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A constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil à luz do direito intertemporal e da teoria dos fatos jurídicos

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04/06/2005 às 00:00
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5 INSTITUTOS BÁSICOS DO DIREITO INTERTEMPORAL

Como pressuposto da análise do artigo 2.035, é preciso fazer referência aos "institutos básicos do direito intertemporal", isto é, faremos agora uma abordagem sobre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, bem como seus alcances.

A LICC traz um conceito sucinto do que seja ato jurídico perfeito no §1º, do art. 6º: "Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou". Conforme Pontes de Miranda,

"o ato jurídico perfeito é fato jurídico, que tem o seu momento-ponto, no espaço-tempo: entrou em algum sistema jurídico, em dado lugar e data. O conceito é conceito do plano da existência: se ato jurídico começa de existir, aqui e agora, é porque o ato entrou no mundo jurídico aqui e agora, e a sua, juridicidade é a coloração que lhe deu o sistema jurídico, tal como aqui e agora êle é." [32]

Desta forma, o termo consumado deve ser entendido como preenchidos os elementos necessários para o nascimento deste ato, bem como dos requisitos de validade que a norma jurídica, contemporânea a este ato, obriga-lhe.

Neste mesmo sentido, segundo Celso Ribeiro Bastos:

"O ato jurídico perfeito é imunizado contra as exigências que a lei nova possa fazer quanto à forma. Assim, se alguém praticou um ato de doação, respeitando as previsões legais vigentes à época, este ato ganha condições de perdurabilidade no tempo, ainda que as condições para a sua prática já sejam outras à época em que ele for feito valer. Por tanto, é algo que diz muito mais respeito à forma do que à substância ou conteúdo." [33]

Assim, dentro do que já estudamos quanto aos planos de projeção dos atos jurídicos, considera-se já consumado quando, não obstante tenha ou não gerado efeitos, o ato seja válido, pois ele pode ser válido sem que tenha eficácia, neste caso será ato jurídico perfeito. Se o ato é inválido não há que se cogitar de proteção, com mais razão se ele for inexistente. Se for ato anulável e, portanto, possível de ratificação ou decadência, somente depois da realização destas poder-se-á falar em ato jurídico perfeito, pois é a partir daí que o ato se torna válido.

Sustentando o acima afirmado, Marcos Bernardes de Mello leciona: "validade, no que concerne a ato jurídico, é sinônimo de perfeição, pois significa a sua plena consonância com o ordenamento jurídico." [34] Em nota a esta afirmação, continua o autor, referente ao conceito dado pela LICC: "ao definir ato jurídico perfeito (...) tem como pressuposto da perfeição a sua validade, uma vez que, se inválido, o ato não se poderá considerar consumado segundo a lei" [35].

Destas afirmativas, têm-se como corolário que os atos condicionais, embora ineficazes, são considerados atos jurídicos perfeitos [36], como, por exemplo, o testamento feito sob a égide da lei anterior, antes da abertura da sucessão.

Quanto ao direito adquirido, consoante §2º, do art. 6º da LICC, são "(...) os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem".

O conceito de direito adquirido constitui uma das grandes celeumas do Direito Intertemporal, bem como da própria Ciência Jurídica. Por esta razão, não nos cabe neste momento esmiuçá-lo. Destarte, segundo Limongi França, "é a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência de lei nova sobre o mesmo objeto" [37].

Celso Bastos afirma que

"o direito adquirido consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos previstos pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar-se a gozar dos efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada. Portanto, o direito adquirido envolve sempre uma dimensão prospectiva, vale dizer, voltada para o futuro" [38].

Por esta razão, fala Pontes de Miranda que "o conceito é conceito do plano de eficácia, porque todo direito é efeito, como são efeitos todo dever, tôda pretensão, tôda obrigação, tôdas as ações e tôdas as exceções" [39].

