A hanseníase, a segregação social e a violação de direitos humanos

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Principais aspectos relacionados à política adotada no combate à hanseníase na cidade de Manaus, que incluía isolamento compulsório de enfermos, além de outros fatos violadores da dignidade humana.

1. INTRODUÇÃO

Por muitos anos a humanidade vivenciou a aparição de doenças que disseminaram populações inteiras. O mal de Hansen, por exemplo, por se tratar de uma doença descrita na bíblia como maldição, durante longo período trouxe medo, ocasionando as pessoas atingidas pela doença uma extrema e desumana segregação social e familiar, impondo uma identidade maldita.

O exílio imposto pelo Estado aos doentes em colônias afastadas dos centros urbanos e das respectivas famílias lhes tirava a identidade, uma vez que deixavam de ser conhecidas por seus nomes de batismo e passavam a ser identificadas por números, em tratamento similar aos recebidos nos campos de concentração da 2ª guerra mundial.

Da mesma forma, o tratamento brutal e preconceituoso por parte do próprio Estado e da sociedade (durante processo de isolamento nas colônias de doentes), gerou o início de uma nova ordem social na qual experimentaram sofrimentos de toda sorte, bem como, desrespeito aos direitos humanos básicos previstos na Declaração de Direitos Humanos de 1948 e na própria constituição Federal Brasileira de 1988.

A situação mais agravante identificada na pesquisa foi o afastamento dos nascidos em famílias de portadores da doença; estes eram retirados dos lares e levados para orfanatos nos quais os pais nunca mais tiveram acesso ou notícias. Neste contexto, o objetivo do presente trabalho consiste em analisar os direitos humanos violados com a segregação dos portadores do “mal de Hansen “na cidade de Manaus.

A pesquisa consiste de um levantamento bibliográfico e, para dar resposta aos objetivos propostos, serão usados julgados, doutrinas, jurisprudências e casos concretos abordados em teses e dissertações, bem como, artigos científicos.

A pesquisa, em um primeiro momento, abordará os conceitos relevantes acerca da segregação social dos portadores na cidade de Manaus. Após esse processo, o trabalho trará o entendimento do autor sobre a temática abordada.


2. A HANSENÍASE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE MANAUS

2.1 CONCEITO E HISTÓRICO DA DOENÇA

Não é possível descrever algo sem uma observação e estudo criteriosos, a hanseníase é uma doença antiga, muitos pesquisadores não possuem informações sobre sua origem se fazendo necessário inúmeros estudos para sua compreensão e progressão histórica na civilização.

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa de evolução crônica que se manifesta principalmente por lesões cutâneas, com diminuição de sensibilidade térmica, de forma dolorosa e tátil. Tais Manifestações são resultantes da ação do Mycobacterium leprae [1](M. leprae), agente causador da doença de Hansen, em acometer células cutâneas e nervosas periféricas. Durante os surtos reacionais, vários órgãos podem ser acometidos, tais como: olhos, rins, suprarrenais, testículos, fígados e baço EIDT (2004). Podem ocorrer deformidades e incapacidades de olhos mãos e pés com a evolução da doença (MEDINA et al., 2004). 

Alguns eventos no cenário mundial são importantes para contar a história da hanseníase e evidenciar as razões pelas quais esta, vai ganhando contornos e rumos diversos. Em 1894, na Noruega, o médico Gerhard Armauer Hansen define o agente etiológico da doença. A primeira conferência internacional sobre a lepra, realizada em 1897, em Berlim, é outro evento que merece ser mencionado e que influenciou fortemente as práticas e o tratamento da “lepra” e/ou hanseníase (PANDYA, 2003). Essa conferência é tratada, na historiografia da doença, como o primeiro evento criado com a finalidade de internacionalizar o tema e de defender o isolamento como prática universal.

Segundo Maciel (2007), os cuidados com os leprosos até o século XX, eram realizados em grande maioria pela igreja, tornando-se no último século um problema sanitário nacional. O movimento sanitário da década de 1910, não tinha, inicialmente, colocado a lepra como um problema nacional, contudo, com os dados alarmantes do crescimento da doença nos estados, a partir da década de 1920 a lepra passa a exigir uma política especifica para o seu combate. (CABRAL, 2013).

