Família multiespécie e direito de família: uma nova realidade

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3 APLICABILIDADE DAS NORMAS DA PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS AOS ANIMAIS DE COMPANHIA

O capítulo XI do Código Civil de 2002 traz em seu corpo as normas disciplinadoras questões relativas a proteção da pessoa dos filhos, mais precisamente os tipos de guarda a serem exercidas pelos pais quando findado o casamento, a união estável e até mesmo as situações de filhos havidos fora de uniões.

Assim, além das normas previstas nos artigos, há a presença de princípios basilares que auxiliam o julgador no momento da decisão relativa ao destino do menor em disputa.

Entende-se por guarda em seu conceito mais singelo, a atribuição a ambos os pais ou a apenas um dos encargos de cuidado, zelo e proteção do filho, bem como preservar a continuidade da convivência (ROLF, apud, CHAVES, 2012):

Compete aos pais ter os filhos em sua companhia e custódia, e não meramente companhia física, mas uma relação de comunicação que englobe não apenas o espaço físico do filho em interação com seu genitor, mas que nesse ambiente também impere uma relação de afeto e de carinho unindo ascendente e filho com laços de verdadeira e ilimitada comunhão de um fraterno amor.  

Nesta linha de raciocínio, cumpre mencionar o principio que norteia toda e qualquer situação que envolva questões relacionadas a guarda de menores sob poder familiar, qual seja, princípio do melhor/maior interesse do menor ou principio do melhor interesse da criança e adolescente.

Preconiza tal princípio que qualquer decisão que tenha como ponto central questões que envolvam menores, deverá ser norteada pelo melhor e o que for mais conveniente a fim de que possa satisfazer suas necessidades e interesses. Ressalte-se que nas ações que envolvam guarda, o interesse do menor se posiciona hierarquicamente superior ao desejo e vontade dos pais, só assim será alcançado com integralidade a proteção dos direitos do menor. 

Trazendo para a questão que envolve guarda de animais de estimação, tais premissas não poderiam ser diferentes, visto que, quando da disputa judicial, o melhor interesse do animal deverá ser levado em consideração, ou seja, a proteção de seu bem-estar.

Assim, só será considerado atingido o princípio anteriormente citado, através da concretização do bem- estar do animal através de duas premissas: bem -estar físico e psicológico.

Em termos de bem-estar físico, englobam-se as necessidades de água, alimentação, passeios diários, saúde e um ambiente com espaço adequado para tamanho e peculiaridades de cada raça.

No que tange ao bem-estar psicológico, merece destaque o que segue:

O bem-estar psicológico do pet também deverá ser considerado na análise do seu bem-estar global. Pesquisas indicam que existem métodos científicos para determinação do estado emocional do animal, que utilizam processos comportamentais e biológicos. Standards comportamentais e hormonais servem para indicar se o bem-estar animal, em termos psicológicos, está sendo alcançado. Existem algumas sugestões de comportamento cuja presença ou ausência podem servir como indicadores de estados emocionais positivos ou negativos nos animais, como: comportamento brincalhão, aproximação de outros animais, automutilação, vocalização, comportamentos de coleta ou exploratórios, etc. Em termos biológicos, flutuações hormonais são indicativas de determinadas emoções. A presença, ausência ou nível de concentração de certos hormônios ou a medição de certos processos psicológicos podem caracterizar estados emocionais de um animal que é incapaz de comunicar verbalmente essas emoções. ( MCCLAIN, apud, LIMA)

Desta forma, o melhor interesse do animal possui algumas justificativas. A primeira pontua que os animais, assim como os humanos possuem inteligência e sensibilidade, na medida em são capazes de dar e retribuir afeto, sentir tristeza e até mesmo sofrer depressão (neste último, especialmente cães e gatos), merecendo destaque as palavras do médico-veterinário Luiz Fernando de Carvalho Bovolato:

Experiências traumáticas, perdas por morte ou abandono, introdução de um novo indivíduo sendo da mesma espécie ou não, mudança de ambiente ou mesmo de rotina subitamente, solidão, fome, frio, sede, dentre outras, são fatores que levam os animais a entrar em estado de depressão. Cada animal responde, diferentemente, de maneira individual ao fator exposto, independentemente da espécie, raça ou sexo.

A segunda, permeia sob o fato de que atualmente o número de animais de estimação nos lares supera o número de crianças . Ressalte-se que só no ano de 2016, no Brasil, 44,3% dos domicílios possuem pelo menos um cachorro e 17,7%, um gato, segundo matéria veiculada no jornal Estado de Minas no ano de 2016.

Sendo assim, a recusa por quem quer que seja em proteger os animais, que da mesma maneira que as crianças são indefesas e amados pelos seus tutores, permanece em um verdadeiro disparate com a realidade.