Recentemente, na decisão sobre a chamada "taxação dos inativos", o novo Ministro do STF, Eros Roberto Grau, assim se manifestou:

"Ao cuidar do ato jurídico perfeito, o preceito constitucional está a referir situações existentes e válidas [mesmo que ainda não eficazes] (...) verificados os pressupostos da existência e os elementos da validade, as situações mantêm-se íntegras, a salvo de eventuais modificações, no direito positivo, que incidam sobre tais pressupostos e elementos. Não se trata, então, de direito adquirido, mas de ato jurídico perfeito (...) Resulta nítida, destarte, a distinção (...). Pois é certo existir direito adquirido que não se funda em ato jurídico perfeito [os direitos do nascituro, v.g.] e ato jurídico perfeito que não implica direito adquirido [justamente os negócios sujeitos a condição suspensiva e o testamento, em ambos os casos enquanto, respectivamente, não verificada a condição, ou vivo o testador]." [40]

Pelo conceito legal, art. 6º §3 da LICC, "chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que não caiba recurso". Nas palavras de Pontes de Miranda, "A coisa julgada é formal quando não mais se pode discutir no processo o que se decidiu. A coisa julgada material é a que impede discutir-se, noutro processo, o que se decidiu" [41]. Na Constituição e na LICC não há distinção entre as espécies de coisa julgada, razão pela qual a doutrina majoritária entende que além da coisa julgada material, à formal também tem proteção.

Em resumo, portanto, ao se proteger o ato jurídico, é necessário apartar o seu campo de validade do seu plano de eficácia ou de execução. Só é ato jurídico perfeito o ato válido ao tempo em que a lei nova entrou em vigor, não sendo, pois, os seus efeitos que, por conseqüência, não terão a proteção constitucional. Este entendimento, com efeito, faz a devida ponderação entre os dois dogmas jurídicos que entram em conflito na aplicação da lei no tempo, ou seja, somente desta forma se assegura a segurança jurídica das relações, pois a lei nova não pode extirpar a situação já consolidada, contudo, ao mesmo tempo, o progresso jurídico também fica assegurado ao aplicar a lei nova, presumidamente melhor, atingindo os efeitos do ato jurídico perfeito. É, pois, neste entendimento que iremos esmiuçar o sentido do art. 2.035 do novo Código Civil [42].


6 A VALIDADE DOS ATOS JURÍDICOS CONSTITUÍDOS ANTES DO CÓDIGO

Não é nesta primeira parte do artigo que está a grande celeuma do tema, uma vez que se não houvesse o referido dispositivo, este comando poderia ser invocado sem problemas maiores.

Já afirmamos que, embora o artigo refira-se à "validade" dos atos jurídicos, há que se incorporar nele a questão sobre a sua existência ou não.

Conforme Marcos Bernardes Mello, "validade é qualificação que se atribui a atos jurídicos, (...) que significa serem esses atos sem defeitos, isto é, são conformes com o direito daquela comunidade, especificamente" [43] Este é o sentido positivo do ato jurídico, que também pode ser visto pelo aspecto negativo, qual seja, pela invalidade. Nas palavras deste último autor, "invalidade constitui uma sanção imposta pelo sistema ao ato jurídico que, embora concretize suporte fático previsto em suas normas, importa, em verdade, violação de seus comandos cogentes" [44]. Na análise dos negócios e demais atos jurídicos constituídos na vigência da lei anterior, onde esta norma será aplicada, deverá, pois, ser vista tanto pelo ângulo positivo (validade), quanto pelo aspecto negativo (invalidade).

Estando os agentes do negócio vinculado a um arcabouço de normas jurídicas quando da realização do ato, é nestas disposições que eles devem submeter-se para que o ato jurídico atinja os efeitos desejados. Assim, "para se decidir se uma obrigação, em face de sua origem, existe e vale, ou se não existe ou carece de validade, deve-se aplicar-lhe a lei vigente ao tempo em que se reconheça ter ocorrido sua origem" [45].

