A hanseníase, a segregação social e a violação de direitos humanos

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4. DADOS OFICIAIS

Atualmente a humanidade vem vivenciando transformações que proporcionam a internalização e compreensão dos erros, permitido corrigir a história.

A chamada política de combate à hanseníase, que perdurou durante muitos anos em nosso país, não se resumiu àquelas pessoas que foram isoladas nos leprosários. A realidade aqui descrita será outra, pois, a partir de 1920, a lei também determinava o afastamento compulsório e imediato de todos os filhos, inclusive os recém-nascidos, da convivência dos pais cometidos pela hanseníase, assim como determinava que todos fossem assistidos em meio familiar adequado ou em preventório especiais, sob os cuidados do então departamento de profilaxia das lepras e da Assistência social, isto é, do controle do estado (SECRETERIA DE DIREITOS HUMANOS, 2012).

Abaixo, na tabela 1, podemos identificar os dados de crescimento da hanseníase no Amazonas, ao longo da história do preventório em Manaus.

Tabela 1: Preventório no estado do Amazonas no ano 1941.

Estado

Total de leitos existentes

Total de leitos previstos

Total de leitos necessários

AMAZONAS

60

300

300

Fonte: do livro o preventório na defesa contra a lepra

Ressalte-se a grande dificuldade da previsão do número de filhos, razão pela qual, o presente estudo apresenta simulações com base nos escassos dados existentes.

Do livro “O preventório na defesa contra a lepra” (1941), de autoria da senhora América Xavier da Silveira [3], consta uma tabela com a estimativa de leitos necessários para atender a demanda dos filhos.

Os preventórios eram vinculados aos hospitais-colônia ou leprosários, e faziam parte da política de isolamento. A instituição foi utilizada para receber os filhos dos hansenianos tirados dos pais logo após o nascimento, sendo os danos psicológicos e sociais, para as famílias, imensuráveis (UCHOA,1922).

4.1 INFORMAÇÕES SOBRE OS FILHOS SEPARADOS

Tabela 2: Filhos levados para preventório e/ou educandário.

Circunstância

Percentagem de requerentes (%) sobre 115 fichas.

Preventório/ educandário e posterior convívio com a família (parentes de um genitor)

15,6

Preventório/ educandário e posterior convívio a mãe biológica, o pai biológico ou os dois

20,0

Preventório/ educandário, não voltou ao convívio de parentes nem foi adotado (a)

4,3

Preventório/ educandário e adoção por outra família

4,3

Preventório/ educandário e convívio posterior com outra família (sem adoção)

10,4

Fonte: dossiê; a história dos filhos órfãos de pais vivos no brasil.

Tabela 3: Filhos deixados sozinhos ou com terceiros.

Circunstância

Percentagem de requerente (%) sobre 115 fichas

Convívio com a mãe biológica, sem ter sido enviado (a) a educandário/ preventório

10,4

Convívio com a família (parentes de um dos genitores), sem ter sido enviado (a) a educandário/ preventório

10,4

Convívio com outra família (adoção ou não), sem ter sido enviado (a) a educandário/ preventório

11,5

Isolamento na colônia, junto com os pais biológicos, sem ter sido enviado (a) educandário/ preventório

4,3

Fonte: dossiê; a história dos filhos órfãos de pais vivos no brasil.

De 1908 a 1921, o número de hansenianos internados no Umirizal foi de 58 homens, 7 mulheres e 10 crianças (total de 75 pessoas), sendo que 54 deles tiveram alta por óbito, e a capacidade de Umirizal era 25 doentes apenas, porém abrigava mais que o dobro (MATTA, 1924). Até 1933 haviam sido isolados 310 doentes no Paricatuba (SOUZA-ARAÚJO, 1933; TALHARI et al., 1981; PENINNI, 1998).


5. DITEITOS HUMANOS VIOLADOS

As políticas de internação compulsória adotadas, imporam severas restrições de direitos fundamentais e naturais aos doentes como: liberdade, trabalho, autonomia da própria vontade, dignidade da pessoa humana e muitas outras. Daí a conveniente alegação de Jeffrey Richards de que a exclusão formal da sociedade e dos seus direitos civis transformaram o hanseniano em uma não pessoa (RICHARDS, 2003).

