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Quanto mais comportamentos tipificados penalmente, menor o índice de criminalidade?

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30/05/2005 às 00:00
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5 Conclusão

É imprescindível que reste diáfano que o Estado não pode punir todo e qualquer comportamento sob ameaça de pena. A lei deve definir como crimes aquelas condutas que a sociedade efetivamente reprova e, em razão disso, requer sejam reprimidas com as sanções mais graves. Não podemos deixar que os meios de comunicação maculem o Direito Penal, tornando-o um instrumento de vingança, além de banalizá-lo.

A inflação legislativa de tipos penais não reduz a criminalidade, reforçando, ao contrário, o sentimento de impunidade. A denominada inflação legislativa vai, no máximo, conseguir dilacerar o princípio da dignidade humana, entre outros, na medida em que a pena criminal estará sendo colocada na vitrine para ser utilizada indiscriminadamente, bem como causar o descrédito do próprio Direito Penal, que vai, a cada dia, se vulgarizando.

No estágio atual, não podemos desvincular da idéia de que quanto mais tipos penais são criados, quanto mais se recrudescem as penas, quanto mais se delimitam as garantias individuais, mais normas são infringidas e mais os cárceres se abarrotam.

Os adeptos da ideologia "Lei e Ordem", não estão vendo a multiplicação dos crimes hediondos (seqüestro, latrocínio, roubo relâmpago, homicídios, tráfico de drogas, etc.), muito menos a proliferação de pequenos delitos que sustentam os outros maiores. Ignoram que a lei penal, por si só, jamais irá desmantelar esse estado paralelo que afronta a autoridade pública e incomoda a população. As "vitórias" conquistadas em Nova Iorque, se devem muito mais as políticas sociais, que valorizaram o trabalho dos policiais, combateram as drogas e colocaram a política urbana em pauta, e não pelo aumento das leis e das penas.

A Criminologia Moderna, como bem ponderou Molina, enfoca o delito sob uma ótica mais complexa e humana, sendo um fenômeno social comunitário, e só pode ser controlado quando o Estado e a comunidade unem-se em torno de programas bem elaborados. [36] É preciso que a política criminal do país cuide de implementar não só a reforma das leis, mas, e principalmente até, a reforma das instituições públicas que devem interagir, enquanto aparelhos de contenção, na luta contra a criminalidade.

Não podemos aceitar que no afã de combater e extinguir o delito, filosofia penal vencida e ultrapassada, novas leis seja incessantemente editadas, entrando em vigor na mesma data de sua publicação. Tais leis, como bem disse Damásio, que são feitas a granel, não possuem técnicas, formando um emaranhado confuso e contraditório. Assim, "devido à restrita eficácia da pena e, também, a sua novicidade, deve-se dedicar maior atenção a prevenção do delito através de meios de política sociais, policiais, legislativos e técnicos. [37]" Resta cristalino, com isso, que não se pode sustentar que a luta contra a criminalidade é uma missão exclusiva do Direito Penal.

Urge retomar o caráter de intervenção mínima e última do Direito Penal, que foi concebido desde 1789, pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual determinava em seu art. 8º: "A lei apenas deve estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias..."

A sanção penal não pode ser considerada mais como solução de todos os conflitos sociais. O endurecimento da pena (Direito Penal do Terror), por sua vez, não representa, assim como o aumento de leis penais, prevenção. Não é a falta de lei que fomenta a criminalidade, e muito menos a não severidade das penas.

Becarria já discorria sobre a ineficácia de tipificação de inúmeras condutas: "Se são proibidos aos cidadãos muitos atos indiferentes, não tendo esses atos nada de prejudicial, não se previnem os delitos...Desejais prevenir crimes? Fazei leis simples e evidentes." [38]

Por tudo isto, e mais inúmeras argumentações que escaparam desse estudo, é que devemos aceitar sem ressalvas as palavras de Zaffaroni: "O sistema não resolve os conflitos. As penas e a principal das penas, ou seja, aquela de cadeia, de prisão, está a reproduzir a freguesia da própria cadeia...o sistema mata, tortura, seqüestra, fere, reproduzindo a freguesia das gaiolas e o pessoal do sistema." [39]


6 Bibliografia

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ZAFFARONI, Eugênio Raul. Função da criminologia nas sociedades democráticas. Trad. Augusto Monte Lopes. Fascículos de Ciências Penais. SAFE. Porto Alegre, v. 2, n. 11, p. 163-176, nov. 1989.