No que tange às disposições sobre a teoria das nulidades, há que se ressaltar que o novo Código Civil "inovou em matéria de invalidades, criando figuras novas de anulabilidade, transformando anulabilidades em nulidades (e vice-versa), e alterando a configuração dos antigos defeitos do negócio jurídico" [46]. O elenco das nulidades, taxado no art. 166, é mais amplo em relação ao art. 145 do Código Beviláqua. A indeterminação do objeto, o negócio com objetivo de fraudar a lei [47], a nulidade dos negócios que afrontem as determinações legais sem cominar sanção alguma [48], a simulação passa a ser caso de nulidade, a inclusão do estado de perigo e da lesão como vícios do negócio, acarretando sua anulação, bem como mudanças internas concernentes aos demais vícios de consentimento, foram algumas inovações do novo diploma que, conforme o art. 2.035, não podem ser aplicáveis aos atos já constituídos.

Para aclarar o até então exposto, citamos alguns exemplos:

a) um contrato de parceria pecuária, mediante simulação denominada "vaca-papel" [49]. A simulação deixou de ser negócio anulável, passando a ser uma hipótese de nulidade [50]. Como se pode ver, a modificação no que se refere à simulação não saiu do plano da validade, modificando apenas o seu grau de invalidade, razão pela qual a norma aplicável à parceria pecuária com a patologia da vaca-papel, há de ser verificada pelo código de 1916, ou seja, não há que se falar em nulidade aos contratos de parceria anteriores ao novo diploma, e sim em anulabilidade.

b) Conforme o art. 154 do NCC, a coação de terceiro somente invalidará o negócio "se o contratante que dele se favoreceu souber da manobra ilícita de que foi vítima o coacto" [51]. Pelo Código anterior, a ciência pelo beneficiário era irrelevante para a configuração do vício, o que deverá ser aplicado aos atos jurídicos constituídos durante a vigência do revogado Código Civil.

c) Doravante, para que o erro seja causa de anulabilidade do ato, é necessário verificar, no caso concreto, se qualquer pessoa (homem médio) poderia diligenciar de outra forma (art. 138), condição ausente no antigo diploma [52]. Assim, esta condição não pode ser exigida aos atos constituídos antes da vigência do novo Código.

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d) Outro exemplo é a inovação do novo Código que inclui como defeito do negócio o estado de perigo e a lesão. À princípio, tais vícios, ausentes na legislação anterior não podem ser invocados aos atos anteriores, porquanto revelaria efeito inconstitucional da lei [53].

e) As condições de validade do testamento devem ser observadas conforme a lei anterior, mesmo que a abertura da sucessão ocorra após a data de 11 de janeiro de 2003.

f) Outra questão importante é a referida no art. 977 [54] do novel Código que impossibilita a formação de sociedades limitadas entre cônjuges casados no regime de comunhão universal ou separação total de bens [55]. Com efeito, as legislações anteriores não continham tal vedação, razão pela qual o novo Código não pode invalidar as sociedades entre cônjuges já formalizadas antes de seu advento, em face do que dispõe o art. 2.035 e a própria Constituição que protege o ato jurídico perfeito.

Por outro lado, sob o plano negativo, ou seja, uma vez inválido o negócio jurídico, também não pode ser invocada a novatio legis para assim convalidá-lo. Vejamos que o ato inválido não tem proteção constitucional, pois não constitui ato jurídico perfeito [56]. A nova lei, neste caso, não irá atuar simplesmente por ser irretroativa. Já dissemos que a retroatividade pode ocorrer por expressa disposição, ressalvado o tripé direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Nada impediria, portanto, que o legislador estipulasse a convalidação dos atos inválidos pelos novos dispositivos, mas assim não o fez. Assim, o negócio realizado por uma pessoa de 18 anos, antes de 11 de janeiro de 2003, continuará inválido.

