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Ensino jurídico:

as dimensões entre as perspectivas e possibilidades de um modelo em transição e a trajetória para a (re)construção de um novo cenário

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21/05/2005 às 00:00

Resumo:


  • O ensino jurídico no Brasil é marcado pela expansão do número de cursos e pela necessidade de reformas que atendam às demandas sociais e à realidade contemporânea.

  • As diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos, estabelecidos pela Portaria 1.886/94/MEC e pela Resolução nº 9 de 2004, visam a formação de profissionais com sólida base teórica e prática, enfatizando a importância da pesquisa, da extensão e do estágio supervisionado.

  • A qualidade do ensino jurídico depende de um compromisso coletivo entre instituições de ensino, corpo docente e discente, visando a integração do conhecimento jurídico com a prática e os desafios sociais, econômicos e culturais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O estudo discute o papel do ensino jurídico na sociedade atual, especificando quais os meios de se desenvolver um processo de ensino de maior eficácia, condizente aos novos tempos.

Resumo: Os cursos jurídicos desenvolvem importante papel em todos os setores da vida social, através deles são formados profissionais que exercem forte influência, nas mais diversas atividades que organizam uma sociedade. A ampliação do número de Cursos de Direito e a grande quantidade de formandos que são colocados no mercado, caracterizam o ensino jurídico no Brasil. Diante desse cenário, o estudo contempla uma discussão sobre o papel do ensino jurídico na sociedade atual, especificando quais os meios de se desenvolver um processo de ensino de maior eficácia, condizente aos novos tempos. É uma constatação geral a importância dos cursos jurídicos, como é evidente a necessidade de resgatar a sua credibilidade, daí o pensamento de reforma. Assim, é necessária a reflexão proposta, para que se verifiquem as perspectivas de (re)construir o ensino jurídico. A contribuição deste trabalho está baseada na oportunidade de se discutir as formas de operacionalizar tal possibilidade, onde o desenvolvimento acadêmico, assim como, o próprio ensino jurídico, estão atrelado ao avanço do Direito em si, e por conseqüência, ao progresso da sociedade. Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado como método de abordagem, o dialético e como método de procedimento, o histórico e o comparativo. O corpo do texto está organizado em dois capítulos, o primeiro capítulo apresenta uma análise acerca da compreensão do ensino, a contextualização histórica em que se desenvolveu a evolução curricular, tratando, ainda, a crise do ensino jurídico no Brasil. A partir do segundo capítulo, a pesquisa limita-se à revisão da legislação em vigor, referente ao ensino superior em Direito, onde se evidencia a necessidade de haver uma reflexão efetiva sobre o papel dos agentes do ensino jurídico na (re)construção de um novo cenário, mais qualificado e comprometido com a realidade social. Dessa forma, os novos rumos impostos aos Cursos de Direito, voltam-se a três questões que enceram a discussão: produção científica, prática jurídica e extensão acadêmica. Assim, busca-se revisar as posturas que inibem a efetividade de um Curso de Direito, a partir das discussões traçadas neste trabalho, reconhecendo os limites impostos, será possível estabelecer um espaço para (re)pensar o perfil dos cursos e do profissional do Direito, para que a formação jurídica habilite a promoção de cidadania, com justiça, nas diversas carreiras jurídicas.

Palavras-chave: Ensino Jurídico, Cursos de Direito, Crise do Ensino Jurídico, Diretrizes Curriculares, Produção Científica, Prática Jurídica e Extensão Acadêmica.

Sumário: Introdução. 1. Compreensão do ensinar e a evolução do ensino jurídico. 1.1.Ensinar a compreensão. Compreender o ensino. 1.2.Concepções iniciais sobre ensino jurídico. 1.2.1. A transformação do ensino jurídico no Brasil: a criação. Os caminhos percorridos e a contemporaneidade. 1.3. A crise do ensino jurídico e a busca de suas diretrizes curriculares. 1.3.1. A crise estrutural: a estrutura axiológica entre os paradigmas político-ideológico e epistemológico do ensino jurídico. 1.3.2. Paradigmas curriculares. Administrativo e didático-pedagógico: a relação entre o conteúdo educacional e crise operacional. 1.3.3. Crise funcional: a problemática em torno da identidade e da legitimidade dos operadores jurídicos e o mercado de trabalho. 2. Perspectivas e possibilidades do ensino jurídico: o reinventar dos cursos de Direito e a composição de um novo cenário. 2.1. Diretrizes curriculares e/ou conteúdo mínimo: a (im)possibilidade de compreendê-los. 2.1.1. Comissões de ensino jurídico: discussões preliminares. 2.1.2. Portaria 1.886/94./mec: conhecer. Avaliar e aplicar. 2.1.3. Resolução nº 9: diretrizes ao ensino jurídico. 2.2. A (re)construção das profissões jurídicas: a modernização do direito e os novos rumos do ensino jurídico. 2.2.1. Produção científica: entender o Direito como Ciência. 2.2.2. Prática jurídica: um espaço para composição de conflitos. 2.2.3. Extensão acadêmica: um pensar além da sala de aula. Considerações finais. Referências bibliográficas. Anexos.


INTRODUÇÃO

O destino de uma Faculdade é o destino do Direito, a que ela serve.

San Tiago Dantas

Os cursos jurídicos desenvolvem importante papel em todos os setores da vida social, pois através deles são formados profissionais que exercerão forte influência, nas mais diversas atividades que organizam uma sociedade. A ampliação do número de Cursos de Direito e a grande quantidade de formandos que são colocados no mercado, caracterizam o ensino jurídico no Brasil.

No entanto, o aumento da procura pelos cursos jurídicos não significa uma maior eficácia dos direitos dos cidadãos ou que as Cursos de Direito estejam empenhadas em proporcionar condições de melhoria ao ensino jurídico. A situação que se observa está caracterizada por uma formação cada vez mais distante da realidade social, afastada da pesquisa, reproduzindo e não produzindo conhecimento.

O estudo contempla a discussão sobre o papel do ensino jurídico na sociedade atual, especificando quais os meios de se desenvolver um processo de ensino de maior eficácia, condizente aos novos tempos. É uma constatação geral a importância dos cursos jurídicos, assim como, é evidente a necessidade de resgatar a sua credibilidade, daí o pensamento de reforma. Assim, é pertinente a reflexão proposta, para que se verifiquem as perspectivas de se implantar uma reforma no ensino jurídico, que reabilite a dignidade política do Direito, colocando-o a serviço da democracia e da justiça social, e que atenda às exigências do mercado de trabalho, hoje saturado, mas em crescente diversificação.

A contribuição deste trabalho está baseada na oportunidade de se discutir as formas de efetivar tal possibilidade, onde o desenvolvimento acadêmico, assim como, o próprio ensino jurídico, estão atrelados ao avanço do Direito em si, e por conseqüência, ao progresso da sociedade. Assim, o estudo atende a linha de pesquisa do curso, Teoria Jurídica, Cidadania e Globalização, inserindo-se no eixo temático cidadania e acesso à justiça.

