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Estatuto do Desarmamento:

irracionalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade

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3. Inconstitucionalidade

            3.1 Da liberdade provisória

            A parte penal da lei de que se cuida aqui veio afivelada a um objetivo de banir o uso de armas de fogo do seio da sociedade brasileira. Comprova-o seu art. 35, que proíbe, sob condição suspensiva da realização de referendo em 2005 (§ 1º do mesmo artigo), a "comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei (39)".

            Sob esta égide e iludido pelo suposto potencial intimidativo das altas penas criminais e do rigor no processamento de seus crimes (40), optou o legislador, desavisadamente, por fazer das normas penais ali inscritas um feixe de arbitrariedades, desproporcionalidades e inconstitucionalidades.

            A primeira, mais afrontosa e clara como o sol do meio dia, é vedação da liberdade provisória com arbitramento de fiança, em alguns tipos, e a total insuscetibilidade de liberdade provisória, com ou sem fiança, em outros. Por proêmio, há argumentar a consolidação cabal da distinção, que em doutrina e jurisprudência já se fazia entre um e outro instituto. (41)

            Com efeito. Se no art. 14, parágrafo único e 15, parágrafo único disse a lei que os crimes das respectivas cabeças são inafiançáveis, ao passo que no art. 21, estipulou que "os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória"; se os primeiros têm penas cominadas menores que os últimos e, finalmente, se a boa hermenêutica ordena não considerar inúteis nenhumas expressões da lei, daí há mister de extrair que nos crimes dos arts. 14 e 15, ambos nos seus capites, é defesa, tão-só, a concessão de liberdade provisória via arbitramento de fiança, ou seja, as hipóteses do art. 322, e 322, parágrafo único c/c 323, e 324 do CPP, estes interpretados pelo avesso. Nada se diga disso quanto ao caso do art. 321 e do art. 310 e seu parágrafo único, também do estatuto penal adjetivo.

            Demais disso, ler na palavra "afiançável" o grupo de palavras "liberdade provisória com ou sem arbitramento de fiança" seria trair a literalidade para fazer interpretação extensiva in malam partem. Em que pese ao ponderado entendimento de boa doutrina no sentido de que se não pode banir tal modalidade interpretativa do elenco do aplicador da lei penal (42), certo é que mesmo quanto a isto há de haver enorme mesura. Mais ainda: toda interpretação legal parte da Constituição, que consagra princípios e direitos fundamentais aptos a salvaguardar a normatividade da lei em seu caminho na senda que lhe quis dar o poder constituinte. Estes préstimos jamais serão negligenciados pelo intérprete. Aqui, posto que fosse admitida a interpretação extensiva, teria esta de sucumbir ante a proteção constitucional que se outorgou à liberdade, à dignidade da pessoa humana, à legalidade, à confiança ético-moral apriorística no indivíduo. Como de sabença, tudo o que restringir tais grupos essenciais da Carta Magna e do sistema de direitos nela inscrito, está destinado à restritividade.

            Todo o precedente, contudo, faz-se por amor à argumentação, sem embargo da aplicação do mesmo raciocínio aos crimes hediondos ou assemelhados, por exemplo. É que qualquer das vedações citadas – à liberdade provisória com arbitramento de fiança ou à liberdade provisória tout court – traz a nódoa de flagrante inconstitucionalidade. Se não vejamos.

            A normalidade constitucional induz a liberdade. A liberdade é a regra (43), a praxe. Se nada há que modifique a situação jurídica do cidadão, sua liberdade deve ser preservada e tem o estado o dever de assegurá-la, direito fundamental que é.

            Em verdade, o princípio da presunção de inocência (44), "nada mais representa que o coroamento do due process of law. É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre." (45) Ao par da previsão constitucional expressa, na qual se vê um autêntico direito público subjetivo e fundamental à não-culpabilidade prévia à sentença condenatória passada em julgado (art. 5º, LVII da CF/88), tem escudo um tal direito em copiosos textos normativos internacionais (46), de que é exemplo mais próximo o: art. 8, alínea 2 da Convenção Americana sobre Direito Humanos ("Pacto de San José de Costa Rica") de 1969. Por estas precisas razões, bate-se a doutrina unissonamente, a revezes em vão, pela leitura restritivíssima a ser dada às medidas intraprocessuais que importem em constrição ao status libertatis do réu ou indiciado.