Um terceiro fator, encontra-se no fato do exercício da parentalidade na interação humano-animal diante de uma relação de cuidados e preocupações, tal qual com filhos humanos. Frise-se, como já falado, muitas pessoas optam por animais em detrimento da procriação.

Diante das justificativas acima apresentadas, parece no mínimo insensível, a postura de alguns aplicadores do direito em considerar o animal de estimação, tratado e considerado como filho, como mero objeto, sem levar em consideração todo afeto existente na relação.

Nesta linha de raciocínio, se considerarmos as várias formas de constituição de família todas protegidas pelo Estado, não poderíamos desprestigiar as famílias multiespécie, a atual concepção de família não permitiria. Assim, frente a inexistência de legislação própria que regule as relações entre animais de estimação e humanos, entende-se totalmente cabível as normas relativas a proteção da pessoa dos filhos aos animais de companhia, sempre de acordo com o melhor interesse do animal.

Impende destacar que tais normas carregam consigo a previsão dos institutos da guarda compartilhada e unilateral, sem prejuízo de outras também válidas, tais como a guarda alternada.

Merece destaque a importância da guarda compartilhada, na qual prevê, em medida de igualdade, o exercício do atributos do poder familiar, sendo de responsabilização conjunta tudo que envolva o menor. Sendo assim, é direito de ambos os tutores terem em sua companhia e convivência o animal de estimação em litígio e, de igual forma, dividir a responsabilização pelo mesmo.

Em contrapartida, a guarda unilateral será exercida por apenas um dos genitores, enquanto ao outro será concedido a regulamentação do direito de visitas. Esta, por sua vez, carrega em seu bojo o inconveniente de privar o menor da convivência contínua com um dos genitores, qual seja, aquele que detém tão-somente o direito de visita.

Existe ainda a modalidade de guarda alternada, onde a divisão de tempo em companhia entre o menor e os genitores é dividido de maneira igual ou de acordo com os interesses dos envolvidos.

Noutro giro, frise-se que ao contrário do humano, o animal de estimação nunca irá alcançar autonomia, sempre existirá, enquanto o mesmo viver, a inteira dependência deste para com seus tutores. Pressupõe, desta forma, que tal relação, qual seja, humano-animal, seja pautada no afeto, dedicação e diante de uma conduta humana responsável, a fim de proporcionar até o último dia de vida do animal, dignidade, proteção e bem-estar.

Ao aplicar o julgador o instituto da guarda, seja ela qual for, deverá o mesmo ter a sensibilidade necessária para fazer uso da melhor opção possível ao animal de estimação e aos tutores, a fim de que seja alcançado em sua plenitude o melhor interesse do animal de acordo com suas necessidades e adequações.

Por fim, diante da inércia do legislador em acompanhar as mudanças da sociedade, inexistindo, portanto, legislação específica que regule a situação em questão, pugna-se pela aplicação das normas da proteção da pessoa dos filhos aos animais de estimação, visto que os mesmos não podem ser visto como meros objetos suscetíveis a divisão patrimonial.


4 DA (IM) POSSIBILIDADE DE PENSÃO ALIMENTÍCIA AOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

A família, em seus contexto e com os avanços que passa, retrata a sociedade em que vivemos. Como já falado, o afeto parece ser a mola propulsora da família, sendo ele o elemento justificador para suas diversas formações.

Diante disto, o instituto da pensão alimentícia encontra seu fundamento primordial no princípio da solidariedade familiar, este ainda deriva da solidariedade social ancorado na erradicação da pobreza e da marginalização social.

Assim, a solidariedade no direito de família apregoa que a obrigação alimentar deriva de seus fundamentos, ou seja, no dever de prestar assistência a quem necessita dentro dos membros que compõem o núcleo familiar.

Os alimentos, portanto, englobam as prestações, pecuniárias ou não, a fim de garantir a subsistência digna de outrem que não pode prover por si só. Nas palavras de Cristiano Chaves (p. 760, 2012), " é possível entender-se por alimentos o conjunto de meios materiais necessários para a existência das pessoas, sob o ponto de vista físico, psíquico e intelectual".

Fundamentam-se, os alimentos, em duas premissas básicas: necessidade e possibilidade. A primeira representa a carência material de quem pleiteia. A segunda, por sua vez, a possibilidade de quem irá fornecer os alimentos. Tais premissas devem ser estabelecidas dentro da ideia de patrimônio mínimo, ou seja, dentro do que alimentante realmente necessidade  para evitar o enriquecimento sem causa.

Desta forma, estão aptos a pedir e prestar alimentos, os parentes, os cônjuges ou companheiros, do que necessitem para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

Diante, do assunto abordado no presente trabalho, importa destacar a previsão de alimentos devida aos filhos. Ressalte-se, que enquanto menores a necessidade de receber alimentos é presumida, enquanto maiores provada.

