Desafios e perspectivas dos direitos humanos em uma jurisdição global

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3. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DE IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE 

3.1.UNIVERSALISMO X RELATIVISMO CULTURAL

    A tônica da problemática dos direitos humanos é que eles tanto se reconhecem no campo local quanto global, de maneira cosmopolita. Para Boaventura, enquanto os direitos humanos forem considerados universais permanecerão agindo como um localismo globalizado (“uma forma de globalização de cima-para-baixo”, como mecanismos de “choques de civilizações”, isto é, como artifício do Ocidente contra o restante do planeta)[28].

A conceituação dos direitos humanos como universais e indivisíveis tomou corpo com a Declaração de Viena de 1993, como citado alhures. Porém, ainda muito se discute a respeito do universalismo como característica peculiar aos direitos humanos. E começaremos a debater os desafios pelo impasse que persiste entre universalistas e relativistas que asseveram diversas críticas ao universalismo, dentre elas a de que tratar todo indivíduo de forma genérica infringiria os particularismos culturais de cada povo.

Desta forma, a discussão entre universalistas e relativistas revive a própria fundamentação dos direitos humanos: por que temos direitos? As normas de direitos humanos podem ter um sentido universal ou são culturalmente relativas?[29]

Os universalistas enxergam os direitos humanos como consequência da dignidade humana, tão-somente pela condição de ser pessoa. Já os relativistas entendem que os direitos humanos estão associados às particularidades vivenciadas por cada sociedade, atreladas, indissociavelmente ao sistema político, econômico e cultural, social e moral vigente de cada sítio. Para este último, não existe uma moral universal, diante da pluralidade cultural que fabrica suas próprias crenças e valores.

Com efeito, os relativistas defendem que os universalistas buscam implantar uma noção de dignidade humana ocidental, incompatível com a cultura islâmica, por exemplo. Pois, ao asseverar que o homem tem direitos pelo simples requisito de ser pessoa, atrai para si uma visão antropocêntrica, voltada unicamente para o homem em si, passando a ideia de que todo direito para ser legítimo precisa servir à pessoa, noção esta incompatível com o povo mulçumano que professa o islamismo como fé, e que apreende em sua doutrina que o homem é um representante de Deus e que, portanto, deve balizar-se por meio de seus valores espirituais, condizentes com o Alcorão[30].

“A posição do ser humano como representante de Deus, os valores espirituais que devem guiar sua vida e o significado e o propósito espirituais de sua existência na terra proporcionam a razão de ser para o estabelecimento de um vínculo de irmandade com o resto da família humana. Isso, e apenas isso, constitui a essência da unidade no islã, uma unidade fundamentada na fé, fé em Deus, o Deus único de toda a família humana, de todo o universo.”.[31]

Sob essa óptica de que é a universalização reportada aos direitos humanos reproduz os direitos humanos com base nas experiências ocidentais, traduz, em outras palavras, impor direitos locais (do Ocidente) como universais.[32]

Percebe-se patente os embates culturais quando, questões, tida por legítimas, como por exemplo, a clitorectomia[33], a desigualdade entre os sexos, os casamentos arranjados tornam-se incompatíveis com o preceituado nas Cartas de Direitos.

Ainda questiona-se que os direitos humanos devem são catalogados para a proteção de um homem abstrato, descontextualizado de seu meio. Os relativistas afirmam que o homem tem que se ligar a uma identidade com um povo, é esse elo que irá caracterizá-lo (língua, costumes, valores, comportamento social, etc).

Por último, os relativistas alegam que a baixa representatividade das nações em adesão a Declaração do Homem e a ausência de políticas públicas comprometidas com a efetivação desses direitos prejudicam a realização de um universalismo em concreto, fora do mundo ideal. Nessa toada, muitas vezes os direitos humanos são violados por escassez de recursos, gerando várias violações aos direitos sociais (esta questão será melhor abordada no item 3.4)

Em contrapartida, os universalistas afirmam que os relativistas, em nome da cultura e dos particularismos escondem sérias violações a direitos humanos. Aduzem também que o fato da proteção universal dos direitos humanos terem iniciado no Ocidente são significa que só esteja relacionado a este campo de incidência, reportando-se mais a um dado histórico.