            Qualquer prisão provisória, quer em flagrante, quer preventiva, quer decorrente da decisão de pronúncia, quer decorrente de sentença condenatória recorrível, quer temporária, deve revestir-se dos requisitados de cautelaridade. São, realmente, dentre as medidas cautelares, as mais gravosas. Ferreteiam a garantia maior do indivíduo. Não têm, pois, condição de aplicação, senão quando o caso concreto, com as provas parciais que oferece ao julgador, autoriza-as, sob o pálio seguro do art. 312 do CPP. Nesta esteira, bem sintetizou Breno Melaragno Costa: "Qualquer medida de caracter preventivo em face da presunção de inocência tornou-se exceção na ordem jurídica." (47)

            Ora, se é o direito à não-culpabilidade prévia à condenação definitiva – ou direito à presunção de inocência – a normalidade que quis a constituição fazer irmanar-se ao direito de liberdade; se a própria Lei Maior agiganta seu acervo de proteção a este último direito por meio de uma série de garantias, tais como a do habeas-corpus (art. 5º, LVIII), a do relaxamento de flagrante (art. 5º, LXV), e a da liberdade provisória (art. 5º, LXVI); se se coaduna esta garantia com o direito à aplicação personalíssima das penas e das medidas de constrição em análise profunda e particularista de cada situação pessoal posta ao jugo da Justiça Criminal; se, por derradeiro, a própria Constituição Federal estipulou peremptoriamente em quais tipos de delitos se não poderia conceder liberdade provisória com arbitramento de fiança, os chamados crimes "inafiançáveis" – a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, os definidos como hediondos, a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, e a prática do racismo –, previstos no art. 5º, XLII, XLIII e XLIV; se tudo isso for, como de fato é, verdade, ganhará o reino dos céus – como diria, em gracejo, Tourinho Filho – quem explicar de onde o legislador ordinário achou que teria poderes para vedar a liberdade provisória, ao alvedrio seu, para crimes cujas penas máximas não transcendem, em sua maioria, os seis anos.

            Nem se venha levantar, ingenuamente, que o art. 5º, LXVI consagra a expressão "quando a lei admitir". Ora, está claro que a lei referida é a que regula os requisitos genéricos da aplicação do instituto. Trata-se do Código de Processo Penal, em seus arts. 310; 310, parágrafo único, e 321, et. seq. Seria estólido, certamente, tentar enxergar aí uma norma constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia contida (48) no sentido de que pode o legislador ordinário, a qualquer momento, singelamente, apagar um direito constitucional derivado de cláusula tão cara quanto a de proteção a liberdade; máxime em um Estado Democrático de Direito.

            Caso assim não se entendesse, para que os incisos XVLII, XLIII, XLIV do art. 5º? Transparente que se trata de limitação expressa ao direito de liberdade e seus consectários. Só quem deu pode tirar. Reconheceu a Constituição ao homem a liberdade como um seu direito inerente à sua condição, por isso mesmo que fundamental, junto dos direitos formais e garantias que o façam efetivo (49). Só a Constituição pode retirar uma destas e somente em casos particulares. Se não, a dessubstância recairia sobre o instituto mesmo, que de limitado passaria a inócuo.

            Diga-se mais: em nenhum momento citou a Carta Magna "insuscetível de liberdade provisória", consoante se lê no art. 21 da Lei n. 10.826 de 22.12.2003. Ainda por cima, inovou o legislador infraconstitucional. Criou uma forma de limitação à liberdade provisória que a maior das leis do país não havia cometido sequer aos crimes hediondos e assemelhados...

            Ainda neste tópico, atenha-se à seguinte circunstância: a maior das penas cominadas aos preceitos típicos da citada lei não ultrapassa os oito anos de reclusão. A menor das penas dos crimes com restrição à liberdade provisória é dois anos. Ora, em muitos – dir-se-ia na maior parte – dos casos de aplicação do malsinado diploma, haverá a substituição da pena privativa de liberdade por outra, dita alternativa – restritiva de liberdade, pecuniária ou restritiva de direitos (50). Os crimes são de perigo abstrato, de mera conduta. Não há cogitar grave ameaça ou violência que elida a aplicação dos substitutivos penais. Assim, lançado o disparate de forçar alguém a aguardar uma instrução penal inteiramente encarcerado, para, posto que condenado, cumprir pena não-privativa de liberdade, especialmente no caso dos tipos do arts. 14 e 15, que são "só" inafiançáveis e cuja pena máxima, como dito, é quatro anos de reclusão. Mais grave a medida cautelar do que a imposta como sanção principal. Sobeja isto as raias da insanidade, o por que não encontra brechas em sua inconstitucionalidade. O acessório nunca pode ser mais gravoso do que o principal. Melhor deixar, portanto, conforme preconiza o art. 798 do CPC, o poder geral de cautela nas mãos do magistrado competente, que dele não irá, decerto, abusar, porquanto tolhido pelos corretíssimos requisitos do art. 312 do CPP.