Neste sentido, Carlos Maximiliano: "a lei posterior não invalida as relações de direito anteriores válidas, nem avigora as definitivamente constituídas e inválidas" [57].

Pelas mesmas razões, os efeitos dos atos anteriores ao novo Código, produzidos antes da entrada em vigor deste, não são atingidos pela novel legislação. Ademais, constituem situação jurídica consolidada (direito adquirido).

Então, quanto a existência ou inexistência, validade ou invalidade dos atos já constituídos e seus efeitos já produzidos antes de 11 de janeiro de 2003, ocorrerá a ultratividade da lei anterior quando invocada, aplicando-se o Código Beviláqua ou a primeira parte do Código Comercial, tendo como conseqüência a irretroatividade do Código Civil de 2002.


7 OS EFEITOS PRODUZIDOS APÓS A VIGÊNCIA DO NOVO CÓDIGO CIVIL

No que tange aos efeitos dos atos jurídicos já constituídos na vigência da lei anterior, produzidos após a vigência do novo estatuto civil, estipula o artigo 2.035, que devem subordinar-se ao exposto neste, salvo se estipulado pelas partes determinada forma de execução, sendo que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar norma de ordem pública.

Segundo M. Planiol, considera-se retroativa a lei, "quando ela toca no passado, quer para apreciar as condições de legalidade de um ato, quer para modificar ou suprimir os efeitos de um direito já realizado". E, acrescenta, "a lei pode modificar os efeitos futuros dos fatos ou dos atos mesmo anteriores, sem ser retroativa" [58].

Para melhor compreensão da segunda e terceira parte do artigo, assim como do parágrafo único da indigitada norma, é preciso ter em mente alguns conceitos e conseqüências jurídicas. Em resumo do que iremos especificar, afirma-se, no que tange os efeitos dos atos jurídicos: a) quanto ao ato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico e atos ilícitos sendo os efeitos produzidos eminentemente legais, não resta outra situação senão a aplicação imediata da nova disposição; b) no que se refere aos negócios jurídicos, ante a possibilidade de auto-regramento pelas partes, há que se separar as normas de ordem pública das dispositivas, sendo que, no primeiro caso, ocorrerá a aplicação da nova lei civil; por outro lado, se a norma for dispositiva, a aplicação do NCC fica condicionada, isto é, se houve estipulação pelas partes, a nova lei deixa de agir, valendo a convenção; se, porém, não houve estipulação aplica-se a novatio legis. A parte final do caput do art. 2.035, portanto, retira a eficácia imediata da nova lei, que resguardará sua aplicação se as partes estipularem determinada forma de execução. Todavia, se esta violar normas de ordem pública, tal estipulação perde os efeitos desejados, aplicando-se a nova lei.

A autonomia da vontade dos contratantes, com efeito, é restringida pelas normas de ordem pública que, em razão da sua força cogente, não pode ser afastada. Assim, somente pode haver forma de execução se a lei afastada for considerada permissiva, supletiva ou dispositiva.

Nas palavras de Carlos Maximiliano: "Considera-se permissiva, supletiva ou dispositiva a lei quando os seus preceitos não são impostos de modo absoluto, prevalecem no caso do silêncio das partes, isto é, se estas não determinaram, nem convencionaram procedimento diverso" [59].Conforme Pontes de Miranda, "o ius dispositivum deixa aos interessados possibilidade de pormenores e sutilezas, a que a regra jurídica não poderia descer; e, mais do que isso, a escolha entre os múltiplos regramentos para passadas, presentes e futuras circunstâncias, talvez eventuais" [60].

Da passagem destes dois inesquecíveis juristas, conclui-se que muitas vezes a lei pode ser afastada pelas partes, as quais, de acordo com a sua autonomia de vontade, estipulam as regras concernentes ao negócio por elas realizado [61]. Pois bem, o fato da lei ter sido modificada, em tese, não pode interferir nesta relação jurídica, porquanto suas regras legais foram supridas pela convenção das partes. É neste sentido, pois, que se os contratantes estipularam a forma de execução, afastando, assim, a norma legal, esta não pode interferir senão quando for de ordem pública.