Segundo Alfredo da Matta (1929), os eventos históricos da hanseníase no estado do Amazonas podem ser dividido em três fases: 1889 a 1907, de 1908 a 1921, a 1928. A primeira fase se caracteriza pelo atendimento do doente com lepra na santa Casa de misericórdia (sem distinção das outras doenças). O período foi marcado por dois problemas: não havia instalações próprias para os doentes, e os municípios do interior enviavam os doentes para a capital (MATTA, 1929 a). Além disso, o período mencionado acima foi marcado pelo êxodo migratório da região nordeste do país para o estado do Amazonas, fruto do crescimento econômico da borracha, impactando diretamente na disseminação da doença.

Segundo período (1908 a 1921), conforme Alfredo da Matta (1929 a) foi marcado pelo relativo isolamento dos doentes na instituição denominada umirizal, criada no século XIX para o isolamento da varíola. Neste período, a responsabilidade na manutenção desses lugares e o acompanhamento médico dos doentes era inerente ao serviço sanitário estadual. Apesar desse primeiro isolamento, ainda “perambulavam” pelas artérias públicas mais de cinquenta leprosos que, dormiam ao relento nos bancos, jardins, nos patamares dos teatros, e nós armazéns na “Manaus harbour”, esmolando publicamente (UCHOA, 1926).

A terceira fase (1922 a 1928) foi caracterizada pelo crescimento da doença sendo necessárias novas instalações, o período foi marcado pelo início dos trabalhos do serviço de saneamento e profilaxia Rural Do amazonas, na qual foi denominada por da Matta (1929a), como sendo uma política mais racional no combate da lepra. Esse intervalo também foi marcado pela centralização da política na inspetoria de profilaxia da lepra e das doenças venéreas, que criou o tripé denominado: dispensário-educandário-leprosário. Nesta época, iniciou-se a criação das leprosarias, mas ainda predominava uma política mais liberal da doença (CABRAL, 2013).

A expectativa de cura era quase nula, como afirma da Matta (1916): “a pessoa não alimenta esperança de cura, os horrores do seu estado pesam em seu espirito, transformando-o em um melancólico. O leproso estava cercado por uma noite intérmina e sem alvorada”.

2.2 A ESTIGMATIZAÇÃO DOS PORTADORES

Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo “estigma” para se referirem aos sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.

Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante, contudo é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. Segundo GOFFMAN (1998). Uma vez que, um indivíduo é estereotipado com tal rótulo social, cujo significado impõe-lhe uma marca que o reduz a uma situação inferior do padrão mínimo atribuído à condição humana, restaria a ele duas possibilidades: ou se adequar ao papel marginal a ele designado ou tentar “encobrir “as marcas que caracterizam o estereótipo estigmatizado (CLARO, 1995).

Durante vários séculos, os indivíduos foram abandonados, vivendo em um ambiente com total privação de suas necessidades básicas o que acabaria por leva-los à morte. Quando internados nos hospitais-colônias, perdiam o contato com o mundo externo, recebendo somente a visita do médico uma vez por ano (GARCIA, 2001).

A mácula e o preconceito, associados à doença ameaçadora e fatal do passado, permanecem no imaginário da sociedade remetendo os indivíduos ao tabu da morte e mutilações, acarretando grande sofrimento psíquico aos portadores com sérias repercussões na vida pessoal e profissional.

Um indivíduo portador de hanseníase sofre as representações sobre a doença que, permanece no ilusório popular desde a antiguidade, tais como, as ligadas à “doença que faz cair partes do corpo”. Como não havia nenhum tipo de tratamento até meados do século XX, as mutilações eram muito comuns, e devido ao horror que as pessoas mutiladas causavam, estas eram isoladas do convívio social. Muitas representações geraram um conceito sobre a hanseníase, vista como castigo divino, e o doente era considerado uma pessoa suja, contaminada, mutilada, que causava medo e deveria ser evitada (BAIALARD, K.S, 2007).

A partir deste preconceito estabelecido constrói-se o estigma, transformando o paciente de hanseníase no “leproso”, ou seja, uma pessoa marcada socialmente (DANIELLE, 2006). Os indivíduos marcados por estigma são constantemente submetidos ao sentido condenatório do termo recebem da sociedade uma imagem distorcida de si que leva o estigmatizado à exclusão social, como se ele tivesse culpa em ser portador de indicativos considerados depreciativos perante a sociedade (ARAÚJO, 2015).

