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Democracia na UTI (respirando por aparelhos)

09/07/2018 às 11:15
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Governos sistemicamente corruptos, mais dia, menos dia, levam as nações e a democracia ao colapso. Governo pelo povo e para o povo, ou por força da “lei de ferro das oligarquias”?

1. Governos sistemicamente corruptos, mais dia, menos dia, levam as nações e a democracia ao colapso. Democracia é “o governo do povo [eleito pelo voto do povo], [exercido] pelo povo, de forma direta ou indireta, e para o povo” (Abraham Lincoln). Quanto mais a democracia esteja de acordo com esse paradigma (ideal), mais substancial e qualitativa ela é. Quanto mais longe disso, menos cidadã ela se apresenta.  

2. Governo do povo. Nossa democracia (Velha República, Democracia Populista e Nova Democracia) sem foi puramente formal. Na democracia formal, o povo, pelo voto, segundo Schumpeter, legitima alguns dirigentes políticos a tomarem decisões em nome dele (nisso residiria a “soberania do povo”).

3. Nas democracias formais, quando o voto, ou até mesmo o parlamentar, é comprado, ou quando a eleição é fraudada, fala-se em democracia venal. Esse é nosso caso. Os donos corruptos do poder (grandes empresas, bancos e corporações com acesso ao poder) financiam campanhas eleitorais (ilicitamente) e assim manipulam o parlamentar ou o governante em benefício dos seus interesses. Com o dinheiro do seu mecenas, frequentemente o político corrupto compra os votos dos eleitores.

4. Governo pelo povo. Por força da “lei de ferro das oligarquias” (Robert Michels, 1911), nenhuma democracia é governada diretamente pelos eleitores, que são representados por oligarquias (= governo de poucos). Trata-se de um elemento aristocrático dentro da democracia. Só raramente a democracia é exercida diretamente pelo povo (referendo ou plebiscito, por exemplo).

5. Dentro das oligarquias governantes e/ou dominantes há os honestos (donos do poder) e os desonestos (donos corruptos do poder). Esse segundo grupo é formado por uma facção delinquente ou aproveitadora que representa “um estado dentro do Estado” (Hobbes). Fazem parte de um tipo de “clube” com seus acordos expressos ou tácitos.

6. A facção criminosa ou espoliadora do dinheiro público (da população) constitui a espinha dorsal da nossa cleptocracia (cleptos = ladrão; cracia = governo). O Brasil, sem sombra de dúvida, é uma República Democrática Cleptocrata (que conta, preponderantemente, com um governo de ladrões, mas eleito pelo povo).  

7.  Se os que predominantemente nos governam são, ademais de ladrões, incompetentes, então também somos uma cacocracia (= governo dos piores). Os países governados por muitos ladrões e pelos piores contam com instituições (econômicas, políticas, jurídicas e sociais) muito frágeis. Os honestos e os melhores muitas vezes chegam a sentir vergonha dessas qualidades (Rui Barbosa).

8. Governo para o povo. O governo “para o povo” completa a noção da democracia de qualidade. O que significa isso? Uma célebre frase de Bentham resume todo esse pensamento da democracia liberal: “A maior felicidade para o maior número possível dos habitantes”. Numa cleptocracia oligárquica, nada mais irreal que isso. Nossos governos cleptocratas cuidam dos seus interesses, por meio do clientelismo, do patrimonialismo e do favoritismo, regidos pelo afeto e pela “cordialidade” de que fala Sérgio Buarque de Holanda.

9. Todo regime democrático venal (corrupto), oligárquico, cleptocrata, cacocrata e antiliberal sempre corre risco de ruptura. Dois fantasmas habitam, neste momento, as mentes dos brasileiros motivadamente revoltados com nossos governos corruptos: golpe militar e oclocracia. No Planalto, chegou pesquisa dizendo que 36% dos brasileiros desejam “intervenção militar”. O general Etchegoyen (ministro do governo) afirmou que “intervenção militar é assunto do século passado”. Mas fantasmas não morrem.

10. Oclocracia, que é uma das três formas deturpadas de governabilidade (tirania, oligarquia e oclocracia), significa “governo das multidões, das massas” (Wikipedia). Os governos populistas, onde um demagogo carismático combate as “elites governantes”, pregando a “unidade” da nação e soluções fáceis para problemas complexos, convertem-se em oclocracia quando as instituições governam ao sabor das emocionalidades, dos medos e das perplexidades irracionais das multidões.

11. Sob o jugo delas, o eleito (líder carismático) abandona a legalidade para se submeter à vontade suicida das massas. A oclocracia, em suma, pode ser definida como o abuso suicida que se instala em um governo eleito pelo povo; ela acontece quando a multidão, sem apego ao Estado de Direito implantado (às formas legais), se torna dona soberana dos destinos da nação, que passa a ser governada pela autofagia.  

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Democracia na UTI (respirando por aparelhos). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5486, 9 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67440. Acesso em: 21 nov. 2024.

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