As mulheres formaram a primeira e mais numerosa minoria política da história. Com o passar do tempo, outras minorias surgiram ou foram reconhecidas como resultantes de processo de dominação de natureza política, econômica, religiosa e cultural. Nesse sentido, são reconhecidos como minorias desde a idade média, os judeus, os hereges, as bruxas, os homossexuais, as prostitutas e os leprosos (RICHARDS, 2003).

Os hansenianos não possuem, enquanto minoria política, nenhum elemento cultural, religioso ou étnico que os definas. Sua identidade decorre do contágio pelo bacilo de Hansen, causador da hanseníase, historicamente conhecida como “lepra” (SANTOS, et al., 2008).

O início do século XX é marcada pela estruturação de uma política nacional de saúde pública com a criação do departamento nacional de saúde em 1920, sob a direção de Carlos chagas. Em 1923 é publicada o decreto 16.300, que aprovou o regulamento do departamento nacional de saúde e adotou, entre outro importante medidas, normas relativas à profilaxia especial da lepra. Este decreto estabeleceu de modo geral e compulsório a internação em colônias agrícolas, sanatórios, hospitais e asilos de toda e qualquer pessoa diagnosticada com a doença, o caráter compulsório da medida importava na sua execução a despeito da vontade do doente, adulto ou criança (GABARINI, 2011).

A segregação em colônias agrícola importava em um apartamento definitivo do doente do convívio familiar e social. Abrangendo homens, mulheres, crianças e idosos, a medida era adotada independentemente de qualquer aspecto relevante da vida do doente, importando em uma rígida restrição ao contato com parentes, impedindo a manutenção dos laços familiares, assim como o exercício do trabalho ou profissão (GABARINI, 2011).

Silva (2003) explica que a proporcionalidade deve observar critérios fundamentais, quais sejam, 1- verificar se existe adequação, ou seja, se o meio é apto para alcançar o resultado pretendido; 2- se há necessidade, ou seja, se a realização do objeto perseguido não puder ser promovido, com a mesma intensidade por meio de outro ato que limite, em menor medida em um só pensamento entre a intensidade da restrição e a importância do direito fundamental que com ele colide e que fundamental a adoção de medidas restritiva.

Ao analisar a proporcionalidade da separação entre pais e filhos sadios, não era imprescindível no eventual contágio, já que havia outros meios menos radicais e severos dessa separação, abalando a base familiar das pessoas envolvidas, e comprometendo seu bem-estar e seu psicológico emocional. Assim sendo não houve um equilíbrio entre as medidas sanitárias restritivas adotadas e o pretendido resultado que visava alcança, e a impetuosidade a vários direitos fundamentais e humanos.

A constituição de 1988 traz em seu artigo 1º como um dos fundamentos da república federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. A constituição cidadã determina que o direito a saúde é um direito social fundamental, e ao mesmo tempo é dever do estado garanti-lo, mediante politicas socais e econômica que visem nos termos do artigo 196 da CF/88, à redução dos riscos de doenças e de outros agravos, e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 2010).

As institucionalizações de políticas sanitárias de combate à hanseníase possibilitaram verificar como a mesma foi concebida no interior da burocracia estatal, com uma finalidade muito simples: a erradicação da doença. Por outro lado, na perspectiva atual, o grande erro da política adotada ao longo do século passado e que atingiu milhares de brasileiros, foi o de não considerar seus destinatários como sujeitos de direitos fundamentais, mas, apenas como instrumento de uma política baseada no interesse público (GARABINI, 2011).

A estruturação da política sanitária de combate à hanseníase no Brasil ocorreu predominantemente através da edição de decreto do Executivo, enquanto regulamentadores de uma função administrativa[4]. Assim em 1902, a lepra foi incluída no rol de doenças de comunicação obrigatória, nos termos do decreto n. 4.464, de 12 de julho de 1902. A medida adotada estendia-se a todos os serviços sanitários nacionais, apesar da determinação ter origem no serviço de higiene da capital republica, como afirma Santos (2008).

Em 1941, foi publicado em 02 de abril o decreto 3.171, que reorganizou o departamento nacional de saúde criando o departamento nacional da lepra. O referido decreto editado com fundamento no artigo 180 da constituição Brasileira de 1937, e que atribuía ao presidente da república poder de legislar sobre todas as matérias de competência da união, promoveu uma centralidade das atribuições administrativas em matéria de saúde no âmbito da união (BRASIL, 2012).