Como método de abordagem, optou-se pelo método dialético que ampara a pesquisa, quando se toma por base o ensino jurídico, compreendido no mundo como conjunto do processo, a partir da análise da crise, contrapondo-a à formação acadêmica e aos seus reflexos na prática preconizada pelo egresso. Nessa questão, encontra-se a contradição interna obrigatória para o desenvolvimento do estudo, associando-se à necessária interação com outros fenômenos.

Considerando a pretensão da pesquisa, utilizou-se, como método de procedimento, o método histórico, que age como instrumento para investigação de acontecimentos e processos que tenham influenciado o modelo atual de ensino jurídico. Ao se traçar perspectivas e possibilidades é pertinente, ainda, a utilização do método comparativo, por tratar o estudo de simetrias e diferenças entre objetos de uma mesma estrutura e de estruturas diversas. Fato que permitiu a construção de tipologias, que puderam proporcionar a sugestão de novas condições ao ensino jurídico.

A presente pesquisa está estruturada em dois capítulos. O primeiro capítulo apresentará uma análise acerca da compreensão do ensino jurídico, a partir da contextualização histórica em que se desenvolve a evolução curricular. Assim, será analisada a transformação do ensino jurídico no Brasil, entre os caminhos percorridos até a contemporaneidade.

Nesse contexto, verifica-se a crise do ensino do Direito, por conseqüência, serão estabelecidas as perspectivas e possibilidades para este ensino. A partir do segundo capítulo, o trabalho está limitado à revisão da legislação em vigor, como um dos mecanismos para qualificar a graduação em Direito. Para tanto, evidencia-se a necessidade de haver uma reflexão efetiva sobre o papel dos agentes do ensino jurídico na (re)construção de um novo cenário, mais qualificado e comprometido com a realidade social. Dessa forma, os novos rumos impostos aos Cursos Jurídicos, voltam-se a três questões que serão tratadas no texto: produção científica, prática jurídica e extensão acadêmica.

Diante do exposto, revisar as posturas que inibem a efetividade de um Curso de Direito é salutar para a busca da excelência no ensino jurídico. A partir das discussões traçadas neste trabalho, reconhecendo os limites impostos, será possível estabelecer um espaço para (re)pensar o perfil dos cursos e do profissional do Direito, para que a formação jurídica habilite a promoção de cidadania, com justiça, nas diversas carreiras jurídicas. Assim, diante da realidade social, a qual os Cursos de Direito estão inseridos, estabelecer uma relação entre os cursos jurídicos e a sociedade é elemento essencial para o entendimento desse estudo.


1. COMPREENSÃO DO ENSINAR E A EVOLUÇÃO DO ENSINO JURÍDICO

A compreensão de nossa ignorância não é um fator de imobilização, mas de fascínio com as possibilidades de sua superação.

Loussia Musse Felix

O ensino deve promover a inteligência geral apta a se referir ao complexo, de modo multidimensional e dentro da concepção global. O ensino jurídico, por sua vez, deve desenvolver um processo de ensino de maior eficácia, condizente aos novos tempos, capaz de desenvolver condições de humanização.

A construção do pensamento jurídico, assim como de qualquer formação científica, deve se valer de um processo contínuo, ininterrupto, mas antes, é necessário estabelecer o vínculo e o desejo de continuidade, fazendo com que os cursos jurídicos proporcionem espaço para o desenvolvimento de habilidades intelectuais compatíveis.

Este capítulo descreve algumas considerações a respeito do ensinar a compreensão, para que se prepare uma nova formação jurídica, fazendo menção a duas questões principais: a evolução histórica e a crise do ensino jurídico.

1.1 Ensinar a compreensão, compreender o ensino

O ensino por si só não faz parte de um sistema fechado, isolado. O papel que a educação exerce envolve uma série de fatores inerentes à condição humana. Ao se admitir a necessidade de (re)conhecer a diversidade cultural humana, deve-se, então, antes de qualquer coisa, buscar compreendê-la.

Conhecer o humano é situá-lo no universo, contemplando a idéia de que todo o conhecimento deve contextualizar seu objeto. Assim, "Quem somos?" é inseparável de "Onde estamos?", "De onde viemos?" e "Para onde vamos?". [1]

O desenvolvimento deste estudo, especificamente, no que se refere ao ponto a ser abordado, busca atingir uma reflexão sobre as questões colocadas anteriormente, ou seja, da necessidade de se compreender o ensino jurídico como um ente associado ao mundo, à realidade. O ensino jurídico e o questionamento que se pretende fazer a ele não podem estar fragmentados. Persiste, assim, o raciocínio de O que é o Ensino Jurídico?, Onde está o Ensino Jurídico? e Para onde vai o Ensino Jurídico?

Entre as questões referentes ao ensino, e em específico ao ensino do Direito, é pertinente a compreensão da interpretação da própria palavra ensino, mais restrita que educação, apesar de serem utilizadas em sentido equivalente. Assim, é necessário fazer referência entre o que vem a ser ensino e o que se entende como educação.

Através da educação, Eduardo C. B. Bittar diz que se envolvem todos os processos culturais, sociais, éticos, familiares, religiosos, ideológicos, políticos que somam para a formação e o desenvolvimento do ensino jurídico e das potencialidades humanas. Tais potencialidades podem ser psíquicas, físicas, morais, intelectuais por quaisquer meios possíveis e disponíveis, extraídos ou não do convívio social. Enquanto que o ensino é um capítulo da educação de uma pessoa. [2]

Nesse sentido, as práticas que caracterizam a formação jurídica, que irão preconizar as ações do egresso são desenvolvidas ao longo de sua trajetória, diante de vivências e experiências, principalmente, pessoais. Porém, é na academia [3] que ocorre a construção basilar de uma formação profissional.

Em conseqüência, Edgar Morin contempla que a educação deve promover a "inteligência geral", de modo multidimensional e dentro da concepção global. Acrescenta, ainda, que a educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais. [4]

O ensino exige a compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Assim, a mudança do mundo implica na dialética entre "a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação." [5] A partir desse raciocínio, Paulo Freire expõe que o caminho para a inserção implica em uma decisão, uma escolha, e por conseqüência, há a intervenção na realidade. [6]

O sentimento de mudança deve contemplar questões diversas da desesperança e da alienação do homem moderno, imerso num mundo que não consegue compreender. [7] A partir desse raciocínio, é papel do ensino jurídico desvendar os conhecimentos, "é preciso efetivamente recompor o todo para reconhecer as partes" [8]. Baseando-se na idéia de interdisciplinaridade, é necessário contextualizar, onde "o conhecimento das informações ou dos dados isolados é insuficiente. É preciso situar as informações e os dados em seu contexto para que adquira sentido". [9]

Diante das reflexões de Paulo Freire, o autor contempla esta questão, ao afirmar que "a pessoa conscientizada é capaz de relacionar fatos e problemas entre si, de compreender." Da mesma forma, tem uma compreensão diferente da história e do seu papel nela. "Recusa acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo." [10]

Para a compreensão do ensinar é necessário que antes se tenha o auto-reconhecimento como educador. Em contraponto, observa-se que o professor tende a reproduzir suas vivências, "tonalidades de sua formação geral" [11], na mesma proporção que os indivíduos não se apartam de suas características gerais, observa-se a simples reprodução dos conhecimentos.