A obrigação alimentar dos pais perante os filhos decorre, tal qual o dever de guarda (engloba direito a companhia, cuidado e proteção), decorre do poder familiar, de manter integralmente a prole. Frise-se que essa obrigação não é perpetua, mas enquanto durar a menoridade ou a necessidade quando maiores.

Trazendo tais conceitos a relação humano-animal de estimação, de pronto destacamos que ao adquirir ou "adotar" um animal, o tutor ou os tutores, devem ter a ciência de que aquele animal irá depender até o último dia de sua vida de seu tutor, sendo que a necessidade do mesmo se perpetua ao longo dos tempos até o evento morte.

Em recente julgado, a 7ª câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de forma inusitada, determinou o pagamento de despesas no importe de R$ 1.050 (mil e cinquenta reais) por parte do ex-companheiro para animais de estimação adquiridos na constância da referida união. A convivência perdurou por 22 (vinte e dois) anos e ao longo dela foram adquiridos 6 (seis) animais, sendo cinco cachorros e uma gata.

A decisão trouxe a pauta acerca da possibilidade ou não do pagamento de pensão alimentícia para animais de estimação, visto que, como já mencionado anteriormente já vem sendo aplicados as normas relativas a guarda aos mesmos, numa espécie de garantir o regime de convivência entre os ex-casal e os animais dos mesmos.

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  Novamente, encontra-se a legislação atrasada quanto questões que envolvam animais de estimação e humanos, visto que inexiste qualquer legislação sobre, cabendo novamente ao judiciário o dever de dirimir tais situações da melhor maneira possível.

Quanto ao julgado, o réu que foi compelido ao pagamento, alegou, em suma, que os animais são de exclusiva propriedade da autora/ex-companheira, sendo descabido "encargo alimentício".

No entanto, não foi o que considerou o TJ-RJ. O mesmo sopesou que os seis animais foram adquiridos na constância da união e que os mesmos possuem elevada despesas e, portanto, não seria justo, impor somente a ex-companheira, "guardiã" dos mesmos o dever de custeio dos mesmos, visto que são em considerável número e um dos animais ainda faz tratamento de câncer por meio de quimioterapia.

A decisão, ao que consta, foi inédita, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o país. Em tempos remotos, jamais seria suscitada qualquer tipo de pedido como este pugnando por "pensão alimentícia" a animais, mas hoje, diante das mudanças nos núcleos familiares, a função dos mesmos foi modificada, com diversas finalidades.

Sendo, portanto, uma decisão de cunho peculiar, sem dúvidas terá o condão de criar precedentes por todo o país, não podendo ser descartada a possibilidade de novos casos.

A decisão pareceu pertinente quanto ao caso, na medida em que impôs a divisão das despesas dos animais entre os ex-companheiros, ressaltando que os animais não podem ser vistos como coisas ou propriedade de um ou de outro, mas sim como membros da família constituída por duas pessoas que os adquiriram quando a união permanecia feliz, não podendo os mesmos serem descartados da vida de ambos como objeto.

Mostra-se, portanto, totalmente cabível a utilização de algumas normas e preceitos da pensão alimentícia (humanos) aos animais, pois os mesmos necessitam de cuidados constantes, estes englobam despesas, tais como alimentação, médico veterinário, medicações, sejam de uso contínuo ou esporádico, vacinas anuais, vermífugos, tratamentos de saúde, dentre outras, devendo ser estabelecida a divisão destas despesas entre ex-companheiros ou casais divorciados que os adquiriram na constância da união ou casamento.

Frise-se que o quantum a ser fixado é outro ponto relevante, pois nem sempre o que detém a "guarda" é o que possui maiores condições financeiras, e nem sempre quem possui maiores condições deverá ter a guarda, tendo em vista o melhor interesse do animal, devendo-se equalizar a situação de maneira que não haja privação dos animais das necessidades básicas, muito menos agrida o patrimônio dos tutores a ponto de afetar a própria subsistência.

Assim, enquanto não sobrevier legislação específica quanto aos casos, contarão os futuros litigantes tão-somente com a sensibilidade e sensatez dos aplicadores do direito, na esperança de que vejam seus "filhos de quatro patas" como membros da família e não como simples objetos de valoração econômica sem qualquer valor sentimental para seus tutores. É o que se deseja.

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Sobre a autora
Maria Ravelly Martins Soares Dias

Sobral, Ceará; Advogada; Mestranda em Direito Privado (Centro Universitário UNI7); Pós-graduanda em Direito Civil (Damásio de Jesus); Especialista em Direito Processual Civil (Damásio de Jesus); Atuante na área do Direito Civil, especialmente Direito de Família.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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