            Concessa maxima venia, em conseqüência das considerações ora erguidas, não existe fundamento possível para tal sorte de excrescências. As vedações à liberdade provisória decorrentes do Estatuto do Desarmamento, já aquela dos arts. 14, parágrafo único e 15, parágrafo único, já aquela do art. 21, perfazem a quintessência da absurdidade. São, ao lado disso, rigorosa e totalmente inconstitucionais; e cada vez que algo assim toma assento no Direito deste sofrido país, pensa-se que correto se mostrava o mestre Tourinho Filho:

            "[...] uma vez que o princípio da inocência jamais foi obedecido e acatado, chega-se à inarredável conclusão de que a adesão do nosso Representante junto à ONU, àquela Declaração [Universal dos Direitos do Homem], foi tão-somente poética, lírica, com respeitável dose de demagogia diplomática... E estávamos em pleno regime democrático." (51)

            3.2 Das normas penais incriminadoras

            Não foi só na liberdade provisória a carga lançada pela Lei 10.826 de 22.12.2003 à menoscabada Constituição da República Federativa do Brasil. Agrupa, de modo absolutamente arbitrário, uma coleção de tipos penais azambrados, mal redigidos, um verdadeiro alienígena no sistema penal brasileiro, que já não goza da unidade desejável. Tem como seu grande inimigo, essa lei, o princípio da legalidade constitucional em matéria penal, o qual princípio assume dramaticidade ímpar, por conta da limitação primária que impõe à fúria punitiva do Estado (52).

            Realmente. Constuma-se em doutrina predicar ao mesmo princípio quatro subprincípios que dele se dessumem para perfazer seu anelo, segundo o que se disse, supra. Assim, o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, na dicção que a ele impôs o alemão Feuerbach no século XIX e que hoje perdura em nossa Constituição Federal (art. 5º, XXXIX: "Não crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal") e em nosso Código Penal (art. 1º, com a mesma formulação), desdobra-se em nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; nullum crimen nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; nullum crimen sine lege certa (53). A estes subprincípios (54) correspondem, respectivamente, a proibição de retroatividade in malam partem da lei penal, a inaceitabilidade do costume como fonte incriminadora, a vedação à analogia em prol da punição, e o banimento de tipos penais abertos e de redação fluida. De acordo com Assis Toledo:

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            "Com a aplicação concomitante desses quatro princípios, contidos por implicitude no princípio geral antes referido, constrói-se a denominada função de garantia da lei penal, que pode também ser entendida como autêntica ‘função de garantia individual das cominações penais.’" (55)

            A advertência atualíssima do douto professor veio em eco de doutrina iluminista e liberal do direito penal, fornecida antanho pela Escola Clássica. Encontrava-se, ainda embrionária na obra máxima do Marquês de Beccaria. Dizia ele: "só as leis podem fixar as penas de cada delito e [...] o direito de fazer as leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social." (56)

            Eram, todavia, modestos os iluministas. Enfrentavam problemas que há muito se expurgaram de nossa mentalidade jurídica. Arrostavam as punições inquisitoriais, os suplícios, a punição ao bel prazer do rei soberano, que tudo podia em seus infindáveis caprichos abonados pelo direito divino. Necessitavam apenas de uma limitação formal. Tão-só a limitação da punição à existência de lei concebida em um parlamento que representasse o povo unido em contrato social já se mostrava grandessíssimo avanço.