Importante neste ponto é o que observa Zeno Veloso referente ao negócio jurídico:

"(...) em muitos casos negócios jurídicos são celebrados sem que as partes tenham previsto ou estipulado efeitos jurídicos, e estes acabam ocorrendo, por força da lei. Imagine-se um contrato de compra e venda em que não se estabeleceu nenhuma cláusula especial, nenhum termo, nenhuma condição, enfim, nenhuma disposição que tenha desbordado do modelo legal, enunciando-se, somente, os elementos essenciais do tipo negocial. Vendedor e comprador estarão submetidos à eficácia que o Código Civil prevê para esta espécie contratual. (...) Pode ocorrer, ainda, que os declarantes tenham feito as estipulações que consideravam fundamentais, estabelecendo os efeitos que tinham por principais, conforme seus interesses. Não obstante, outros efeitos, não previstos expressamente pelas partes, poderão surgir, supletivamente, ex vi legis, e nem por isso, igualmente, poder-se-á negar a existência de um negócio jurídico. (..) ele formula regras de conduta entre os particulares, análogas às da lei; tem, portanto, caráter normativo, funcionando como lex privata." [62]

O legislador do novo Código se inspirou nas doutrinas objetivistas, mormente a teoria do francês Paul Roubier, onde os efeitos devem ser tutelados pela norma em vigor ao momento em que aqueles se produzem. Assim, o ato jurídico anterior ao novo estatuto, que vier a produzir efeitos após a vigência deste a ele deve subordinar-se. O que deve ser primeiro compreendido, quando se deparar com esta situação de direito intertemporal, é, portanto, o tempo da produção dos efeitos. Neste sentido José Oliveira Ascenção:

"A realidade é evolutiva: os efeitos, em muitos tipos de negócios, vão-se plasmando no tempo. A distinção entre o que pertence ao passado e o que pertence ao futuro (ou mesmo ao presente, pois há efeitos de produção simultânea com a entrada em vigor da nova lei) dá-nos a chave da distinção realista [63]."

Conforme Carlos Maximiliano:

"Não é lícito confundir a eficácia [Lato sensu] e a validade de um direito com os efeitos do mesmo, isto é, as faculdades jurídicas unidas pela lei ao direito anterior: quanto às primeiras, predomina a lei anterior; quanto às últimas, a norma sob cujo império surgiram. Sim; os efeitos são regulados pela lei do dia em que se produzem; não pela do tempo em que a situação jurídica foi estabelecida." [64]

Em comentário ao indigitado dispositivo, Humberto Theodoro Junior assim destaca:

"O preceito não se refere obviamente, aos efeitos substanciais do ato jurídico perfeito, que a lei nova não pode violar, sem ofender à garantia constitucional (...) diz respeito apenas às modalidades de realização das obrigações, tanto que o art. 2.035 ressalva que a lei nova não será aplicada se no contrato já existir forma convencionada para a execução" [65].

Esta ponderação do jurista mineiro faz a devida distinção entre os planos do ato jurídico, destacando, também, que na proteção constitucional não estão incluídos os seus efeitos produzidos após a entrada em vigor da nova lei. Destarte, para o autor, "se a obrigação se encontrava apenas sujeita às modalidades legais, a lei nova a atingirá. Se, porém, havia regras convencionais estatuídas pelo negócio, estas subsistirão incólumes frente à inovação legislativa, como frutos que são do ato jurídico perfeito" [66].