Doutra banda, alegam que a afirmação relativista de que os direitos devem guardar identidade com uma comunidade específica e suas características, podem soar como autoritarismo, capaz de reprimir a liberdade, ocultar as desigualdades e promover a subjugação.

Também evidencia-se que mesmo em uma determinada sociedade não se encontra homogeneidade cultural capaz de embasar os argumentos dos relativistas, pois mesmo em um núcleo social existem pluralidades e dissensos capazes de minarem a paz social e a construção de certos valores comuns.

Nesse sentido, em posição intermédia, Boaventura de Souza Santos argumenta em favor de uma concepção multicultural de direitos humanos, inspirada no diálogo entre as culturas, a compor um multiculturalismo emancipatório[34].

Para ele, “os direitos humanos têm que ser reconceitualizados como multiculturais. O multiculturalismo seria pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo.” [35]

O autor defende, ainda, a necessidade de superar o debate entre universalismo e relativismo cultural a partir da transformação cosmopolita dos direitos humanos. Ao passo que todas as culturas possuem noções diversas de dignidade humana, todas incompletas, deveria fomentar a consciência dessas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um diálogo intercultural. A formação de um conceito multicultural dos direitos humanos estaria relacionada com um diálogo intercultural.[36]

Nessa perspectiva, necessário se faz a construção de valores universais que tutelem a condição humana em geral, com balizas mínimas de convivência social na diversidade. Não se cuida de impor aspectos ocidentais ao restante do mundo, mas de acreditar na capacidade que só o dialogo intercultural possa concretizar os direitos humanos.  

3.2. LAICIDADE ESTATAL X FUNDAMENTALISMOS RELIGIOSOS

O segundo desafio que se coloca está intimamente ligado ao primeiro, no que pertine à manutenção de particularidades e identidades de um povo, no caso a religião.

Como é sabido, a crença em uma força superior sempre esteve presente na história da humanidade, desenvolvendo-se e passando por várias fases de entendimento, liberdade e consciência religiosa. Este desenvolvimento nunca foi linear, ao revés, sempre variou em conformidade com a liberdade de pensamento e dos costumes de cada nação.

Flávia Piovesan afirma que “o Estado laico é garantia essencial para o exercício de direitos humanos, especialmente nos campos da sexualidade e da reprodução”.[37]

Com efeito, a opção pelo Estado Democrático de Direito faz-nos crer na separação do Estado da religião, a fim de evitar certos preceitos morais injustificáveis ao equilíbrio de uma sociedade aberta e plural.

Nessa medida, ao passo que o Estado busca a laicidade visando resguardar os princípios da igualdade e da separação de poderes, inclusive através de ações afirmativas, é, também o momento em que se observa um processo inverso, quando a religião, através de seus líderes fundamentalistas tentam eleger-se e aplicar seus valores religiosos de forma a impor suas crenças à toda a população, desrespeitando as minorias e afrontando a laicidade estatal, é o que ocorre por exemplo com as bancadas religiosas no legislativo no Brasil.

Outro enfoque, ainda sobre o tema é dado no contexto europeu, na análise do julgamento pelo TEDH no caso Sahin v. Turkey (Decisão n. 2004-505 DC, de 19.11.2004). De fato, no que concerne a multiplicidade de constitucionalismos europeus, exige-se do Tribunal dos Direitos do Homem, uma postura flexível ao julgar com força vinculante, em casos que envolvem diversas autocompreensões e países com culturas distintas[38].

Cuidou-se de uma estudante de medicina, chamada de Leyla Sahin, que foi proibida, através de uma circular emitida pela Faculdade de medicina de Cerrahpasa na Universidade de Istambul, de frequentar aulas e eventos de seu curso quando estivesse a usar seu véu islâmico, símbolo de sua religião mulçumana, sob o argumento de secularismo adotado pelo Estado da Turquia. Após inúmeras punições de cunho disciplinar, Leyla Sahin, recorreu ao Tribunal Administrativo de Istambul que considerou as medidas cabíveis e não ilegais. A partir desta decisão, a aluna recorreu ao TEDH contra o Estado da Turquia, afirmando ter seus direitos de liberdade religiosa, de pensamento, crença e à educação, assegurados pela CEDH.