Notas

1 Roxin, Claus. Que comportamento pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. Seminário de Direito Penal Econômico, Porto Alegre, mar. 2004.

2 DA SILVA, Paulo Roberto. Penitenciarismo x Reabilitação penitenciária: uma realidade social. São Paulo: Faculdade de Direito, 2000. p. 20. Tese (mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Universidade de São Paulo, 2000.

3 FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 4.

4 ROXIN, op. cit., nota 1.

5 ROXIN, op. cit., nota 1.

6 ROXIN, op. cit., nota 1.

7 Luisi, em sua obra Princípios Constitucionais Penais (1991, p. 28) atribuí a Francesco Carnelutti a expressão inflação legislativa, ao comentar sobre o exagerado aumento do número de leis penais, ocasionando o rebaixamento de sua eficácia na prevenção geral.

8 TORON, Alberto Zacharias. Prevenção, retribuição e criminalidade (o "tao" do direito penal). Fascículos de Ciências Penais, SAFE. Porto Alegre, ano 6, v. 6, n. 3, p. 4, jul/ago/set. 1993.

9 LUISI, Luiz. Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: SAFE, 1991. p. 27.

10 TOLEDO, Francisco Assis de. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 5.

11 FRAGOSO, op. cit., p. 276, nota 3.

12 FRAGOSO, op. cit., p. 276, nota 3.

13 Atualmente, a finalidade da pena deve ser essencialmente ressocializadora, seja pela intervenção no infrator, seja por vias alternativas à intervenção penal (Molina; Gomes, 1997, p. 486).

14 ROXIN, Claus. Problemas atuais da política criminal. Revista Ibero-americana de Ciências penais. CEIP. Porto Alegre, ano 2, n. 4, p. 11, 2001.

15 Neste ponto cumpre ir mais além. Entendemos que, como já dissemos alhures, há diversos fatores contribuindo para o aumento da criminalidade e da violência no Brasil, porém, segundo Paulo de Mesquita Filho, é possível identificar três perspectivas analíticas principais: econômica, política e social. A econômica se cristaliza na pobreza, na desigualdade e nos conflitos entre classes. A política se materializa no enfraquecimento das instituições estatais e das organizações policiais. A social pontua no sentido do enfraquecimento dos direitos civis e dos direitos humanos. Ou seja, há um nítido esquecimento das medidas sociais, como programas voltados às famílias, que, por conseguinte, acaba refletindo nas duas outras perspectivas.

16 JESUS, Damásio E. de. Diagnóstico de legislação criminal brasileira: crítica e sugestão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Revistas dos Tribunais. São Paulo. ano 3, n. 12, p. 111, out./dez. 1995.

17 A respeito da Lei de Crimes Hediondos, merece ser destacado que, segundo os dados do censo penitenciário de 2002, 23% dos presos no Brasil foram condenados por um dos crimes desta lei. Esse fato fez reacender a discussão sobre a eficácia de leis severas, sendo cogitado, pelo Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, a reformulação da lei, em virtude de não reduzir a incidência de crimes e contribuir para a superlotação do sistema penitenciário (Folha de São Paulo, 11 ago. 2004, p. c3).

18 TOLEDO, op. cit., p. 5, nota 10.

19 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais. p. 335.