Antonio Jeová dos Santos, entendendo pela inconstitucionalidade, faz sua análise sobre o art. 2.035 restringindo-se aos contratos e sem atentar-se para a própria eficácia temporal da norma. Assim, afirma que "se o contrato foi celebrado sob a existência de uma lei, ainda que seus efeitos ocorram no futuro, durante nova lei, ditos efeitos não se submetem à lei posterior. O contrato fica jungido e subordinado à lei do tempo em que houve a celebração, a consumação do contrato" [67]. Ocorre, todavia, que este entendimento emperra o Direito, não o fazendo progredir. No conflito intertemporal, já dissemos, há que se tentar achar o meio termo entre dois princípios absolutos: da segurança e do progresso. Pois é exatamente isto que o art. 2.035 faz, ao sujeitar os efeitos produzidos após a vigência da nova e progressiva norma, obedecendo a validade e segurança do ato anterior, bem como a estipulação pelas partes dentro do que a própria ordem jurídica permite.

Não estamos aqui a afirmar que os contratos estão totalmente desprotegidos diante da nova lei. A segurança jurídica não foi abandonada, porquanto a validade do ato rege-se pela lei anterior e, ademais, a parte final retira a eficácia imediata do novo Código Civil, apenas condicionando a forma de execução aos ditames da nova ordem, ratificando, assim, o aspecto social do próprio novo estatuto e, ao mesmo tempo, abandonando o individualismo de outrora. Em outras palavras, se o contrato deve ter a função social, não podemos admitir que determinados contratos (anteriores ao NCC), em flagrante desrespeito à nova ordem, venham a prevalecer em detrimento de outros (posteriores ao NCC), que não terão a mesma sorte. Por outro lado, não pode a lei nova invalidar este ato já constituído, em nome da segurança jurídica. Não podemos, portanto, dar solução simplificada no que tange às relações contratuais, aplicando-lhes somente o disposto na lei do tempo da sua formação. Não há apenas uma lei aplicável a estas relações. Este ato complexo reclama diversos outros fatos jurídicos que só se produzem após a entrada em vigor da nova lei. Se as partes estipularam determinada forma de execução, escolheram pelo afastamento da norma ao qual teria incidência no caso de silêncio. A nova lei poderá incidir, a partir de sua entrada em vigor, desde que não infrinja esta autonomia de vontade das partes. É por isto que a nova lei só incidirá se a norma for de ordem pública, pois, neste caso, a autonomia de vontade é nenhuma.

Neste sentido Orlando Gomes:

"Em matéria contratual, os efeitos são intocáveis pela lei nova, mas os efeitos pendentes e futuros por ela se regem. Não há que falar, quanto a estes, de direitos adquiridos e, portanto, de retroatividade da lei. Se assim não fosse, isto é, se a lei nova não produzisse efeito imediato, os direitos oriundos do contrato seriam inexplicavelmente condição privilegiada, porquanto institutos como a escravidão, os censos, a enfiteuse podem ser abolidos sem que se considere retroativa a lei que os extingue, certo, como é, e assinalava Portalis, que a lei nova não pode fazer com que uma coisa existente jamais tenha existido, mas pode decidir que não existirá mais. Do mesmo modo, direitos contratuais que ainda não se exerceram, porque futuros, podem cair sob o império da lei posterior ao contrato que os modifique." [68]

A questão não é simples e, com certeza, será objeto de discussão em nossos pretórios. Contudo, antes de afirmarmos que os efeitos dos contratos são regidos pela norma correlata a sua formação, é preciso questionar sobre o que estamos discutindo, ou seja, o que está em jogo é a situação individual dos contratantes, cuja manifestação de vontade foi exarada de acordo com a liberdade que lhes outorgam, ou da própria sociedade, cujo valor deve prevalecer? Neste último caso, a lei nova deve penetrar no campo de proteção deste contrato para regular seus efeitos. Ademais, o contrato não é formado tão somente pela manifestação de vontade, situações outras ocorrem diretamente da lei. Se a lei contemporânea à formação do ato não vigora mais, a lei revogadora deve, desde logo, ter incidência. Assim, conforme Serpa Lopes,

