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Direito patrimonial, por quê?

01/07/2000 às 00:00
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Bem observando a vida, as coisas acontecem em função do homem, encarado ora como ser, ora como detentor de bens, dono de vontades, indiferenças, enfim, como o centro mediato de destinação para o qual convergem esses movimentos que metabolizam a natureza. Assim se verifica, conseqüentemente, nessa ou naquela área das aspirações e necessidades humanas.

O Direito, como parte necessária na vida em sociedade, não foge à regra, mormente o Direito Civil que, sistematicamente observado, dá corpo à parte do ordenamento jurídico que trata das relações de natureza privada.

Desde os primórdios da humanidade, a vida em sociedade traz em seu contexto a disputa pelos bens, disputa essa que jamais se arredará, pelo simples fato de cada ser humano constituir um universo próprio de desejos maternais, donde a necessidade de regras gerais a estabelecer limites que possibilitem a não invasão dos direitos individuais.

Partindo dessa premissa, chega-se à conclusão que ao Direito somente interessa aquilo que suscita alguma mensuração de valor comercial, a esta reforçando o contundente patrimonialismo que motiva o nosso Código Civil, cujo espírito guarda coerência com a sua época (1916), quando imperava um regime capitalista colonial em que tudo o que se relaciona a direito privado gravitava em torno do patrimônio e, como tal, o homem se media por suas riquezas, por suas propriedades. A exemplo, os casamentos se convencionavam para a unificação, não dos sentimentos puros de um homem e uma mulher, mas dos nomes e dos patrimônios de suas famílias, constituindo-se os filhos de então, verdadeiras moedas de administração exclusiva dos patriarcas.

E por aí vai, recomeçando pelos institutos da tutela, da curatela e da ausência; pelo Direito das Coisas, onde se regulamenta a posse, a propriedade e suas formas de aquisição e perda, os direitos reais, tais como o usufruto, as servidões, o penhor, a hipoteca; passando pelo Direito das Obrigações, encerrando a codificação pelos dispositivos que regulamentam o Direito das Sucessões.

Analisando cada um dos dispositivos do Código Civil, percebe-se que, inobstante se destinem a traçar regras para possibilitar o equilíbrio da sociedade, por sua vez formada de seres humanos, o patrimônio é colocado de forma preponderante, como bem fundamental da vida, estando o homem em função deste, clarividenciando um conceito diferenciado sobre pessoa, uma pessoa que assim se reconhece pelo "ter", e que pode ser definida como "homem codificado".

Contudo, não há que se desconsiderar o homem real, o homem gente.

Quando se fala, por exemplo, em dignidade, em sentimento, amor, ódio, conhecimento, intelectualidade, desejo, indiferença, está se falando em valores intrínsecos do ser humano, em valores que constituem um patrimônio subjetivo, visualizado no mundo exterior apenas nas manifestações que cada pessoa, em determinados momentos, deixa livremente exalar de seu corpo, de seu espírito, de sua alma, mostrando-se como verdadeiramente é, mostrando-se exclusivamente "ser".

Essa criatura que detém em si qualidades próprias com as quais lhe proveu a genética, externadas nas cores e formatos dos olhos, nas texturas da pele e dos cabelos, nas curvas sinuosas do corpo, suaves ou não, na capacidade de amar ou odiar, dotada, pois, de estruturas física e espiritual, é o ser real, o homem na sua particular essência do ser.

Contudo, esse homem real não se restringe apenas e tão somente nos fatores ora exemplificados e que constituem, poderíamos assim dizer, a sua essência, mas abrange outros campos, necessários a dar sentido e objetividade à sua razão de ser, sendo tais, os elos que permitem a evolução do ser pelos caminhos da intelectualidade e da sociabilidade, possibilitando a sua interação com o derredor.

Isto posto, chega-se ao entendimento de que o homem é ser que se faz vinculado a dois mundos, o mundo natural, aquele relacionado estritamente à natureza, composto dos reinos animal, vegetal e mineral, onde se enquadra o homem genético, e o mundo cultural, consubstanciado pelas transformações realizadas pelo homem na natureza, onde se enquadra o homem social. (1)

Se, por um lado, o ser exclusivamente genético é dotado, ainda que vazia, da estrutura da razão (2), de se conceber seja digno, por só isso, de consideração e respeito; por outro lado, o ser social é o responsável pela evolução da humanidade e, portanto, razão imediata da constituição de normas, sendo de todo incontestável sua consideração, observando-se, porém, que sua viabilidade tem por base o genético.

O homem real, portanto, é esse todo, composto por fatores genéticos e sociais interdependentes e em constante movimento, sem universalidade absoluta conquanto é universo próprio, especial.

Pode-se, usando de uma classificação genérica, asseverar que o homem codificado é aquele que se constitui pelo patrimônio externo, enquanto que o homem real, aquele que se faz pessoa independentemente de sua capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações na ordem civil, é o constituído pelo patrimônio interno, inerente e próprio de cada pessoa.

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Dependendo de cada pessoa, de cada "ser", cada um desses patrimônios tem a sua valoração. Assim, o que é extremamente valioso para um, pode nada ou quase nada representar para outro. Contudo, para se expandir, se aperfeiçoar, servir, o "ser" necessita do "ter", ao passo que o "ter" somente terá sentido se existir em função do "ser".

