3. HÁ HIERARQUIA ENTRE PRINCÍPIOS?
Ponto que merece destaque é o questionamento acerca da existência ou não de hierarquia entre os princípios existentes no ordenamento jurídico.
Segundo a doutrina de Hans Kelsen, o ordenamento jurídico pode ser visualizado como um complexo escalonado de normas de valores diversos, no qual cada norma ocupa uma posição intersistêmica, formando um todo harmônico, com interdependência de funções e diferentes níveis normativos. Nessa linha de raciocínio, uma norma só será válida acaso consiga buscar seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, até que se chegue à norma última, que é a norma fundamental [19].
Assim, tendo em mira o que restou evidenciado anteriormente, ou seja, que os princípios estão inseridos no conceito lato de norma jurídica, e, tendo em mente também que as normas, na concepção retirada do autor acima citado, são hierarquicamente escalonadas, poder-se-ia facilmente admitir que há hierarquia entre os princípios.
Com efeito, e parecendo evidenciar sobredita hierarquia, Geraldo Ataliba observa que "o sistema jurídico [...] se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez, submetem outras [...]" [20].
Todavia, em que pese, a um primeiro olhar podermos extrair tal conclusão de um raciocínio eminentemente lógico, o fato é que a solução para tal ponto merece uma análise um pouco mais detida.
Ora, acaso estejamos levando em conta a existência de princípios constitucionais e princípios infraconstitucionais, dificuldade não existirá em asseverarmos que os primeiros são hierarquicamente superiores aos últimos. Além do mais, é lição corrente e plasmada entre os constitucionalistas que os princípios constitucionais são o fundamento de validade dos princípios infraconstitucionais.
O tema, contudo, oferece maiores complicações quando tratarmos exclusivamente dos princípios constitucionais.
O aplicador do direito poderia questionar-se, por exemplo, se o princípio da celeridade ou da efetividade seria hierarquicamente inferior ao princípio da segurança jurídica. Ou mesmo questionar-se se o amplo acesso à justiça poderia sofrer algum tipo de limitação face ao princípio constitucional da supremacia do interesse público.
O saudoso professor Geraldo Ataliba dantes citado, ao teorizar sobre os princípios encontradiços na Constituição afirma que "mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema (...)" [21].
Sob um olhar despretensioso, singelo e perfunctório, poderia se extrair da lição acima um posicionamento que defende a hierarquia entre os princípios constitucionais. Não nos parece, todavia, que seja assim. O que realmente o professor citado pretendeu elucidar é que, mesmo em nível constitucional, há normas cuja abstração é mais intensa que as demais. E isto, dizemos nós, principalmente se estivermos tratando de uma Carta Constitucional analítica como é o caso da brasileira. E nos casos em que ocorra a concomitância e convivência de normas constitucionais abstratas e menos abstratas, estas devem ter sua interpretação influenciada pelos valores constantes daquelas.
Demais disso, é bom que se diga, não há normas constitucionais com um grau de importância maior ou menor, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição. Decerto, poderemos aceitar que existem princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas, à toda evidência, não se quer com isso dizer que há hierarquia normativa entre os mesmos. Podem, com efeito, existir casos em que haja normas constitucionais em aparente conflito, tensionadas entre si, o que não significa dizer que uma ou outra é hierarquicamente superior.
O Supremo Tribunal Federal já referendou o que aqui vem se expondo, ao afastar a possibilidade de normas constitucionais originárias inconstitucionais, apesar da sinalização em sentido contrário esposada por Otto Bachoff [22].
Com efeito, vejamos o que restou decidido pelo STF, no acórdão prolatado na ADI 815/DF, em que se discutia a pretensa inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 45, da CR/88:
Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1. e 2. do artigo 45 da Constituição Federal. – A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo a declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras e incompossível com o sistema de Constituição rígida. – Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (artigo 102, "caput"), o que implica dizer que essa jurisdição lhe e atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. – Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação as outras que não sejam consideradas como clausulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.
Diferente, entretanto, é o entendimento da Corte Suprema quando se encontra em jogo a possibilidade de normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte Derivado serem tidas por inconstitucionais. A razão para tal disparidade reside na circunstância de que o Poder Constituinte Derivado não dispõe, como o Originário, de poder ilimitado, haja vista ser aquele condicionado ao núcleo normativo constante do artigo 60, § 4º, da Lei Maior.