As dificuldades práticas iniciam quando se busca trazer ao ensino jurídico o acervo reflexivo e necessário da Pedagogia. [12] Deisy Ventura defende o posicionamento que deve haver um resgate da consciência de que o ensino superior de Direito é, essencialmente, atividade de ensino; secundariamente, superior e de modo específico de Direito, trazendo a identidade do que se tem a ensinar. [13]

O posicionamento descreve-se, em conformidade, à lição de Edgar Morin, onde existe a necessidade de, proporcionalmente, recompor de forma efetiva o todo, para reconhecer as partes. [14] Assim, analisar o ensino jurídico, requer a compreensão do meio em que se está inserido, "a contextualização é condição essencial da eficácia". [15]

Ao concordar com esta suposição, encontra-se caminho a um (re)conhecimento das questões multidimensionais e complexas que envolvem, não só o problema do ensino jurídico, mas do mundo, que é a reforma do pensamento. A esta problemática, o autor confronta a educação do futuro. Partindo da reflexão de que existe uma inadequação, cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes desunidos, divididos, compartimentados e as realidades cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetárias. [16]

Edgar Morin não trabalha de forma isolada, pois não são poucos os doutrinadores que compartilham de suas idéias. Na crítica ao ensino jurídico, muitas vezes, é feito referência aos cursos jurídicos como deformadores, que tem por resultado apenas reproduzir conhecimento, não cedendo espaço à produção de novos conhecimentos. Porém, há que se fazer reproduzir, literalmente, os ensinamentos de Morin, no que tange à compreensão, ou melhor, há que compreendê-lo.

É preciso compreender e o meio para tanto é a interdisciplinaridade, por mais que esta não venha encontrando o espaço merecido, há de se criá-lo, pois a formação acadêmica deve passar por outras áreas do conhecimento. A crise do ensino jurídico é também a crise do Direito, estruturada a um Direito alienado da sociedade. [17]

Nesse sentido, até o momento, entende-se a necessidade da compreensão, através da ligação, a um só tempo, do meio e fim, ou seja, da relação entre o estudo das partes, como agente da recomposição do todo. A discussão a respeito do ensino jurídico, que se propõe estabelecer neste estudo, desenvolve o raciocínio de que o ensino do Direito é parte integrante dessa recomposição.

Entre as pretensões, está a recomposição, a (re)discussão. Se existe a inadequação entre os saberes desunidos e as realidades multidisciplinares, discutir uma parte (o ensino jurídico) é colaborar para a compreensão do todo, para que através das dimensões entre as perspectivas e possibilidades de um modelo em transição, possa-se (re)construir um novo cenário.

1.2 Concepções iniciais sobre a evolução do ensino jurídico

Os primeiros vestígios da humanidade em torno do desenvolvimento de habilidades intelectuais são encontrados já na antiguidade clássica. É na Academia de Platão [18] que se encontram as primeiras manifestações em torno do preparo intelectual e racional. Outro espaço de formação intelectual eram as reuniões científicas do Liceu de Aristóteles [19]. Essas escolas clássicas formavam os pensadores da época, que assumiam o papel de críticos de diversas atividades sociais, entre elas as jurídicas e políticas.

Os pensadores caracterizados, principalmente, por estas duas escolas que preconizavam os seus ensinamentos em prol das habilidades intelectuais, baseando-se na reflexão filosófica, marcam o ensino, dentre eles, o ensino do Direito. [20]

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O ensino jurídico, inicialmente, influenciado pela concepção filosófica, adquire, no decorrer da história, uma caracterização religiosa, na medida em que a hegemonia econômica, social, política e cultural romana, cedem espaço à dimensão da doutrina cristã [21]. Essa, mais tarde, é desestruturada pelo progresso científico e tecnológico, momento em que a razão assume uma maior valoração, desmistificando conceitos, até então, encarados como únicos e absolutos.

A concepção teológico-filosófica de Santo Agostinho, para quem o Direito é resultado da vontade divina, é substituída pela escolástica de São Tomás de Aquino, que tem o Direito como reflexo de uma ordem natural das coisas, questionável pela razão. [22]

Originariamente, as primeiras universidades [23] que se tem notícia são Concílio de Toledo, na Espanha, em 527, e Vaison, na França, em 529. As universidades surgem no momento em que reis e imperadores, especialmente, da França e da Itália, buscavam no Direito Canônico e Romano a fundamentação para as suas teses. [24]

O início do ensino jurídico, como delimita Mario Aliguiero Manacorda [25] teve seus primeiros ensinamentos na universidade de Bolonha [26], quando esta proporcionou o ensino do Direito Romano. Paralelamente, ao desenvolvimento do ensino em Bolonha, novas universidades surgiam, adaptando-se a novas técnicas e métodos de educação.

Assim, foram criadas na Itália, a Universidade de Pádua, em 1222 e de Nápoles, em 1224. Na França, as primeiras universidades foram a de Paris, no séc. XII, Montpellier, no término do mesmo século, Toulousse, em 1228 e Orleãns, no começo do século XIII. Salamanca, em 1215 e Valladolid, em 1260, marcaram o princípio da educação superior na Espanha, e Portugal, no ano de 1290, inaugurou a Universidade de Coimbra. Na América Latina, a primeira universidade que se tem registro é de 1538, na Ilha de São Domingos, onde Colombo desembarcou. Em 1553, foi fundada a Universidade do México e mais tarde foram criadas as universidades de São Marcos, no Peru, São Felipe, no Chile e Córdoba na Argentina. [27]

1.2.1 A transformação do ensino jurídico no Brasil: a criação, os caminhos percorridos e a contemporaneidade

Por mais que a Constituição de 1824 tivesse contemplado a expressão universidade, sua acepção inicial caracteriza-se em uma instituição medieval, com vestígios oriundos da antiguidade grega. Toda a sua contextualização histórica, suas transformações e suas características, há tempo tem sido objeto de estudos e análises ao desenvolvimento intelectual.