            Hoje, após séculos de predomínio mundial, ao menos no plano teórico, da república e da democracia, pode juntar-se à visão formal da legalidade penal uma outra, material, que reclama não por mera feitura de lei, mas que indaga qual será a lei, que perscruta seu conteúdo. Os quatro subprincípios extraídos da legalidade e retro-apontados carreiam para ela facetas materiais. Engrandecem-na, libertam-na de sua formalidade originária e aparente. Fazem-na, como acima se assinalou, garantia político-jurídica da pessoa humana, cuja dignidade impende sempre resguardar, por fundamental ao Estado Democrático de Direito (art. 1º, III da CF/88).

            Calcado nestas razões, pensamos que mais do que desdobramentos do princípio da legalidade, os subprincípios que alargam seu conteúdo estão, em verdade, contidos na expressão lei do brocardo "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Com efeito, não se trata de uma lei qualquer. É do Estado de Direito, de sua evolução, de sua concepção histórica, de sua consolidação, manter e proteger a liberdade do homem e resguardar sua esfera de escolhas próprias, de livre ir e vir, de acesso à informação, etc. (57) Pontes de Miranda dizia eram os direitos de liberdade autênticos direitos supralegais, representavam o espírito dos direitos fundamentais (the man versus the State), retiravam origem e espeque do direito das gentes. (58)

            Ora, se assim é, a lei que gera, em respeito ao princípio de que se cuida, preceitos incriminadores tem de reunir os requisitos anteriormente descritos: tem de ser prévia à conduta que incrimina; tem de ser lei em sentido formal, como ato complexo desigual (59) emanado primacialmente do parlamento eleito pelo povo; tem de ser lei estrita, na medida em que se não admite integração jurídica pro societate; tem de ser certa, pois que só se legitima o tipo predominantemente descritivo e denotativo, que não causa estranheza ou incerteza no aplicador e no sujeito a quem se lho imputa. Porém, mais do que isso, a lei, prévia, escrita, estrita e certa, que quer criar crimes e cominar penas tem de ser coerente com todo o ordenamento jurídico penal, tem de ser coerente como o sistema incriminador como um todo, pois ao legislador não é dado criar graves distorções entre preceitos e sanções penais.

            É preciso, realmente imperioso, proscrever esta insustentável e demagógica prática, da parte de quem deveria conduzir o povo à sua liberdade, de criar tipos que antecipam mais e mais a punição – daqui a pouco teremos crime de perigo ficto – com penas cada vez maiores, criando distorções evidentes e horrendas. Os crimes de dano ou de lesão, que eram regra em 1941, foram paulatinamente sendo substituídos, no zênite da sociedade de risco por tipos de perigo abstrato, que tencionam evitar a conduta e não a puni-la. O manejo destes crimes, deve-se dá-lo com cautela e sempre em vista do homem, assim o que se pune como o que se protege, sob pena de um Estado que, ao revés de resguardar bens jurídicos – e respectivos interesses jurídicos – cujo dano afronta o próprio convívio social, cria-se em torno do medo. Medo dos cidadãos, uns em relação aos outros dos outros, e de todos em relação ao Estado. Vem de Maquiavel a censura a tal tipo de comportamento:

            "Não deve ser [...] crédulo o príncipe, nem precipitado, e não deve amedrontar-se a si próprio e proceder equilibradamente, com prudência e humanidade, de modo que a tolerância demasiada não o torne incauto e a desconfiança excessiva não o faça intolerável." (60)

            A coerência que se busca não transfere ao mero arbítrio do aplicador da lei a sua validade material. Sem poder afastar todo e qualquer subjetivismo de tal atividade, o que nem mesmo desejável seria, afere-se ela por critérios tão objetivos quanto necessários para legitimá-la como interpretação e não como criação legislativa. O cotejo dá-se entre diversos tipos penais parelhos, especiais e gerais, subsidiários e primários, ou crimes-meio e crimes-fim. Em se utilizando dos critérios do conflito aparente de normas penais, pode o aplicador entrever, pelos absurdos eventualmente produzidos, a incoerências das normas impugnandas. Nullum crimen, nulla poena sine lege cohaerente.

            No caso das condutas tipificadas no Estatuto do Desarmamento, a profusão de incongruências, mormente nos preceitos secundários dos seus artigos, chega a causar espécie pelos exemplos engraçados que geraria. Em seminário, realizado no hotel Glória, no Rio de Janeiro, no início de 2004, o professor Luiz Flávio Gomes fez uma piada que confirma o que se disse. Em tom jocoso, asseverava que se estivesse na rua portando arma ilegal e visse a polícia caminhando em sua direção, apontaria ato contínuo a arma para o primeiro transeunte com que se deparasse, bradando em anúncio ao roubo, o qual, mesmo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo, tentado, daria pena mínima menor do que o mero porte de arma, conquanto o do art. 14 daquela lei.