"força é convir que um estatuto contratual, quando integralmente decorrente da lei, ou na parte em que é por ela afetado, como o que fixar o valor de uma prestação, v. g., o a1uguel, essa situação jurídica não representa relação definitiva, pois permanece sujeita às flutuações decorrentes de modificações trazidas por outras leis posteriores." [69]

Para melhor aclarar o que afirmamos ser a melhor interpretação do art. 2.035, traremos alguns exemplos.

a) No que respeita à extinção das obrigações, basta verificar se as partes estipularam determinada forma de extinção, como é o caso, em regra, da forma de pagamento. Agora, se, após o novo Código, as partes querem extinguir a obrigação mediante consignação, sub-rogação, imputação em pagamento, novação, compensação, confusão ou remissão, que não estava prevista no contrato, a incidência da nova lei ocorrerá plenamente.

b) Imaginamos um contrato de prestação de serviço de trato sucessivo, em que as partes estipulem um percentual de reajuste periódico das parcelas do preço, vindo a lei a proibir este reajuste [70]. Neste caso, aplica-se a estipulação contratual, já que "o pagamento posterior de parcela do preço, quando já estabelecido o respectivo valor em época pretérita, não seria considerado efeito futuro de ato passado, de modo a receber os influxos da lei novata" [71]. O reajuste in casu foi convencionado pelas partes estando já estipulado na vigência da lei revogada, que não poderá ser atingida pela novatio legis.

c) Seguindo no mesmo exemplo, imaginamos que as partes tenham estipulado a atualização do preço de acordo com algum índice oficial, apurado no mês anterior ao reajuste. Neste caso, o reajuste não está previamente qualificado pelas partes. Como conseqüência, "sua ultimação dar-se-ia no futuro, quando fosse apurado o percentual do indexador eleito no contrato" [72], cuja força da nova lei já vigora.

d) Sustentando o já exposto sobre a amplitude da aplicação do art. 2.035, citamos a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, sob a relatoria da Desembargadora Salete Silva Sommariva [73], referente a aplicação imediata do art. 1.708 que extingue a obrigação de alimentos em caso de nova relação do ex-cônjuge. A referida decisão teve a seguinte ementa:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO - ALIMENTOS PROVISIONAIS - PROVA DA EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CONCUBINÁRIA ENVOLVENDO A EX-CÔNJUGE - SUPERVENIÊNCIA DO NOVO CÓDIGO CIVIL - APLICAÇÃO IMEDIATA AOS EFEITOS PRODUZIDOS APÓS SUA VIGÊNCIA - CESSAÇÃO DO DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS - RECURSO PROVIDO. Os atos jurídicos produzidos antes da vigência do novo Código Civil são validos, entretanto, os efeitos produzidos após a sua vigência ficam a ele condicionados (art. 2.035). A ex-cônjuge que, em depoimento prestado em processo diverso, admite manter relação de concubinato com outro homem, não tem direito à percepção de alimentos por parte do ex-marido, por força da interpretação literal do art. 1.708 do novo Código Civil."

Com efeito, o art. 1.708, caput, do novo Código Civil, dispõe: "Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos".A legislação anterior aplicável à espécie, art. 29 da Lei n. 6.515/77, mencionava que somente em caso de casamento do credor teria como causa a extinção da obrigação alimentícia.

e) O exemplo prático mais corriqueiro em nossos Pretórios tem sido a aplicação do art. 406, referente aos juros moratórios, aplicados aos contratos constituídos antes da nova lei civil [74]. Não havendo taxa estipulada pelas partes, o que equivale a dizer, não havendo forma de execução no contrato (juros convencionais), a aplicação dos juros moratórios (juros legais) é imediata, isto é, a partir da entrada em vigor do novo Código. A aplicação dos juros advém da própria lei e por isto incide. Por outro lado, poderia ser afastada, e assim não haveria incidência imediata, tudo em conformidade com a inteligência do art. 2.035 [75].