A universidade é uma instituição criada pela civilização ocidental e cujo nascimento se dá na Espanha, na Itália, na França e na Inglaterra, no início do século XII. No decorrer dos tempos, as universidades foram se estabelecendo, garantindo-se em uma concepção mais pragmática e profissionalizante. Nesse percurso, destaca-se o esforço das universidades na busca pela sua autonomia. De um modo geral, a autonomia das universidades se enfraquece na medida em que aumenta a sua dependência à Igreja e ao Estado. [28]

Contudo, as bases intelectuais européias tinham a Universidade como o melhor instrumento para deter, repassar e gerar o conhecimento. A Constituição Imperial do Brasil, de 1824, contempla pela primeira vez, junto ao Direito pátrio, a palavra Universidade, acreditando ser o meio ideal pelo qual se deveria transmitir o conhecimento científico no Brasil. Porém, não há, até 1920, nenhuma forma de ensino superior no Brasil que se caracterizasse como universidade. [29] Durante a Independência do Brasil, no ano de 1822, existiam 26 universidades na América espanhola, enquanto que nas colônias portuguesas não havia nenhum estabelecimento de ensino superior. [30]

Nos ensinamentos de Luiz Antonio Cunha, uma das hipóteses para não haver faculdades em território brasileiro, está associada ao bloqueio promovido por Portugal ao ensino superior no Brasil. Dessa maneira, a colônia seria incapaz de produzir sua própria cultura, sua ciência e suas letras. A obrigatoriedade de brasileiros cursarem o ensino superior em Portugal era uma forma de manter o vínculo de dependência. O governo português mantinha uma política de concessão de bolsas de estudo aos brasileiros que fossem estudar em Coimbra. [31]

No Brasil [32] os cursos jurídicos, mediante o projeto elaborado por Visconde de Cachoeira, em 1825, foram criados através da Lei de 11 de agosto de 1827. [33] Denominados de Academias de Direito, foram fundados dois cursos, o primeiro em março de 1828, com sede em São Paulo, instalado no Convento de São Francisco e o segundo localizado em Olinda, com sede no Mosteiro de São Bento. Na obra de Aurélio Wander Bastos [34], o autor expõe que o Estatuto de Visconde de Cachoeira estava baseado nos estatutos "luminosos" da Universidade de Coimbra.

No ano de 1854, os cursos foram denominados de Faculdades de Direito e o curso de Olinda foi transferido para a cidade de Recife. [35] A maioria dos autores que tratam o tema traz a idéia de que os cursos jurídicos nasceram ditados pela necessidade de estruturação de uma elite política.

Para Horácio Wanderlei Rodrigues [36]:

a criação dos cursos jurídicos no Brasil foi uma opção política e tinha funções básicas: a) sistematizar a ideologia político-jurídica do liberalismo, com a finalidade de promover a integração ideológica do estado nacional projetado pelas elites; b) a formação da burocracia encarregada de operacionalizar esta ideologia, para a gestão do estado nacional.

Quanto à concepção inicial implantada pelos cursos jurídicos no Brasil, pode-se dizer que aos poucos, a devoção às razões do Estado foi sendo substituída pela preocupação de se formar juristas voltados à ideologia jurídico-política do Estado Nacional emergente. [37]

Como explica Aurélio Wander Bastos a criação e a formação dos cursos jurídicos no Brasil estavam estritamente ligadas à consolidação do Estado Imperial, refletindo as contradições e as expectativas das elites brasileiras. Mais tarde, frente ao processo de independência, o ensino do Direito toma novas formas, a fim de compor os quadros jurídicos em desenvolvimento. [38]

A formação do bacharel revestia-se de grande importância, acompanhado do processo de independência do Brasil [39], investia-se no Direito como forma de legitimação da própria independência, visando assegurar garantias e direitos do Estado. [40]

O processo de independência do Brasil e os anos subseqüentes a esta, de fato, não marcam substancial diferença à organização do Estado nos tempos em que era colônia de Portugal. Sob esta ótica, os clássicos ensinamentos, referindo-se, em especial, a Nicolau Maquiavel [41], permitem verificar que a política leva em consideração uma natureza dos homens que para Maquiavel é "imutável". Assim, a história estabelece-se entre baixos e altos, mas seria sempre da mesma forma, ou seja, a vontade do "príncipe" prevalece sobre as dos demais.

No ano de 1831, o Decreto Regulamentar, de 7 de novembro, definiu um modelo para o ensino jurídico, a partir da sistemática curricular a ser proposta. Observa-se a tendência de incentivar o ensino do Direito Público e a Análise da Constituição, transparecendo a idéia de negar a dependência gerada pelo colonialismo português. No processo, ainda eufórico de independência, as bases do ensino do Direito não são tratadas. As duas principais vertentes da colonização do Brasil, o Direito Eclesiástico e o Direito Romano não são contemplados nos programas. [42]

A omissão das disciplinas que tinham estruturado o próprio Estado, agora independente, remete, novamente, a Maquiavel. Luciano Gruppi expõe que Maquiavel foi o primeiro a demonstrar como se constrói um Estado. [43] Dessa forma, o Direito tem o objetivo de compor os quadros administrativos, estruturar o Estado.

O Direito Eclesiástico, referência essencial da natureza do Estado Imperial, compunha o texto da Lei de 1827, e o Direito Romano, base referencial e hermenêutica do Direito Civil, especialmente do instituto da propriedade e da família, veio compor o currículo, apenas, com na reforma de 1851. [44]

O Decreto de nº 608, de 16 de agosto de 1851 trouxe, além do Direito Romano, a disciplina de Direito Administrativo, calcada no ideal de que era essencial à formação e preparação das elites administrativas do Estado Imperial. [45]

Acerca deste posicionamento, tem que se considerar que a formação jurídica no Brasil não contemplava uma preocupação condizente às necessidades sociais no sentido amplo. Observa-se, apenas, o interesse em formar o quadro administrativo, destinado a prestar serviços ao império, sem deixar que o ensino jurídico contemplasse outras questões, a não ser garantir os direitos do próprio Estado.

Em 1853, o Decreto nº 1.134 traz novas questões aos cursos jurídicos, não apresentando mudanças significativas, mas tenta consolidar os conteúdos das disciplinas de Direito Administrativo e Instituições do Direito Romano. Entre as principais diretrizes propostas, foram introduzidas as disciplinas de Direito Eclesiástico Pátrio e a disciplina de Direito Civil, atrelada ao Direito Romano, assim como, a disciplina de Hermenêutica Jurídica, que deveria, também, voltar-se a sua forma romana. [46]

No ano seguinte, foi promulgado o Decreto nº 1.386, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 1.568, de 1855. Na verdade, não foi feita nenhuma alteração substancial ao Decreto anterior, que efetivamente conduziu a orientação do ensino jurídico até 1879, quando ocorreu a Reforma do Ensino Livre. [47]

O debate acerca de um currículo ideal para os cursos jurídicos, parte de um modelo que pretenda esboçar o perfil do formando. O modelo curricular determina o perfil do acadêmico, na medida em que é a partir dele que se conduz a formação do profissional. Assim, as disciplinas que compõem o currículo devem estar guiadas pelo propósito do curso, ou seja, integradas ao tipo de profissional a que se visa formar. [48]

A concepção da formação dos cursos jurídicos no Brasil reproduzia de forma substancial o pensamento político e ideológico da época. O surgimento dos primeiros cursos jurídicos marca uma postura vinculada à formação da nova elite brasileira. No entanto, as Academias de Direito de São Paulo e de Recife estruturaram os primeiros conhecimentos jurídicos do país, convertendo-se nos centros irradiadores da cultura humanística.