 Diante desse caso concreto, o TEDH, entendeu que, particularmente, no caso da Turquia em que há o convívio de várias religiões, e que o Estado tem uma maior preocupação de resguardar o secularismo a fim de promover a paz social, aquele Tribunal foi favorável a Turquia, pois percebeu a necessidade de preservar o princípio do secularismo do Estado, promovendo um diálogo entre as fontes.

Caminhando na mesma direção, mais recentemente, foi à decisão no caso Dogru v. France[39], em que uma mulçumana francesa que estudava no liceu e a partir de 1999 passou a usar um véu islâmico, recusando-se a retirá-lo para as aulas de educação física. Fato este que ocasionou a sua expulsão da escola. Tal decisão foi mantida pelo diretor dos serviços de educação, pelo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Administrativo de Nante, para onde foram interpostos recursos, sem êxito, pois consideraram a atitude da aluna desmedida em face ao direito de liberdade religiosa. Persistindo em recorrer, a aluna interpôs recurso para o Conselho D’Etat, sob a alegação de flagrante violação de seus direitos de liberdade, de convicção e de expressão, porém, seu pedido fora julgado improcedente. Nesta esteira, como último instrumento, a autora pleiteou junto ao TEDH, arguindo a violação do art. 9°. da CEDH (liberdade de pensamento, de consciência e de religião).

Atente-se para o fato do primeiro caso francês a versar sobre o uso “véu islâmico” em colégios públicos ocorreram em 1989. Foi neste ano que foi emitido parecer do Conselho D’Etat (n°. 346.893) aduzindo que “o princípio secular na escola pública é uma dimensão concretizadora do princípio da separação entre Estado e Igreja”, sendo uma exigência, a imparcialidade dos docentes e dos currículos escolares no que concerne à liberdade de consciência dos estudantes”. Com o passar do tempo e a “uniformização de condutas administrativas”, admitiu-se a utilização de alguns símbolos religiosos pelos alunos, desde que não interferissem na ordem pública e tampouco pusesse em causa o funcionamento regular das atividades ministradas no âmbito escolar.

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Logo após, fora aprovada pelo Parlamento francês a Lei n°. 2004-228 (Lei do Secularismo). Todavia, o TEDH alegou que no momento da interposição do recurso ainda não havia sido publicada a referida Lei. E ressaltou, também que “os valores do pluralismo e da democracia requeriam um diálogo social promotor da interculturalidade”, admitindo que a Constituição Francesa, assim como a Turca (Caso Leyla Sahin), ratificaram a secularidade como um princípio fundamental, o que se somava ao fato da decisão tomada pelos demais Tribunais não serem desproporcionais, pois tinha a finalidade de tutelar à neutralidade no meio público, além de proteger a saúde pública, já que o uso do véu serviria como escusa para não praticar os exercícios físicos. Por todo o exposto, o TEDH entendeu que não houve violação ao art. 9°. da CEDH.

Em ambos os casos analisados, na arena europeia, percebe-se uma nítida intenção em preservar o secularismo, a fim de promover a paz social, mormente pelo contexto cultural dos países envolvidos, em que se observam tensões latentes sobre a temática religiosa. Nesses julgados, percebe-se, por fim, a vontade do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em sacrificar certos direitos humanos e fundamentais ao indivíduo, para resguardar um bem maior, a paz social.

Sem dúvida, o maior desafio que o tema enfrenta é a extirpação de toda e qualquer forma de discriminação por intolerância religiosa, devendo-se ampliar as interpretações religiosas sempre com respeito aos direitos humanos.[40]  

3.3.DIREITO AO DESENVOLVIMENTO X ASSIMETRIAS GLOBAIS

O direito ao desenvolvimento[41] está correlacionado com as dimensões culturais, sociais e de estabilidade econômica que uma sociedade conseguiu atingir. Para que haja direitos econômicos e sociais faz-se necessário constituir leis e políticas sociais agregadoras.

