a uma necessidade. Importa destacar que dos costumes podem derivar regras específicas ("as pessoas devem agir de tal modo") ou regras genéricas ("as pessoas devem decidir por si mesmas como devem agir em determinadas situações").
São elementos que compõem os costumes: observância constante (elemento objetivo) e convencimento geral da necessidade (elemento subjetivo). A observância constante por um vasto grupo de pessoas indica que não se trata de modismo comportamental, mas sim de um modo de agir internalizado pelos indivíduos. O convencimento geral da necessidade de seguir ou respeitar as regras sociais derivadas dos costumes indica que os costumes têm algum tipo de força moral sobre os indivíduos, seja positiva (induzindo a ações) seja negativa (induzindo ao não fazer).
3.5.2 - Doutrina
A doutrina penal consiste no conjunto de conhecimentos escritos, teóricos e científicos, sobre o Direito Penal. Decorre da elaboração dos diversos estudos do crime enquanto fenômeno normativo, da pena enquanto imposição estatal e das definições jurídico-penais enquanto valorações sobre os crimes e as penas. Trata-se, portanto, do conhecimento ´´científico´´ produzido sobre os conteúdos - normativos ou sub-normativos (29) - do Direito Penal, definindo ou especificando conceitos operacionais para que o Direito Penal seja aplicado a situações concretas do mundo da vida.
O papel da doutrina é singular, pois através das reflexões dos teóricos do Direito se apontam os rumos gerais que as interpretações jurídicas têm e podem ou devem vir a ter ao longo do tempo e diante das transformações culturais que ocorrem na sociedade. De maneira que serve ela, inclusive, como instrumento de atualização dos conteúdos normativos do Direito Penal.
3.5.3 - Jurisprudência
Consiste no conjunto de decisões judiciais constantes e repetidas sobre temas semelhantes, emanadas principalmente dos tribunais (embora não sejam desprezíveis as decisões de juízes singulares). Representa a direção efetiva que o Direito toma em sua aplicação concreta, em sua interpretação in casu.
Destacam-se como conteúdos jurisprudenciais as Súmulas, por registrarem de modo específico o entendimento dos Tribunais sobre determinados temas. Elas consistem em enunciados específicos, de um determinado tribunal, sobre um assunto que reiteradamente é julgado por tal órgão jurisdicional num mesmo sentido. Assim, o tribunal define previamente que o seu entendimento sobre aquele assunto, a priori, será o que estiver expresso na Súmula.
3.5.4 - Tratados e Convenções Internacionais
Consistem em acordos entre Estados soberanos, sobre temas específicos, indicando normas (ordinariamente ‘normas-princípio’) que os Estados signatários comprometem-se a tentar cumprir. Têm especial importância para o Direito Penal quanto à fixação de compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos.
3.6 - CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS
Na definição dos conteúdos do Direito Penal aplicável à solução de problemas concretos do mundo da vida, utilizam-se as diversas fontes jurídicas de maneira relacionada. Não há um recurso exclusivo às normas legisladas, aos princípios jurídicos, ou a qualquer das fontes mediatas. Procede-se a uma combinação de conteúdos e operações jurídicas interpretativas, para se definir como atuará o Direito diante de determinadas situações concretas.
É evidente, porém, por tudo que se afirmou antes, que o ponto de partida e de referência para tal definição são os princípios jurídico-penais e as normas legisladas - ou seja, as fontes imediatas. Afinal, neles estão dispostos juízos de dever-ser, com as peculiaridades de serem (cada norma à sua maneira) genéricos, abstratos, estatais, coercitivos e imperativos. Além disso, em sua grande maioria (excluem-se alguns princípios) possuem forma escrita e específica como mandamentos de dever-ser, possibilitando aos seus destinatários transparência (30) quanto aos elementos que compõem cada juízo valorativo neles contido.
Na determinação dos conteúdos jurídicos aplicáveis a casos concretos, porém, é central o papel desempenhado pelos órgãos aplicadores do Direito - destacando-se juízes e tribunais, em especial pela jurisprudência como fonte de conteúdo. Os juízes e tribunais possuem, como em nenhuma outra posição jurídica ou nenhum outro órgão público ou privado, a possibilidade de identificar e determinar o Direito aplicável à solução de determinado problema. Ao fazê-lo, procedem ao inter-relacionamento dialético entre as fontes de conteúdo do Direito, combinando princípios jurídicos e normas legisladas, utilizando a doutrina para a definição de conceitos, considerando os costumes que porventura envolvam aquele problema específico, considerando os precedentes judiciais sobre casos semelhantes e considerando eventuais tratados que interfiram sobre aquele problema.
Assim, a cada julgamento se produz Direito, produzindo-se em algum grau conteúdo normativo (individual e específico, porque ordinariamente destinado apenas às partes de uma ação, mas normativo, por consistir em mandamento de dever ser). A cada nova decisão judicial, portanto, está se (re)construindo (dialeticamente) o conteúdo do Direito.
Entretanto, em qualquer esfera de aplicação do Direito, importa se ter claro que os princípios jurídico-penais possuem força diretriz para a definição dos conteúdos que devem prevalecer no Direito. Sendo normas (mandamentos de dever ser), os princípios possuem, além da força diretriz (material), a força de imperatividade normativa formal.
Ora, se os princípios jurídicos possuem tal força diretriz e podem possuir tal imperatividade, o que se tem é que eles estão, na relação com as demais normas (regras), em posição de sobre-determinação do conteúdo destas. Vale dizer: ao se criar novas normas, deve-se ter o cuidado de evitar que elas entrem em conflito com o conteúdo diretivo dos princípios gerais do sistema jurídico e dos princípios jurídico-penais. Ao se interpretar e aplicar normas já existentes, deve-se adequar tal interpretação e aplicação ao conteúdo diretivo dos princípios jurídico-penais. Assim, numa perspectiva tributária do garantismo de Luigi Ferrajoli, os princípios são condicionantes da validade das demais normas (31).
Deve-se ressaltar, enfim, como decorrência lógica do exposto nas páginas anteriores, que, se os princípios jurídico-penais e as normas penais legisladas em geral são fontes imediatas do Direito, eles, em conjunto, sobre-determinam os demais conteúdos do Direito. E, se os princípios indicam os valores superiores do sistema jurídico e, em específico, os valores superiores do subsistema jurídico-penal, eles condicionam, como diretrizes, a definição e delimitação dos conteúdos das normas e a definição e a delimitação dos demais conteúdos jurídico-penais (seja nos âmbitos de eficácia temporal, territorial ou material – de regulações de conduta – desses conteúdos).