A escola do Recife, voltada à superação do positivismo, assumiu a tarefa de restaurar a Filosofia como crítica do conhecimento e visou preservar a metafísica em oposição ao positivismo, este destacado pela escola de São Paulo. As linhas filosóficas das duas escolas eram distintas em suas finalidades. O perfil dos acadêmicos formados em Recife, era dirigido ao exercício da Magistratura, do Ministério Público e ao ensino do Direito. [49]

Os acadêmicos que se bacharelavam por São Paulo eram destinados a compor a elite política brasileira, a ponto de se denominar como, a República dos Bacharéis. [50] Na escola de Recife preponderava o estudo do Direito Civil, entre os seus principais juristas, Clóvis Beviláqua foi quem alcançou maior renome nacional, autor do Projeto do Código Civil de 1916.

Ao término do regime monárquico, em 15 de novembro de 1889, chega-se ao fim da primeira fase do ensino jurídico no Brasil. A formação jurídica, até então, atrelou-se ao pensamento humanista, voltada às concepções cristãs, com o fim de estruturar as práxis forenses e preencher os quadros administrativos da nação que se punha a emergir. [51]

Proclamada a República, novas perspectivas se estabelecem sobre os cursos jurídicos. Entretanto, diante da realidade que se punha às escolas de Direito, como reflexo da separação entre o Estado e a Igreja, a disciplina de Direito Eclesiástico foi excluída do currículo das duas academias de Direito da época. [52]

Contextualizado ao movimento feminista, o Decreto n. 3.903, de 12 de janeiro de 1901, determinou o acesso às mulheres aos Cursos de Direito. A reforma do ensino jurídico de Leôncio de Carvalho, em 1879, através do Decreto nº 7.247, que havia contemplado o ensino livre [53], marca a primeira grande expansão do ensino do Direito no Brasil.

O apogeu do bacharelismo cedia espaço às novas modalidades da profissão. Ao final de 1930, "como forma de garantia de sobrevivência política e de emprego" [54], a advocacia foi encarada como profissão autônoma. Desvinculou-se do Poder Público como a única fonte de sobrevivência dos bacharéis. Nesse cenário, foi criada a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) [55], implicando na regulamentação definitiva da profissão do advogado, limitando o exercício da profissão aos que possuíssem formação universitária.

A exigência da formação superior para o exercício da profissão de advogado vem contemplar a legalização e a legitimidade da atuação autônoma. Importante passo para que a mentalidade profissional atinja seguimentos desvinculados do Estado, conseqüentemente, a partir desse cenário, surgiu a OAB, que efetivou por vez a regulamentação profissional.

No processo histórico brasileiro iniciava-se uma nova fase, que iria perdurar até 1964, registrando-se acontecimentos e fatos marcantes à educação. De forma especial, os Cursos de Direito, mesmo após a Reforma Francisco Campos [56], em 1931, continuam caracterizando-se sob as concepções ideológicas do poder político, sofrendo, inclusive, alterações na grade curricular, a ponto de estruturar os cursos jurídicos de acordo com as imposições do Estado.

Nessa fase, o Curso de Direito foi desdobrado em graduação e pós-graduação, sendo este último, em nível de Doutorado. O intuito era de criar um curso regular de formação de professores, específicos para a área jurídica, dando-lhe uma estrutura acadêmica, coisa que não existia desde a fundação dos Cursos Jurídicos, em 1827. [57]

Foi um período de grandes conflitos ideológicos entre juristas e educadores. Entre os grupos considerados conservadores, estavam Francisco Campos, Haroldo Valadão e Gustavo Capanema e os de vanguarda, também denominados de esquerda progressista, tinham como precursores, Anísio Teixeira, Hermes Lima, Levi Carneiro e San Tiago Dantas [58]. O que vale dizer, aqueles eram os que davam sustentação à ditadura Vargas, imposta a partir do golpe de Estado de 1937, e estes os que se confrontavam contra ela, visando o retorno a um Estado Democrático de Direito. [59]

Estabelecia-se um confronto entre o ensino conservador, marcado pela universidade estatal burocratizada, defendida pelo regime autoritário e o moderno ensino reflexivo, que se voltava ao desenvolvimento do pensamento, onde o acadêmico pudesse discernir sobre os problemas e as soluções dos conflitos sociais de sua época.

Por mais que a história tivesse discorrido em favor aos novos tempos, mesmo após a proclamação da República, anos passaram-se, mas o profissional do Direito, ainda, sujeitava-se às concepções ideológicas do Estado, baseadas em um pensamento retrógrado e ultrapassado.

Esse período, marcou ao ensino jurídico uma fase com uma matriz curricular fechada e inflexível. A formação do jurista continuava dissociada dos problemas e da realidade social de seu tempo. Os Cursos de Direito não tinham a liberdade de elaborar um currículo que pudesse atender aos anseios e necessidades da evolução da sociedade, tendo em vista que imperava o modelo do currículo fechado, imposto pelo Estado. [60]

Percebe-se que da época do Império até a proclamação da República houve o processo de legitimação das profissões jurídicas. Enquanto o Brasil vive seu segundo processo de industrialização, no Governo de Juscelino Kubitscheck, os movimentos de operários entram em ebulição contra o capital industrial e o latifundiário explorador. Iniciam-se os primeiros confrontos sociais, e, mais tarde, já no Governo de João Goulart, no ano de 1964, a intervenção militar assume o controle da situação política do país. [61]

Nesse contexto, foi editada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº. 4.024/61, que veio a definir os princípios educacionais básicos para a educação da época. [62] Em 1972, estrutura-se um novo currículo mínimo para os Cursos de Direito através da Resolução nº. 3, do Conselho Federal de Educação, que vigorou até o advento da Portaria nº 1.886 [63], em 1994. Essa permitiu ao ensino jurídico, pela primeira vez, a flexibilização da matriz curricular, proporcionando adequação às necessidades do mercado de trabalho e às realidades locais e regionais. [64]

A educação superior no Brasil tomava nortes ainda não vistos em governos anteriores. Além de determinar novas diretrizes e a flexibilização curricular, o baixo índice de 10% de formação universitária no país, faz com que o Ministério da Educação e Cultura passe a ter como meta, elevar o índice educacional. Entre as políticas adotadas, uma maior flexibilidade para abertura de novos cursos superiores, com o intuito de aumentar o índice de acadêmicos nas faculdades brasileiras. [65]

Nesse período, ocorreu um aumento significativo de novos cursos, especialmente, os jurídicos. O Estado ao estipular o crescimento por si só, sem se preocupar com as condições que o cercam, não garantiu a efetividade do ensino. O tempo deixou esquecido os procedimentos e os métodos que pudessem contribuir à qualificação da formação jurídica, importante não só aos acadêmicos, mas como conseqüência, a toda sociedade.