O direito ao desenvolvimento traduz-se, nas lições de J.J. Canotilho[42] a capacidade da liberdade igual. ”Liberdade igual” significa, por exemplo: não penas o direito a inviolabilidade de domicílio, mas o direito de ter casa; não apenas o direito à vida e integridade física, mas também o acesso a cuidados médicos; não apenas direito de expressão, mas também a possibilidade de formar a própria opinião; não apenas direito ao trabalho e emprego livremente escolhido, mas também a efectiva posse de um posto de trabalho. Busca-se em verdade o acesso a oportunidades.

Nessa esteira, ensina-nos Celso Lafer, que os países em grau de desenvolvimento, almejam formar uma identidade cultural própria, através de direitos de identidade cultural coletiva, como o direito ao desenvolvimento.[43]

Foi nesse contexto que em 1986, a ONU adotou a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento[44], no qual obteve 146 países signatários, com o voto contrário dos EUA e oito abstenções, tendo como objetivo a importância da participação, da justiça social e da necessidade de adoção de programas e políticas públicas com a cooperação internacional[45]. A noção que esta declaração busca implementar, deve-se manter como um “instrumento vivo e dinâmico”[46] apto a dar soluções aos problemas experimentados na atualidade.

A participação, como destaque ao componente democrático, capaz de direcionar a concretização de políticas públicas. Tendo na sociedade civil, um poderoso agente, ansioso por maior transparência, democratização e accontability na organização do orçamento público e na regulação de políticas públicas[47].

A tutela aos programas de políticas públicas e inclusão social com o intuito de promover a justiça social, para além da cooperação internacional.

Nas palavras de Piovesan, “Em uma arena global não mais cingida pela bipolaridade Leste/Oeste, mas sim pela bipolaridade Norte/Sul, abrangendo os países desenvolvidos e os em desenvolvimento (sobretudo nas regiões da América Latina, Ásia e África), há que se demandar uma globalização mais ética e solidária.” [48]

Assim, na visão de Amartya Sen, o direito ao desenvolvimento deve ser interpretado como um “processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir”.[49] E para tanto, deve-se incitar os Estados à aderirem ao Protocolo Facultativo[50] do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como um contributo à acessibilidade desses direitos e promoção do desenvolvimento em âmbito local, regional e global.

Para além disso, temos nas agências financeiras internacionais (BANCO MUNDIAL e FMI) importantes agentes fiscalizatórios das políticas monetárias e cambial, que tem o papel de colaborar com o desenvolvimento humano, na medida em que analisam os impactos que as políticas econômicas podem vim a ter em determinada zona, principalmente, atento às flutuações e fluxos de capitais que destroem empresas e até economias estatais em segundos, com a globalização dos mercados. Devemos nos afastar dos paradoxos entre a inclusão, nomeadamente da efetivação dos direitos humanos e da exclusão promovida pelo FMI, ao passo que a condicionalidade de suas políticas aplicadas a países em desenvolvimento para “ajustes estruturais” não condizem com políticas de desenvolvimento dos direitos humanos[51].

Não podemos nos olvidar ainda, da participação do setor privado na consecução desses objetivos, uma vez que, são eles os maiores beneficiários da globalização, devendo sim, manter uma postura de responsabilidade social quanto às políticas públicas e de incentivo à promoção do desenvolvimento humano e sustentável da sociedade.

Por último, o Brasil reporta na própria Constituição o direito ao desenvolvimento e a colaboração do Estado no raio de ação dessas políticas, como principal promotor desse desenvolvimento, estabelecendo, inclusive, a necessidade de intervenção estatal para assegurar os meios de promoção dessas políticas e da economia, respeitando o cunho social, possibilitando ao Estado intervir na economia, sempre que necessário a resguardar os interesses sociais, coletivos  e nacionais legítimos.[52]

 Em última análise, o direito ao desenvolvimento busca garantir, na esfera local e internacional, um ambiente propício à expansão das potencialidades dos indivíduos, através da tutela dos direitos humanos e das liberdades e garantias fundamentais. 