Veja-se, por relevante, e à guisa de exemplo a ementa do acórdão exarado nos autos da ADIn 939, no qual o Supremo consignou de forma cristalina a possibilidade do controle de Emendas Constitucionais que, ao ser editadas, venham a ferir o artigo 60, § 4º, dantes mencionado:
Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisorio sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b", "c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precipua e de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no paragrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, "b" e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutaveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, "b" da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributaria reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I,e art. 150, VI, "a", da C.F.); 3. - a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: "b"): templos de qualquer culto; "c"): patrimônio, renda ou serviços dos partidos politicos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistencia social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e "d"): livros, jornais, periodicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em consequencia, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidencia do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, "a", "b", "c" e "d" da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.
A partir das ilustrações casuísticas acima expostas, poderemos depreender sem maiores problemas que, não havendo hierarquia entre normas constitucionais, não há falar em hierarquia entre princípios constitucionais, mesmo porque, como demonstramos alhures, os princípios são espécies do gênero norma.
Ultrapassada, contudo, tal problemática, outro problema surge, qual seja o atinente à possibilidade de eventual colisão entre os princípios constitucionais, e os critérios utilizados para a solução de tal problema.
4. COLISÃO DE PRINCÍPIOS: CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DO PROBLEMA.
Conforme já aludido, não há hierarquia jurídica entre os princípios, conquanto normalmente haja entre eles uma tensão estável.
Como é cediço, não raras vezes os princípios constitucionais apresentam entre si algum aparente antagonismo, talvez pelo simples fato de eles permitirem uma compreensão fluida de ampla magnitude.
Não há falar então, em caso de colisão de princípios constitucionais, em antinomia, mesmo porque, não se pode puramente aplicar os critérios clássicos para resolução de antinomias entre regras.
Duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina (estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizadas pelos Tribunais. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin). A par dessas duas soluções, aparece, em qualquer situação, o princípio da proporcionalidade como "meta-princípio", isto é, como "princípio dos princípios", visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O próprio Hesse entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da proporcionalidade. Vejamos o que vem a ser a concordância prática de Hesse e a dimensão do peso e importância de Dworkin.
4.1. A concordância prática.
O princípio da concordância prática ou da harmonização, como consectário lógico do princípio da unidade constitucional, é comumente utilizado para resolver problemas referentes à colisão de direitos fundamentais. De acordo com esse princípio, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionais protegidos.
Nesse diapasão, a concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática, que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes.
4.2. A dimensão de peso e importância.
Este segundo critério tem como principal expoente Ronald Dworkin, que em sua obra Taking Rights Seriously, afirma que os princípios "possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles [...]. As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida" [23].
Assim, para Dworkin, no dimensionamento do peso ou importância dos princípios, haveria única resposta correta para os casos difíceis (hard cases).
Sob nosso prisma, no entanto, a solução repousa em uma ponderação de valores, pois, como dito, inversamente ao que ocorre com a antinomia de regras, não há, critérios formais preestabelecidos para resolver o conflito entre princípios.
Deverá então o intérprete, no caso concreto, através de uma análise necessariamente tópica, verificar, seguindo critérios valorativos, qual o bem jurídico que o ordenamento, em seu todo, prefere salvaguardar, de modo a conciliar os princípios em colisão.
Portanto, deverá o operador, informado pelo critério da proporcionalidade, buscar essa composição de princípios, sempre atendendo a uma escala racional de valores, respeitando-se, é claro, as especificidades do caso concreto.
5. CONCLUSÕES.
Nesse diapasão, conclui-se que, em primeiro lugar, essas duas soluções (concordância prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas conjunta e sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como ponto nodal: primeiro, aplica-se a concordância prática; em seguida, não sendo possível a concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando, o mínimo possível, o princípio de "menor peso".
Além disso:
1) não há, em uma visão epistemológica, hierarquia entre os princípios constitucionais, mas apenas, por evidente, entre estes e os princípios infraconstitucionais;
2) quando estiverem em conflito regras a solução para sua antinomia difere da que é dada para o conflito de princípios, mesmo porque no caso de colisão de princípios constitucionais, tecnicamente, não se tem uma antinomia, vez que não se pode meramente afastar a aplicação de um deles;