No Brasil, atualmente, há aproximadamente 800 Cursos de Direito. [66] O descompasso entre a qualidade do ensino, contribui, a passos largos, ao desmerecimento das profissões jurídicas. A profissão de advogado, onde o status, dos tempos imperiais [67], foi substituído à marginalização [68] profissional, faz com que o acadêmico de Direito desvincule-se dos currículos tradicionais. Passa a ser função do estudante de Direito (re)construir o seu papel na sociedade. Daí dizer, o quanto é necessário adaptar o ensino jurídico à realidade e, então, efetivar a (re)construção não só do ensino deste, mas do próprio Direito.

Partindo de uma nova conjuntura, a Portaria nº. 1.886, editada em 1994, que, oportunamente, será trabalhada no próximo capítulo deste trabalho, contemplou significativas mudanças aos Cursos de Direito. Através dela se buscou readequar os currículos dos cursos jurídicos a uma nova realidade social, já integrada à globalização e aos novos recursos tecnológicos, entre eles, a informática.

O ensino superior em todo mundo passa por uma transformação. Mudanças ocorridas dentro da sociedade atingem uma velocidade tão grande, que as Instituições de Ensino Superior, apenas, tentam se adequar a elas, não conseguindo acompanhá-las em tempo hábil. [69]

Este novo contexto faz com que o profissional da área jurídica desvende novas habilidades. A lição de Sônia Maria Vieira Negrão contempla, que deve fazer parte do perfil do profissional do século XXI, as capacidades de liderança, confiabilidade, comunicação, ousadia, criatividade, habilidade para trabalhar em equipe, conhecimentos técnicos, aprender a aprender, profissional cidadão e empreendedorismo. [70]

É preciso destacar a necessidade de se estabelecer o conhecimento do conteúdo específico do Curso de Direito, mas um novo perfil requer habilidades múltiplas, pertinentes às exigências de novos tempos.

Assim, enfatiza Roberto A. R. de Aguiar [71] que, ainda, nos tempos atuais, é difícil estabelecer um perfil do ideal, sendo que este estaria sempre limitado à generalidade que caracteriza os cursos jurídicos e atende à demanda de sua clientela, o acadêmico de Direito.

1.3 A crise do ensino jurídico e a busca por suas diretrizes curriculares

Até o momento buscou-se tratar o ensino jurídico, limitando-se a sua evolução, deixando compreendido seu desenvolvimento histórico, bem como, a evolução curricular, desde sua criação, no ano de 1827, até a consolidação de suas diretrizes curriculares.

Realizadas as considerações gerais acerca da evolução do ensino jurídico, passa a ser pertinente o desenvolvimento detalhado da construção das diretrizes curriculares dos Cursos de Direito, especificamente, a organização que resultou na Portaria 1.886/94 MEC, que será objeto do capítulo seguinte. Para tanto, antecede esta questão, a análise da crise do ensino jurídico.

Ao tratar o ensino jurídico e a construção de suas diretrizes curriculares é necessário traçar um perfil da crise, a qual se encontrava a educação jurídica no Brasil no momento anterior à Portaria 1.886/94, e que em alguns pontos, ainda persiste. Nesse sentido, Horácio Wanderlei Rodrigues ao apontar possibilidades de superação da crise jurídica, contextualiza uma série de fenômenos, no quadro social, político e econômico que colaboram para a crise do ensino jurídico. O autor aponta três níveis do "aspecto múltiplo" da crise: a) nível estrutural; b) nível operacional e c) nível funcional, os quais se analisarão no decorrer do texto. [72]

1.3.1 Crise estrutural: a estrutura axiológica entre os paradigmas político-ideológico e epistemológico do ensino jurídico

A utilização da instância jurídica, ao longo dos tempos, atuou como um dos mecanismos pragmáticos e retóricos de solução das crises políticas, econômicas e sociais. [73] Diante desta situação, pode se ampliar e reforçar a crise do próprio Direito, o que permite verificar que o Direito, assim como, o ensino jurídico, não se compõem em crises próprias. Há que se considerar as particularidades e individualidades de cada seguimento, porém, não existe crise dissociada de uma crise geral, complexa. [74]

Por sua vez, a crise do Direito e de seu ensino no Brasil não é apenas interna. Ao se questionar a crise do ensino jurídico, deve ser considerada a crise do modelo político, social e econômico, que de forma cultural, tem na instância jurídica a pretensão de concretizar as suas deficiências, sobrecarregando-a e fazendo com que se pense que a crise pode ser apenas jurídica. "Os problemas e crises do sistema trazem desdobramentos em todos os subsistemas, entre os quais se encontram o educacional e o jurídico." [75]

O modelo de ensino adotado no Brasil, principalmente, em nível retórico, possui uma série de crenças, presentes no denominado paradigma liberal-legal, bem como, a idéia de contrato social como fato político fundamental de criação do Estado e determinação de direitos e deveres. Nessa concepção, defendida por Horácio Wanderlei Rodrigues, a falência do Direito seria a própria falência do Estado.

O Estado está atrelado ao Direito, fundado sobre as bases legais que garantem sua própria soberania, o que explica a interdependência de um para com o outro. Da mesma forma, fica esclarecida a necessidade do Estado estimular o ensino jurídico, em tempos imperiais, como forma de estruturar a administração dos serviços prestados por este, ou melhor, em favor deste, como já mencionado anteriormente. Assim, o ensino do Direito surge em via contrária, na medida em que carece de comprometimento com a justiça e a democracia.

Com o intuito de elucidar este posicionamento, para que se possa ter um ensino transformador, é pertinente que ele deixe de ser um aparelho ideológico do Estado, "mera instância reprodutora". O ideal pretendido volta-se à vinculação do ensino jurídico com a sociedade civil e não com o grupo que detém o poder. Existe a necessidade de (re)construção de um novo imaginário social, criativo e comprometido com valores de justiça e cidadania. [76]

Ao que versa sobre a crise do paradigma epistemológico [77], é oportuna a seguinte colocação "todo ato pedagógico está vinculado a um determinado paradigma de ciência". [78] O ensino jurídico, por sua vez, não é exceção à regra, sendo que ensinar direito é sempre ensinar uma das formas possíveis de ver e aplicar o Direito. "A educação é a descoberta progressiva de nossa própria ignorância". [79]

A realização da transposição do pensamento de Loussia P. Musse Felix e Horácio Wanderlei Rodrigues contempla a questão que a epistemologia é peça principal sempre que se tratar de educação. No sentido de que toda a ciência é um processo cognoscente que, através da utilização de um determinado método, produz um determinado objeto. Baseando-se nessa idéia, pode ser dito, que para mudar a estrutura do ensino jurídico, tem que se tomar como base a mudança do próprio conhecimento a ser transmitido e, consequentemente, o paradigma dominante de ciência.