f) Outro exemplo que vem se repetindo nos Tribunais e cujo entendimento tem sido em consonância com o nosso, é a aplicação imediata da multa condominial de 2%, conforme art. 1.336, §1º [76]. O que se poderia suscitar in casu é que a convenção do condomínio seria forma de execução e, por isto, não haveria redução. O caso, porém, inspira cuidados e peculiaridades. A primeira delas refere-se à natureza jurídica da convenção do condomínio. Segundo Caio Mario, a convenção condominial tem natureza estatutária, pois "sua força coercitiva ultrapassa as pessoas que assinaram o instrumento de sua constituição, para abraçar qualquer indivíduo que, por ingressar no agrupamento (...) recebe os seus efeitos em caráter permanente ou temporário (...)" [77]. Assim, as normas da convenção condominial, ultrapassando as pessoas que assinaram o instrumento, atingindo terceiros, não podem ser consideradas como normas contratuais. Na convenção condominial, destarte, "não é o acordo das partes - em rigor técnico, sequer há cogitar de partes - mas a sujeição dos condôminos e de terceiros ao regime legal próprio desse novo direito real" [78]. Como corolário, as convenções condominiais estão diretamente subordinadas à lei, não sendo possível o seu afastamento. A lei somente lhe atribui discricionariedade dentro dos seus ditames. Outra peculiaridade é que as obrigações condominiais são consideradas "situações jurídicas permanentes" [79], pois não têm duração definitiva, "perduram enquanto mantida a condição de condômino, renovando-se mês a mês" [80]. Segundo dispõe Paul Roubier, "se tratando de situações às quais não se pode dar uma duração definitiva dentro de certos limites, pode-se dizer que estão em um estado permanente de constituição e podem sempre ser modificadas, criadas ou suprimidas por uma lei nova" [81]. Assim, "com a convenção ou sem ela, o condômino incorre na obrigação de concorrer no rateio, pois isso advém da lei e não do pacto entre os interessados" [82]. São por estas razões, que não se pode cogitar de forma de execução nas convenções condominiais, razão pela qual, por força do art. 2.035, aplica-se o disposto no §1º do art. 1.336 do NCC, a partir de 11 de janeiro de 2003. O inadimplemento anterior ao novo Código, sendo efeito já produzido, não pode ser atingido.

g) Mais uma hipótese de incidência do art. 2.035 refere-se a possibilidade de aplicação do art. 835 aos contratos já em vigor quando da vigência do novo estatuto. Trata-se este dispositivo da possibilidade de o fiador exonerar-se da fiança, quando assinado por tempo indeterminado, sempre que convier [83]. Doravante, basta a notificação ao credor da desobrigação do fiador. Pelo sistema antigo (art. 1.500), era preciso um ato amigável ou sentença de exoneração [84]. Conforme a regra do art. 2.035, não há razão para deixar de aplicá-lo aos contratos anteriores ao novo Código.

h) No que toca ao Direito Comercial ou Empresarial, já dissemos que a validade das sociedades formadas pelos cônjuges permanecerão incólumes, mesmo que contrária a nova regra de constituição disposta no art. 977. Todavia, os efeitos desta sociedade, assim como das demais, ao disposto no Código de 2002 irão se submeter. Assim, por exemplo, o quorum para aprovação de determinado ato da sociedade deverá respeitar o novo Código.

Este é, pois, o sentido do art. 2.035 na sua segunda parte, sem que se possa falar em violação ao ato jurídico perfeito. Não há, ainda, de se cogitar em retroatividade, porquanto a aplicação do novo codex somente ocorrerá após sua entrada em vigor atingindo os efeitos produzidos após 11 de janeiro de 2003, desde que não haja estipulação pelas partes da forma de execução.

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Sobre o autor
Márcio La-Rocca Silveira

Auditor Público Externo TCE-RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Márcio La-Rocca. A constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil à luz do direito intertemporal e da teoria dos fatos jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 699, 4 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6843. Acesso em: 22 nov. 2024.

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