20 Kelling e Wilson sustentavam que se uma janela de uma fábrica ou de um escritório fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se importava com isso e que, naquela localidade, não havia autoridade responsável pelo manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras para quebrar as demais janelas ainda intactas. Logo, todas as janelas estariam quebradas. Agora, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém seria responsável por aquele prédio e tampouco pela rua em que se localizava o prédio. Iniciava-se, assim, a decadência da própria rua e daquela comunidade. A esta altura, apenas os desocupados, imprudentes, ou pessoas com tendências criminosas, sentir-se-iam à vontade para ter algum negócio ou mesmo morar na rua cuja decadência já era evidente. O passo seguinte seria o abandono daquela localidade pelas pessoas de bem, deixando o bairro à mercê dos desordeiros. Pequenas desordens levariam a grandes desordens e, mais tarde, ao crime. (RUBIN, 2003).

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21 Transcreveremos um texto elaborado pela ONG "Sou da Paz", que nos parece muito oportuno: "Imagine que um bandido está na janela do seu carro prestes a cometer um assalto. Será que ele assaltaria se a pena para roubo fosse 6 anos de cadeia e não assaltaria não se a pena fosse 10 anos? Com certeza, nesse momento, o fator

determinante não é o tamanho da pena. Provavelmente esse assaltante cometeria o crime de uma forma ou outra, pois a chance de ser preso é mínima. Assim, é a certeza ou não de ser punido o que estimula ou desestimula o crime e não o tamanho e a dureza da pena."( http://www.soudapaz.org).

22 MOLINA; GOMES. op. cit., p. 313, nota 19.

23 JESUS, op. cit., p. 109, nota 16.

24 Não podemos esquecer que nos últimos anos a polícia tem matado cada vez mais, chegando nos últimos meses a marca de 70 pessoas por mês em SP e o crime não diminuiu. (dados da ONG "Sou da Paz").

25 ROXIN, op. cit., p. 14, nota 14.

26 Podemos citar a obra Espaço Urbano e Crriminalidade, de Wagner Cinelli de Paula, que relata a experiência positiva da Escola de Chicago de Sociaologia Urbana, que apontou e combateu os efeitos colaterais da urbanização/industrialização, sobretudo a criminalidade resultante da marginalização urbana (favelas e guetos).

27 MESQUITA NETO, Paulo de. Crime, violência e incerteza política no Brasil. Caderno Adenauer II. São Paulo. n. 1, p. 13, mar. 2001.

28 JESUS, op. cit., p. 111, nota 16.

29 JESUS, op. cit., p. 111, nota 16.

30 VELOSO, Roberto Carvalho. A crise do sistema penitenciário: fator de introdução, no Brasil, do modelo consensual de Justiça Penal. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 65, mai. 2003. Disponível em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=4088>. Acesso em: 25 ago. 2004.

31 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1992. p. 34.

32 TOLEDO, op. cit., p. 5. nota 10.

33 É claro que a educação deve ser encarada como prioridade, mas dentro de um conjunto. Pois, o problema da criminalidade não pode ser resolvido simplesmente através da melhoria da educação e da redução da pobreza. É preciso melhorar ainda a qualidade dos serviços de segurança e justiça, entre outros. Ou seja, não cabe aqui uma visão simplista.

34 DA SILVA JUNIOR. Walter Nunes. Direito penal e a criminalidade. Justiça Federal do Rio Grande do Norte. 19 maio 2000. Disponível em: Acesso em: 05 jul. 2004.

35 Os dados do referido censo encontram-se no site: http://www.pca.com.br/censofunap/Censo%20Penitenciario/

36 MOLINA; GOMES. op. cit., p. 473, nota 19.

37 ROXIN, op. cit., p. 14, nota 14.

38 BECARRIA, Cezare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hemus, 1983. p. 92-93.

39 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Função da criminologia nas sociedades democráticas. Trad. Augusto Monte Lopes. Fascículos de Ciências Penais. SAFE. Porto Alegre, v. 2, n. 11, p. 171, nov. 1989.

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Sobre o autor
Clovis Alberto Volpe Filho

advogado em Franca (SP), mestre em Direito Público pela Unifran, professor da pós-graduação em Direito Penal da Unifran

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOLPE FILHO, Clovis Alberto. Quanto mais comportamentos tipificados penalmente, menor o índice de criminalidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 694, 30 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6792. Acesso em: 24 abr. 2024.

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