Assim, mais uma vez, demonstra-se pertinente a compreensão de Horácio Wanderlei Rodrigues:

Modificar a ciência jurídica significa deixar de lado a atual estrutura de produção de saberes e substituí-la por outra. Para isso é necessária a mudança do método de abordagem utilizado no ato cognoscente, pois apenas dessa forma, pode-se descobrir novos aspectos do objeto e produzir novos conhecimentos sobre ele [...] Entretanto, não pode ser ela confundida com uma simples troca de paradigmas, uma mera permuta de verdades, retirar-se um dogma e colocar-se outro no seu lugar. Isso negaria a pluralidade de significações e a polifonia do real, não solucionando, portanto, a questão. O autoritarismo permaneceria. [80]

A crítica do autor é fundamental à mudança da estrutura do ensino jurídico. A necessidade de alteração do paradigma epistemológico não deve se pautar em uma simples troca de paradigmas. A quebra do dogma positivista contempla a construção de teorias críticas que condicionem o ensino às melhores formas de se aplicar o Direito, com base na compreensão e superação do ideal dominante. Assim, estaria sendo permitido o ato de criação, ou seja, (re)construção da atuação jurídica.

Diante do exposto, frente aos autores tratados, tem se concretizado a insatisfação com o atual modelo de ensino jurídico. Nesse contexto, permanece a discussão sobre reformas curriculares, que nunca se efetivam, apenas, despistam e tardam uma real mudança, ou então, encara-se uma revolução estrutural dos paradigmas epistemológico e político-ideológico, concretizando-se uma real readaptação do ensino jurídico.

1.3.2 Paradigmas curricular, administrativo e didático-pedagógico: a relação entre o conteúdo educacional e a crise operacional

Nem só de fatores ligados diretamente ao conteúdo educacional evidencia-se a crise do ensino jurídico. Existem fatores ligados à operacionalização das atividades educacionais que também implicam nessa situação. Entre as questões a se considerar, toma-se como referencial teórico a obra de Horácio Wanderlei Rodrigues em três questões principais: a crise administrativa, a didático-pedagógica e a curricular. [81]

Quanto à crise administrativa, observa-se que os níveis de administração são diferenciados, porém a crise organizacional compreende características similares em todos eles. No nível mais elevado está o Ministério da Educação (MEC), um dos responsáveis pela incontrolável proliferação de cursos, em especial, os jurídicos.

Ao ambiente administrativo das Instituições de Ensino Superior (IES) é necessário que se façam duas considerações, ao que se refere às peculiaridades das instituições particulares e das públicas. Nota-se que as administrações das IES, especialmente, em algumas instituições particulares, condicionam suas atividades ao rendimento financeiro. O número de vagas é ampliado de acordo com metas econômicas internas, transformando o ensino jurídico, muitas vezes, em fábricas de diplomas. [82]

No que tange às IES públicas, tem que se considerar não somente a administração interna, mas os diversos fatores externos, extremamente relacionados ao desenvolvimento de suas atividades. É o caso das relações de incentivos e verbas que se limitam à disponibilidade dos governos federais e estaduais.

Em relação aos níveis administrativos, outro fator que demonstra a crise, tem como base a administração dos próprios cursos. Horácio Wanderlei Rodrigues encontra o apadrinhamento como substituto da competência, que muitas vezes é fator determinante para a contratação de docentes e do próprio quadro administrativo. Esse último, muitas vezes, é composto por professores, que acabam cumprindo horas na área administrativa do curso, sem ter conhecimento técnico sobre as atividades desenvolvidas. [83]

Ao que se percebe, em muitos pontos se comprovam os problemas administrativos detalhados pelo autor, principalmente, os que se referem ao corporativismo dos professores, acobertando eventuais falhas e descasos que tenham. Não há como deixar de mencionar um dos mais graves problemas do ensino jurídico, que é o acomodamento dos acadêmicos, que aceitam passivamente o "pacto da mediocridade". [84]

Além dessas situações faz referência à cumplicidade do corpo funcional, que em troca de favores pessoais encobrem falhas e faltas docentes. Outra grande problemática, versa sobre a contratação dos docentes, já mencionada anteriormente, porém, importante que se faça a ressalva, que inúmeros são os profissionais jurídicos que ministram aulas de Direito, sem possuir preparo para o magistério. Entende-se que não basta o conhecimento teórico e/ou a prática como excelência, antes, de qualquer coisa, o professor tem que saber ensinar. [85] A sua atuação profissional, por mais brilhante que possa ser, não está, necessariamente, atrelada ao saber docente. [86]

Ao tratar sobre a crise didático-pedagógica, pode-se dizer que os professores, em geral, encaram com naturalidade a evidência de que ensinam através da simples transmissão dos conteúdos que aprenderam, sem ter de fato, "aprendido a ensinar". [87] A compreensão didática no ensino jurídico, salvo algumas exceções, vincula-se a mesma metodologia da época de sua criação. Em boa parte os professores não possuem nenhuma preparação didático-pedagógica [88] e se restringem, em sala de aula, a expor o ponto do dia e a comentar os artigos dos códigos, adotando um ou mais livros-base, que serviram para a elaboração das questões de prova [89].

O pensamento que não se deve preponderar é de que o ensino do Direito está resumido ao ensino de leis, o código comentado é apenas um momento e não o principal. A solução para toda esta problemática, para que não se fixe, apenas, na crise do ensino jurídico, encontra respaldo na idéia de um curso planejado, ou seja, uma estrutura de formação com início, meio e fim; com objetivos claros; com uma abordagem interdisciplinar; que não negue as práticas emergentes. Como bem sustenta Horácio Wanderlei Rodrigues, para que se possa falar em qualquer modificação estrutural deve haver a conscientização da necessidade de se rever o número de alunos por sala de aula, a disponibilidade de obras nas bibliotecas, a preparação didático-pedagógica adequada dos professores, maior dedicação dos docentes e discentes às atividades de pesquisa e extensão. [90]

Lúcida a colocação do autor, mas a crise epistemológica da dogmática positivista permanece diante desse quadro, o que se evidencia, sistematicamente, é a inter-relação dos diversos seguimentos em crise, como se um complementasse o outro. Dessa forma, as questões problemáticas não estão dissociadas, elas contemplam um todo. Assim, não bastam ações isoladas, as propostas devem integrar todas as áreas de um curso.