3.4.PROTEÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS X GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA

Em sequência e na linha da Declaração Universal dos Diretos do Homem, são constituídos dois pactos, em 1966, um visando à proteção dos direitos civis e políticos e o outro a promoção dos direitos econômicos, culturais e sociais. É bom que se diga que tais pactos devem ser observados como uma unidade, consoante o princípio da indivisibilidade reza.

Para alguns, os direitos civis e políticos gozariam de autoaplicabilidade, enquanto que os direitos sociais, culturais e econômicos não, pois, estes dependeriam de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado, que por sua vez, tem as suas limitações, principalmente, orçamentárias.

Não obstante o peso dessa argumentação, a verdade é que tanto os direitos sociais quanto os civis e políticos implicam em obrigações positivas e negativas ao Estado. Pois todos os direitos tem custos. O que não impede o dever de observância do mínimo essencial à realização plena da dignidade humana. O maior óbice encontrado, de fato, é definir este mínimo existencial, se é um valor apto a quantificar a sobrevivência do indivíduo ou uma quantia ajustável a condicionar uma vida com a garantia de todos os direitos humanos básicos a uma vida com dignidade (como por exemplo: saúde, educação, moradia, vestimenta, acesso à cultura, etc)

Primorosa é a assertiva J.J. Canotilho neste sentir: “O princípio da proibição do retrocesso social já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite  núcleo essencial realizado”.[53]

Outrossim, não podemos nos olvidar dos reflexos negativos da economia neoliberal frente a concretude dos direitos fundamentais em um Estado Social. Como dito,  “Os direitos tem custos”, para que haja a concretização de direitos fundamentais, faz-se mister que o Estado tenha suporte econômico para garanti-la, assim, com a globalização cada vez mais difundida e a “fuga de capital”, os Estados remanescem sem aporte financeiro, fato gerador da “epidemia social” e crise financeira que assola a Europa neste momento, por exemplo, gerando o suposto fim do Estado Social. “O paradigma de que o Estado deve enxugar cada vez mais”[54], leva-nos a crer que o Estado deixou de ser o “referente exclusivo da efetivação dos materiais constitucionais”[55].

Em outras palavras, mesmo que as Cartas de Direitos abarquem cada vez mais “direitos” e os tribunais constitucionais e supranacionais tentem efetivar tais direitos, os desafios propostos pela economia, talvez sejam os obstáculos mais complicados de se superar.

A 'globalização' nada mais é que a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida.” Os Estados não têm recursos suficientes nem liberdade de manobra para suportar a pressão — pela simples razão de que “alguns minutos bastam para que empresas e até Estados entrem em colapso”[56].

Atento à conjuntura de desmantelamento das politicas públicas sociais em face dessa avassalora transformação, há que se redefinir o papel do Estado sob o impacto da globalização econômica. Há que se fortalecer a responsabilidade do Estado quanto  à concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais[57]. “Caminhos podem e devem ser buscados para que o Estado assegure o respeito e a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma a preservar condições para uma economia de mercado relativamente livre. A ação governamental deve promover a igualdade social, enfrentar as desigualdades sociais, compensar os desequilíbrios criados pelos mercados e assegurar um desenvolvimento humano sustentável. A relação entre governos e mercados deve ser complementar[58].”

            Em remate ao tema, Suzana Tavares da Silva, compreende que o papel do Estado Social em tempos de globalização modificou-se, em suas palavras:

 “Os conceitos de Estado Social, Estado de bem-estar e Estado e serviços são hoje distintos, mas complementares, continuando todos eles a revelar que o conceito de Estado Social é um lugar-comum onde confluem realidades distintas legitimadoras da intervenção pública nas áreas económicas e social. O Estado Social existe para cuidar dos interesses dos cidadãos, embora a forma dessa intervenção se tenha alterado substancialmente com a mudança de paradigma económico. Mas existe também uma mudança do paradigma da Política, na medida em que o Estado Social deixa de ser um território de afirmação de ideologias políticas e passa a constituir, na sua reconstrução pragmática fortemente arreigada a um neoconstitucionalismo sustentável, um núcleo de tarefas públicas consentâneas com o desenvolvimento económico-social vigente.”[59]

Assim, percebe-se que com a globalização o papel do Estado se transformou. Agora, ele é mais um ator, dentre tantos outros a buscar satisfazer as políticas públicas e sociais, da forma mais ampla possível, a fim de garantir uma existência condigna e com igualdade de acesso às condições de bem estar e prestações sociais a todos os cidadãos. 