            Teve em linha de conta o preclaro doutrinador o princípio da consunção. O porte ilegal de arma, por servir de meio a crime mais grave, que atinge diretamente a incolumidade física e o patrimônio do lesado, o roubo tentado, torna-se, na progressão criminosa, antefato impunível por este absorvido. (61) Ora, como pode o crime-fim, de lesão, nomeadamente mais grave, ao menos em tese, definhar em reprimenda ante o crime-meio, de perigo abstrato?

            Outros exemplos, múltiplos, por sinal, poderiam ser levantados. É o caso da lesão corporal de natureza grave, cuja pena mínima se mostra menor do que a dos crimes dos arts. 14, 15, 16, 16, parágrafo único, 17 e 18. A de natureza gravíssima, tem pena mínima menor do que a dos arts. 16, 16, parágrafo único, 17 e 18, e igual à dos arts. 14 e 15. Mais vantagem há em usar arma de fogo ilegal para ameaçar alguém – pena de três meses a um ano de detenção, aplicadas em dobro: art. 146, § 1º – do que meramente portá-la – pena de dois a quatro anos de reclusão: art. 14 da Lei n. 10.826 de 22.12.2003. Se se estiver a portar arma de fogo de uso restrito ou proibido, com sinal de identificação adulterado de qualquer maneira, então, é melhor matar alguém; naquele caso, o concurso material do crime do art. 16, cabeça, com um dos do parágrafo único do mesmo artigo, ambos da Lei 10.826/2006, garante pena mínima de seis anos, rigorosamente igual à do homicídio simples, para o qual ainda há, ao oposto, causa de diminuição de pena... (62)

            Resulta dessas considerações: melhor lesionar grave ou gravissimamente (levemente, então, nem se mencione...), constranger ou matar do que somente ter, portar arma de fogo. Melhor levar o resultado a efeito do que apresentar, pela arma, perigo de fazê-lo. Cumpre, pois, indagar: há coerência, há legitimidade, há legalidade, há constitucionalidade nestes tipos penais?

            O que se quer fazer não é nada senão espalhar sobre o princípio da legalidade os efeitos do direito à individualização da pena (art. 5º, XLVI). Circunscreve-se-lhe, normalmente, apenas o momento da sua aplicação e execução, deixando no oblívio o da sua cominação. A lei que refere a Carta Maior não poder ser interpretada restritivamente, para abarcar somente a da execução penal. Também a incriminadora deve individualizar a pena. Deve ser coerente com o sistema. Deve dar margem suficiente, entre o máximo e o mínimo de pena para que o aplicador possa melhor adequá-la segundo o injusto e a culpabilidade do agente. Deve prever qualificadoras, circunstâncias agravantes e atenuantes de tal modo que tenha instrumentos o magistrado para, no fixar da reprimenda, aproximar-se ao máximo da unidade, da particularidade de casa caso concreto.

            Por com nada disso se preocupar, vergasta a Lei n. 10.826 de 22.12.2003, em toda a sua parte penal, o direito público subjetivo à legalidade coerente, à individualização da pena por parte também do legislador. Menospreza, ainda, o princípio da culpabilidade, que traz a conduta típica e antijurídica para a consideração do homem que a perpetrou, o qual não pode ser irracionalmente punido com o escopo de, servindo de instrumento e não de fim, dar resposta populista a um agastamento medroso de uma sociedade confusa. Não pode o Estado, em última análise, usar pessoas humanas, criminosos que sejam, como bodes expiatórios, fazendo a catarse de equívocos próprios com a liberdade alheia.

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Sobre o autor
João Pedro Chaves Valladares Pádua

sócio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, do National Criminal Justice Reference Center (EUA) e da Association Internationale de Droit Penal (AIDP) e do Instituo de Hermenêutica Jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PÁDUA, João Pedro Chaves Valladares. Estatuto do Desarmamento:: irracionalidade, ilegitimidade e inconstitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 677, 13 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6724. Acesso em: 24 nov. 2024.

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