Uma política sanitária desumana se consolida com premissas do estado totalitário, que edita o decreto lei sobre o n. 610/1949, um ano depois do início da declaração universal de direitos humanos, determinando a mais dura pena ao convívio familiar: a separação compulsória aos filhos de hansenianos; ignorando por completo os tratados internacionais violando os direitos humanos e à dignidade humana. A descriminação trazida por uma política segregacionista, apenas por serem gerados no ventre do ser humano atingido pela doença e que no momento do nascimento se encontravam sadios, negando a estes brasileiros o convívio social, evidenciando o desprezo ao direito à liberdade e à igualdade, dentre outros, inerente a todos os seres humanos.

O disposto no decreto lei, acima mencionado, no que se refere aos filhos de portadores de hanseníase em seus artigos:

 “Art. 15. Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais. ” 

“Art. 16. Os filhos de pais leprosos e todos os menores que convivam com leprosos serão assistidos em meio familiar adequado ou em preventório especial. ”

Os apontamentos históricos da hanseníase revelam que, os objetos de assistência ao meio adequado formaram o tripé da ilusão para aceitação da segregação, impondo uma realidade de difícil aceitação aos órfãos de pais vivos, e para desenvolver sua dignidade social.

A constituição da república federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 227, que cuida da ordem social conclui-se que:

“É dever da família, da sociedade e do estado assegura à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvos de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Toda criança nasce com o direito de ser, é um erro muito grave, que ofende o direito de ser, conceber a criança apenas como um projeto de pessoa, alguma coisa que no futuro poderá adquirir a dignidade de um ser humano. É preciso reconhecer e não esquecer em momento algum que, pelo simples fato de existir a criança já e uma pessoa, e por essa razão, é merecedora do respeito devido, exatamente na mesma medida a todas as pessoas (DALLARI; KORCZACK, 1986).

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O direito à vida é considerado o mais fundamental de todos os direitos. Recebe o status de pré-requisito para a existência dos demais, tais como a dignidade da pessoa humana, direito de igualdade, direito de propriedade dentre outros (LENZA, 2013).

A declaração universal de direitos humanos em seu preâmbulo destaca:

“Considerando que o desconhecimento e o desprezo aos direitos do homem conduziram a atos de barbárie e que revoltaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, liberto do terror e da miséria, foi proclamado com a mais alta inspiração do homem; considerando que é essencial a proteção dos direitos do homem através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão”.

Ao mencionar os artigos 1º e 2º da declaração universal de direitos humanos, podemos ressaltar que: o 1º confirma o direito a igualdade, e o 2º incorpora a proibição da descriminação de qualquer espécie como corolário do direito à isonomia.

Direitos humanos são fundamentais para a pessoa humana, pois sem eles o ser humano não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Não existe um direito mais importante do que outro, cada cidadão deve ter garantido todos os direitos, sem o esquecimento de nenhuma prerrogativa, como os direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, e direito do povo (MINISTERIO DA SAÚDE, 2008).

Além do já descrito, todo cidadão tem direito também a saúde humanizada, acolhedor e livre de qualquer discriminação, respeitando a pessoa e seus valores (MINISTERIO DA SAÚDE, 2006).

Todos os seres humanos, apesar de inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito. Como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza, ninguém nenhum individuo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação, pode afirmar-se superior aos demais (COMPARATO, 2005).

A relevante política sanitária de combate à hanseníase, que se baseava no tripé leprosário, dispensário e preventório, isolando compulsoriamente os doentes (agora não mais existente), teve na história uma função instrutiva imprescindível: a de reivindicar que políticas sanitárias aconteçam de forma planejada e que haja um debate na sociedade, como mecanismo de consumação de direito indispensável a todos os seres humanos, e não somente como ferramenta banal de perseguição em busca de vantagens governamentais.

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Sobre os autores
Karen Rosendo de Almeida Leite Rodrigues

ADVOGADA, PROFESSORA UNIVERSITÁRIA, PESQUISADORA

Edielson de Souza Vinente

GRADUANDO EM DIREITO DA UNINORTE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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