Por fim, ao se falar em crise didático-pedagógica, há que se fazer referência ao método. Nessa órbita, já nos primórdios do ensino, foi estabelecida a discussão em torno da retórica e da dialética. Horácio Wanderlei Rodrigues, mais uma vez esclarece, apontando a dialética como a melhor opção, já que atinge o Direito em sua totalidade, na medida em que não se restringe apenas a conhecer leis, mas sim, suas motivações e possibilidades de aplicação. [91] O caso concreto, por sua vez, amplia a possibilidade de aplicação do Direito.

Assim, sem que haja modificações concretas que oportunizem o entendimento do próprio Direito, que descaracterizem a concepção da dogmática dominante, limitam-se as possibilidades de (re)invenção dos cursos jurídicos.

Após a análise das crises administrativas e didático-pedagógicas, é importante refletir sobre a crise curricular. Quanto a essa questão, a grande maioria dos autores trata o currículo como o grande vilão do ensino jurídico. Ao longo dos tempos, a discussão funda-se, quase que preponderantemente, sobre a formação de uma matriz curricular ideal.

A discussão que permeia o currículo, de fato, não é a principal, ou pelo menos, não se resolve o problema do ensino jurídico com reformas curriculares isoladas. Se isso fosse verdade, os problemas já estariam resolvidos.

Ao se instituir um currículo, considera-se que através dele se deve dar organização formal à finalidade que se busca atingir. Primeiramente, é eficaz delimitar o que se deseja com os cursos jurídicos, qual o Direito a se ensinar, que tipo de profissional formar, qual o mercado de trabalho a se atingir e quais os componentes éticos da atividade jurídica que devem permear as atividades didático-pedagógicas. [92]

Para que não haja erro na formação curricular, tem que se adequar um currículo orgânico, dialeticamente integrado, na medida em que as disciplinas devam estar associadas ao fenômeno jurídico, ao mercado de trabalho e às necessidades locais e regionais em que o curso está inserido. Paralelamente, a criação de uma série de novas disciplinas não basta, assim como, é insuficiente ter no currículo disciplinas consideradas críticas, se não são abordadas como tal. Em verdade, o ensino jurídico, em geral, deve se comportar criticamente. [93] O currículo e sua dinâmica devem desenvolver as habilidades previstas no Plano Político e Pedagógico dos cursos.

Observa-se que as considerações são pertinentes, e entende-se que além das questões traçadas, o ensino, a pesquisa e a extensão fazem parte do raciocínio deste trabalho, devendo estar incluso na operacionalização de qualquer currículo. Assim como, a interdisciplinaridade deve contemplar as ações de um Curso de Direito..

1.3.3 Crise funcional: a (in)legitimidade dos operadores jurídicos e o mercado de trabalho

Os cursos jurídicos mantêm-se entre os mais concorridos. O vestibulando que busca a Faculdade de Direito está envolvido a uma série de perspectivas. O desejo por autonomia profissional, realização de justiça através de suas atividades e uma remuneração condizente com a realidade do trabalho, fazem parte de um quadro ilusório.

Nota-se que a autonomia profissional inexiste, a igualdade entre advogados, juízes e promotores é uma falácia e a busca da justiça esbarra em uma legislação material e processual, em parte ultrapassada, em um Poder Judiciário burocratizado, lento e algumas vezes corrupto. [94]

Nesse sentido, os anseios que encaminham o estudante ao Curso de Direito são, ao longo do curso, desmantelados pela realidade que os cerca. Da mesma forma, após a formatura, resta, em virtude da necessidade, adequar-se ao status quo, deixando de lado os ideais dos tempos de estudante, o que concretiza a crise de identidade. [95]

Quanto à crise de legitimidade, esta atinge, principalmente, juízes e advogados, atores de uma prática desvinculada ao comprometimento social. Fator que segundo Antonio Carlos Wolkmer compreende um novo paradigma de validade do Direito, passando pela análise, pela crítica e pela reelaboração do processo de produção das fontes jurídicas. Particularmente, as fontes informais produzidas por novos sujeitos coletivos de Direito materializam "interesses comuns, práticas sociais e carências emergenciais". [96] O operador jurídico, em regra, não consegue trabalhar com fontes não estatais e recusa-se a ver o Direito emergente das lutas de classes e movimentos sociais.

Sobre a crise de identidade e legitimidade, contempla Horácio Wanderlei Rodrigues, que quando se repassa ao ensino jurídico a parcela de culpa que o cabe, verifica-se que a "(de)formação" exegética e legalista dissemina falsas crenças em relação à realidade da profissão, constituindo elementos fundamentais à crise. [97]

Partidário a tais questões, o mercado de trabalho requer atenção como parte integrante desse contexto. Dessa forma, há que se considerar a falta de preparação profissional para o desempenho de uma série de novas atividades emergentes, bem como, das antigas que requerem um tratamento diferenciado, ou seja, uma readequação aos novos tempos.

Em contraponto, a crise do mercado de trabalho não é oriunda, apenas, do sistema educacional, fatores econômicos e a situação concreta de excesso de mão-de-obra são causas fundamentais. Há que se ponderar que a formação deve estar atenta à realidade, dessa forma, condicionar o acadêmico a enfrentar o excesso de mão-de-obra e os demais problemas externos, pertinentes aos tempos atuais, deve fazer parte da formação acadêmica.

Contudo, conclui-se, ao que versa sobre a crise do mercado de trabalho, utilizando-se novamente da colaboração de Horácio Wanderlei Rodrigues, que com muita propriedade expõe sobre as crises do ensino jurídico. Apresenta, então, o (re)pensar das diretrizes como fator de urgência à educação jurídica. Acrescenta que a qualidade do conhecimento (re)produzido não satisfaz a muitos setores da sociedade, encontra-se defasado, diante da realidade social e da ciência contemporânea. [98]

Nessa conjuntura, considera-se o grande número de profissionais que são colocados no mercado, que se depara com a realidade profissional. Espaços semi-saturados e preparação acadêmica deficiente, devido a um ensino desatualizado ao seu tempo e espaço, são características dessa crise.

Portanto, entre os diversos fatores que colaboram com a crise do ensino jurídico, é importante que se faça menção à crescente procura pelos Cursos de Direito, paralelamente, à incontrolável criação de novos cursos jurídicos e a crise do mercado de trabalho. "O quadro é crítico, as soluções propostas nem tanto". [99]

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Sobre o autor
Vitor Hugo do Amaral Ferreira

bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Franciscano, em Santa Maria (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Vitor Hugo Amaral. Ensino jurídico:: as dimensões entre as perspectivas e possibilidades de um modelo em transição e a trajetória para a (re)construção de um novo cenário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 689, 21 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6752. Acesso em: 22 dez. 2024.

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