O estigma é um atributo que produz um descrédito amplo na vida de um indivíduo, estabelecendo uma relação impessoal com o outro, fora dos padrões sociais aceitos como normais, sendo que indivíduo estigmatizado costuma sofrer rejeição (BACCARELLI R, 2003). Assim, as marcas deixadas nos portadores da doença de Hansen transcendem as cicatrizes carregadas por suas memórias, e ainda permeiam na atualidade com a desinformação (SILVA, 2014).

A figura central do impacto social da hanseníase é a mácula. Seu longo alcance leva à exclusão social do doente, a evasão dos serviços, à deterioração da saúde individual e do status socioeconômico, e à redução da qualidade e eficácia dos programas voltados ao seu controle (KAZEEN; ADEGUN, 2011).

 O indivíduo “desacreditado” sofre incisivamente o peso do seu estigma, sendo alvo de curiosidades ao ter que responder questões sobre si, não tendo a opção de poder esconder sua marca invisível. Já o “acreditável”, pode escolher se quer ou não que os outros fiquem sabendo qual é o seu estigma. Tal situação permite que, na maioria das vezes, a doença só seja revelada para familiares e amigos próximos, passando-se como “normais” para os demais (GOFFMAN, 1988).

Os sentimentos relacionados a esta doença milenar como: o medo, a vergonha, a culpa, a exclusão social, a rejeição e a raiva, estão internalizados no psiquismo de seus portadores. O estigma e o preconceito permanecem no imaginário dos indivíduos, pois estão enraizados em nossa cultura, causando grande sofrimento e dor aos portadores de hanseníase (BAIALARDI, 2007).


3. O TRAMENTO DA HANSENÍASE EM MANAUS

Como as preocupações e proposta sanitárias chegaram tarde e não foram implantadas (ou não o foram adequadamente), a doença espalhou-se para vários estados brasileiros, chegando a   Amazônia em 1800 (GALVAN, 2003).

Desde a proclamação da república, de 15 de novembro de 1889 até 1905, nenhuma providência foi executada no intuito de melhorar a lepra na cidade de Manaus. Alguns eram recolhidos em cômodos do antigo prédio do hospital da Santa Casa, apesar das continuas reclamações do corpo clínico do estabelecimento (MATTA, 1929).

Em relação ao isolamento, havia, até o início da década de 1930, duas tendências: a humanista ou liberal, que defendia o tratamento em colônias e nas residências, sendo o isolamento seletivo para aqueles que apresentavam lesão mais avançada, e era contra a internação compulsória (essa estratégia foi utilizada pela inspetoria de profilaxia da lepra e das doenças venéreas, durante a década de 1920). E a isolacionista, que defendia o isolamento amplo e fichamento dos doentes em colônias, acompanhando e tratando as pessoas que tinham contato e, finalmente, a internação compulsória (MONTEIRO, 2003; CUNHA, 2010; CABRAL, 2013).

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A proposta do segundo grupo se tornou hegemônica como política para o tratamento da lepra no país.  Em 1921, o estado do Amazonas assinou acordo com a união, instalando o serviço de saneamento e profilaxia rural do Amazonas, com um serviço especifico para a profilaxia da lepra (MONTEIRO, 2003).

Samuel Uchoa [2] assumiu a direção geral do saneamento rural e noemeou o médico Alfredo da Matta para chefiar a profilaxia da lepra. A assistência aos doentes com hanseníase era realizada no dispensário Oswaldo Cruz e no subdispensário Gabizo, ambos criados em 1922, para o tratamento da hanseníase e das doenças venéreas, respectivamente (SCHWEICKARDT, 2011).

Neste período, foi realizado o censo da lepra no Amazonas, que fazia parte do censo nacional. Samuel Uchoa colocou como prioridade a criação do leprosário no estado do Amazonas, sendo feita adaptações no prédio de Paricatuba.

O censo do Amazonas, publicado no primeiro relatório do serviço sanitário e de profilaxia rural de 1922, analisou os seguintes dados: idade; sexo, naturalidade, raça, profissão, estado civil, residência, idade em que a moléstia irrompe, sintoma inicial, parente leproso, diagnóstico de Hansen, isolamento, tratamento, observações.