3.5.  RESPEITO À DIVERSIDADE X INTOLERÂNCIAS  

A tutela efetiva dos direitos humanos passa não apenas por políticas universalistas, mas específicas, com o fito de salvaguardar categorias mais vulneráveis, enquanto seres que sofrem as piores exclusões.

A primeira versão de proteção dos direitos humanos foi tratada de forma genérica, com base em uma igualdade formal, a fim de expressar o medo da diferença que no nazismo havia sido orientada para o extermínio. Todavia, percebe-se que é insuficiente tratar o individuo de maneira geral e abstrata. É preciso delimitar o sujeito de direitos, ou determinadas violações de direitos que exigem uma resposta pontual e particularista. Assim, as mulheres, as crianças, os afrodescendentes, os migrantes, as pessoas portadoras de deficiências, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser analisadas sob à óptica de suas peculiaridades.

É crucial observar que para além do direito à igualdade, está o direito à diferença, coberto pelo mesmo manto fundamental. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.

Para Nancy Fraser[60], a justiça exige, concomitantemente, redistribuição e reconhecimento de identidades.

Na mesma linha, Boaventura aduz que somente com a imposição do reconhecimento e da redistribuição se realiza a igualdade. E considera: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.[61]

Com efeito, não se cuida mais de aplicar a igualdade material aristotélica, em que se trata “os iguais na medida de suas igualdades e os desiguais na medida de suas desisgualdades” , mas, o desafio torna-se bem mais peculiar e requer uma sensibilidade latente para aplicar medidas diferentes em situações iguais ou de tratar de forma igual situações diferentes. Isto se observa por exemplo no caso do casamento e de adoção por homossexuais, ou na tutela de famílias monoparentais; ou quando admite-se o divórcio somente para alemães e não admiti-lo para as imigrantes mulçumanas para respeitar a sua cultura, embora esteja sobre o abrigo da mesma legislação dentro do país acolhedor.[62] 

 Nessa toada, torna-se clarividente a necessidade de reprimir  toda e qualquer forma de discriminação, seja ela através de: racismo; sexismo; homofobia; xenofobia; etc. Buscando alcançar duas vertentes: a primeira um foco repressivo que puna a discriminação e a intolerância, e a segunda através de medidas que visem promover a igualdade[63].

E Maria Benedita Urbano conclui que: “Esta nova função de ão discriminação, de integração e de tolerância enquadra-se bem na trilogia apresentada por Denninger – segurança, diversidade e solidariedade – complementar à trilogia da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). A qual, por sua vez, consubstancia uma concretização dos novos valores pós-modernos como o pluralismo (ou poliformismo), o multiculturalismo e a inclusividade.”[64]

3.6. COMBATE AO TERROR X PRESERVAÇÀO DE DIREITOS E LIBERDADES PÚBLICAS

Como resguardar a “era dos direitos” em tempos de terror? Após o onze de setembro, o perigo iminente que se observa é que o embate contra o terror interfira nos séculos de lutas e conquistas sociais para assegurar direitos, liberdades e garantias, sob o pretexto da segurança máxima. “O que mudou com o terrorismo global não foi a intensidade da ameaça, mas sim a vulnerabilidade da organização social[65]”.

Baldassare[66] chega a comparar os ataques de 11 de setembro aos EUA ao atentado em Sarajevo, no começo do séc. XX, que esteve na ordem de fatores que ocasionaram a Primeira Guerra Mundial, comovendo esforços de nações em diversos continentes.

Devemos observar que, diferentemente dos conflitos que marcaram o séc. XX, agora, a (in) segurança não advém da conquista territorial, mas resulta da falência da proteção de certas liberdades e garantias fundamentais.