Observe-se a situação de um idoso que viva solitário e na mais rudimentar condição material e que, apiedado por amigos que o desejam ver no conforto e, de certa forma, bem assistido, o encaminhe para um asilo. Ainda que na mais pura intenção de querer proporcionar o bem a tal pessoa, ao menos nos seus últimos tempos de vida, será que o bem verdadeiro estará mesmo sendo realizado? Meditamos pôr algum momento sequer, no sentido de bem avaliar o que, de fato, representa o bem-estar para essa pessoa, então, vista e entendida como "homem real"?

É preciso não se desconsiderar o fato perfeitamente possível de que a vida já lhe tenha proporcionado de acordo ao seu parecer as coisas materiais, tais como o trabalho, a serventia, a sensação palpável de ser útil materialmente à sociedade, coisas que o peso da idade, forçosamente lhe tirou, deixando-o apenas com os seus valores internos, com as suas vontades, com a sua visão experiente sobre a vida, essa mesma vida que se compõe de etapas, desde o florescer de expectativas até o esvair-se na desesperança.

Que valores preponderantes se-lhe afloram, então?

Aqueles que apenas nos parecem ser, pelo "ter", ou aqueles que, de fato ele tem, pelo "ser"?

É evidente que o extremismo de tais conclusões não é e nem poderia ser passivamente aceito pela sociedade. Cada ser humano, universo especial, à sua personalidade, angaria bens e acumula riquezas, buscando uma paz que requer, portanto, um consenso entre os interesses diversos. Inobstante suas dificuldades, é esse equilíbrio que deve ser viabilizado pelo direito.

Desde os tempos remotos até os nossos dias, tanto a forma quanto os meios de se fazer a sociedade decantada dos impasses resultantes dos litígios sofreram acentuada transformação, valendo ressaltar a sua ocorrência de forma progressiva, no sentido de cada vez mais se aproximar do valor denominado "justiça".

Nesse sentido, o que hoje se começa verificar é uma tendência de positivação desses valores intrínsecos do homem, contrapondo-se ao livre arbítrio do juiz. Atualmente os operadores do direito não podem, sob pena de incoerência às suas atividades ou, quando menos prejudicial, de incorrer em obsoletismo hilárico, interpretar e usar as leis de forma divorciada do mais puro espírito da Lei Maior, retrato formal da sociedade. Em outras palavras, o Direito deve estar para o homem no sentido de viabilizar a sua legítima evolução, e nunca, para forjar a sua história. Se, realmente legítima é a Constituição, somente será legítima a positivação do direito que estiver fundamentada no espírito e não simplesmente embasada nesse ou naquele artigo de seu texto.

Qualquer que seja, contudo, a forma a se adotar, é imprescindível repersonalizar o direito civil, acentuando a pessoa humana como homem real e não como ser abstrato, sob pena de robustecer o pecado do dogmatismo. Isso é assim, porque tem que ser assim!

Ora, as coisas mudam, alguns direitos perecem, outros surgem, os conceitos se purificam, o homem caminha, evolui em si e na sociedade, movimentando e transformando esta. Questões novas e nunca dantes imaginadas, hoje surgem aos montes e com velocidade informatizada. Eis aí o mundo deslizando ladeira abaixo e o Direito preso aos dogmas. Porque, então, não se pode, também, repensar os fundamentos do ordenamento jurídico, do homem, enfim?

Diante de tais avanços é necessário que o direito civil também assim o faça. Mas que avance não só na elaboração de tantas quantas novas leis se reclame, sendo de vital importância os avanços no que diz respeito aos fundamentos que há séculos vêm embasando seu espírito. Hoje, mais do que nunca, o Direito há de ser verdadeiramente dinâmico, haja vista que o homem, a tecnologia, a sociedade, enfim, assim o são.

Quando se grita pelo homem real, não se está clamando por desconsiderar o patrimônio, mas sim, buscando um equilíbrio e uma coerência entre proposta e objetivo. Tanto quanto nascem leis protetivas ao homem, emergem, também, as que tratam dos assuntos patrimoniais, e com justificadas e atuais razões. Um repensar que cogita até a descodificação, tampouco deve ser interpretado com radicalismo tal, uma vez que as fontes positivas referenciais haverão de sempre subsidiar o direito especializado. Contudo, distancia-se cada vez mais a possibilidade de concepção de Código que regulamente a totalidade de relações jurídicas, posto que dinâmicas, tanto no seu existir quanto na sua essência.

De todo o exposto, é inarredável que tenhamos a consciência da impossibilidade de radicalismos, mesmo porque, nem é isso que se pretende, porém, é necessário que o Direito observe, na sua evolução, não apenas a evolução objetiva da sociedade, mas, principal e preponderantemente o que o ser humano tem de essência, tornando-se este a razão da existência daquele.


NOTAS

(1) SECCO, Orlando de Almeida. Introdução do Estudo do Direito. 3ªed.rev. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995. p.18-19.

(2)   CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6ªed. São Paulo: Ática, 1995. p.78.

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Sobre o autor
Dário do Amaral Trachta

acadêmico de Direito na UNOESTE - Presidente Prudente (SP), cartorário em Batayporã (MS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRACHTA, Dário Amaral. Direito patrimonial, por quê?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/678. Acesso em: 26 dez. 2024.

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