Todos os casos foram avaliados pelo médico Alfredo da Matta, inclusive aqueles que já haviam passado pelo acompanhamento na Umirizal. O censo mostrou que os doentes estavam distribuídos em toda a cidade de Manaus e em diversas calhas de rios do estado do Amazonas (MATTA, 1922).

Segundo Alfredo da Matta, desde o princípio, a Umirizal também recebia pacientes de hanseníase, sendo o primeiro interno, um menor proveniente do município de Silves, em 1868. Três anos depois chegaram mais duas pessoas e em 1908, o local foi oficialmente destinado ao isolamento exclusivo de hansenianos, pois até aquele momento os doentes eram tratados na Santa Casa de Misericórdia.

O lugar foi se consolidando como isolamento da hanseníase, com o crescente número de doentes (MATTA, 1922).

Apesar da Umirizal ter nome de isolamento, não cumpria exatamente esse papel, pois servia mais como um lugar de moradia para os doentes que eram excluídas de suas famílias. Em 1922, a população era de 171 pessoas, e em 1930, eram 207 internos que recebiam o auxílio do estado com assistência médica, alimentação, vestuário e escola (PORTO, 1930).

As precárias instalações desse lugar não comportavam muito doentes, e também não havia ambulatório específico na cidade, para acompanhamentos e tratamentos. O local foi destruído com a inauguração da leprosaria de Paricatuba, em fins de 1930. Nesse período não havia uma centralização nacional, deixando que cada estado construísse sua resposta ao problema. Somente em 1918 a lepra ganha dimensões de uma endemia rural e, a partir de 1921, as ações passam a ser centralizadas (CABRAL, 2013).

Com hansenianos parcialmente isolados em dois locais da cidade de Manaus: linha de tiro e Umirizal, os médicos Clementinos Ramos, Alfredo da Matta, Miranda leão e Fulgência Vidal, do departamento de higiene, revezaram-se na assistência aos dois locais. O dispensário Oswaldo Cruz foi inaugurado no dia 21 de abril de 1922, sob a direção do médico Alfredo da Matta, auxiliado pelo médico Linhares de Albuquerque, responsável pelas doenças venéreas, o dispensário realizava o primeiro diagnóstico, os exames laboratoriais e os estudos sobre aspectos clínicos e terapêuticos da hanseníase, servindo como local para pesquisa clínica (MATTA, 1922).

“A grande ameaça” foi o título dado por Samuel Uchoa, chefe do serviço de saneamento e profilaxia rural do Amazonas, em seu relatório de um ano de campanha (1922), sobre a situação da lepra no Amazonas, que pretendia chamar atenção sobre as precariedades das instituições responsáveis pelo acolhimento dos doentes. O discurso era uma estratégia para conseguir recursos do poder público e envolver a sociedade (CABRAL, 2013).

A política de isolamento era defendida pela maioria da elite médica local e tinha o respaldo dos governantes assim como da população amazonense. Havia um consenso local, entre médicos e gestores, de que a melhor forma de tratar a hanseníase era por meio do isolamento dos doentes, evitando qualquer tipo de contato com a população “sadia”.

No estado do Amazonas foi desativado o serviço sanitário e a gestão da saúde repassada para o serviço de saneamento e profilaxia rural. A área de Paricatuba foi repassada para a nova gestão, que deveria realizar as adaptações no prédio para abrigar uma leprosaria.

O prédio começou a ser construído em 1896, e foi concluído em 1905, estava localizada na margem direita do Rio negro, acima de Manaus; portando o único acesso ao local era por via fluvial (SHWEICKARDT, 2011). O objetivo inicial da construção era outra, mas com o aumento da doença houve a necessidade do isolamento mais longínquo.

Na década de 1940, decidiu-se transferir os doentes para outra área situada a 32 km do centro da cidade de Manaus, na proximidade de um lago. Esta localização satisfazia as autoridades e a população, pois não haveria mais a possibilidade de contaminar a cidade, e a este novo leprosário foi dado o nome de colônia Antônio Aleixo.

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Sobre os autores
Karen Rosendo de Almeida Leite Rodrigues

ADVOGADA, PROFESSORA UNIVERSITÁRIA, PESQUISADORA

Edielson de Souza Vinente

GRADUANDO EM DIREITO DA UNINORTE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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