Se olharmos para a filosofia dos EUA pautada no unilateralismo, nos ataques preventivos e na hegemonia o poderio militar norte-americano. E analisarmos as consequências se um dos 200 Estados que compõem a ordem internacional resolvesse agir da mesma maneira, celebrando o mais puro hobbesiano “estado de natureza”, em que guerra é o termo forte e a paz se limita a ausência de guerra[67].

Pesquisas apontam para as terríveis consequências advindas da guerra contra o terror, na  agenda mundial de proteção à ataques terroristas e evidentemente restritiva de direitos e liberdades, com a adoção de legislações contra o terror, aplicação de pena de morte, discriminações insustentáveis, afronta ao principio do devido processo legal, extradição sem garantias de direitos, restringindo direitos, como a liberdade de reunião e de expressão[68].

Não podemos nos curvar a esse quadro de incertezas e de comprometimento de nossas liberdades e garantias fundamentais em detrimento de uma suposta segurança contra um “inimigo dos EUA”. A segurança não pode está condicionada ao sacrifício dos direitos fundamentais. “A luta antiterrorista e o respeito dos direitos do homem são não apenas compatíveis, mas o segundo é uma condição de aceitabilidade e de eficácia do primeiro[69]”.

Em verdade, alguns mecanismos foram criados a fim de coibir atos e práticas suspeitos de terrorismo, tais como instrumentos processuais, tribunais de exceção, tortura, prisões arbitrárias e  tratamentos cruéis e degradantes, tudo, embasado no Patriotic Act , lei estadunidense constituída para validar toda espécie de conduta do Estado sob o argumento de proteção contra o terror, sem qualquer restrição na esfera de liberdade do cidadão, seja ele americano ou não, aplicável a qualquer pessoa que os EUA entendam como “suspeito”.

É sob esse apelo que nasce o direito penal do inimigo, como uma resposta ao hipergarantismo do direito penal de matriz liberal-burguesa, centrado na protecção do criminoso, com quase completo desprezo pela vítima”[70].

Desta forma, o Estado Democrático de Direito se vê em uma encruzilhada, tendo que legitimar o estado de exceção como estado de necessidade, sem as restrições do “direito de necessidade”.[71] 

3.7.  UNILATERALISMO X MULTILATERALISMO

Consoante Bobbio, os direitos humanos só serão efetivados no campo internacional com a formação de uma jurisdição internacional que se sobreponha as jurisdições nacionais, deixando de atuar dentro dos Estados, mas contra os Estados e em defesa dos cidadãos[72].

 É preciso que se avance na construção de instrumentos aptos à servir a concretização da justicialização dos direitos humanos internacionalmente declarados. Une-se a noção de Estado de Direito com a implementação de Cortes Independentes, capazes de proferir decisões obrigatórias e vinculantes.

Nesse aspecto, surgem em paralelo as chamadas redes das sociedade civis que aliam e fomentam a interlocução entre entidades locais, regionais e globais, a partir de um “solidarismo cosmopolita”[73].

Teubner identificou na globalização, a formação de ordens jurídicas globais emergentes, à margem de qualquer regulação política centrada no Estado., porém, conferiu a essas ordens legitimidade. Ele alega que essas ordens jurídicas não se cingem a lex mercatória, mas estão espalhadas em outros ramos como o esporte, os direitos humanos e o espaço cibernético[74].

Desta maneira e de tudo quanto exposto, cremos no multilateralismo e na sociedade civil como vetores capazes de conter o amplo grau de discricionariedade do Estado de Natureza premente no poder de império (Unilateralismo Americano)[75].

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Sobre a autora
Heloísa Valença Cunha Hommerding

Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Especialista em Direito do Trabalho. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, Portugal. e Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Doutoranda em Ciências Jurídico-Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professora universitária. Advogada e consultora jurídica empresarial. Tem experiência na área Securitária e Empresarial. Membro da Comissão de Direito do Trabalho, da Comissão de Mediação e Arbitragem e da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-PI.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este artigo foi apresentado como requisito de avaliação da Disciplina Filosofia dos Direitos Humanos, do Mestrado em Ciências jurídico-políticas, menção em Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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