A Bahia sempre esteve na vanguarda dos movimentos nacionais em prol do aprimoramento da garantia do acesso à justiça. Dois exemplos são marcantes: a) a criação de varas especializadas na defesa do consumidor (um dos poucos Estados do Brasil que cumpriram o disposto no art. 5º, IV, CDC); b) a instituição de tribunais de pequenas causas, muito, muito antes da edição da Lei Federal n.º 9.099/95, que redefiniu os contornos do hoje denominado Juizado Especial. E é sobre os Juizados Especiais na Bahia que gostaríamos de falar, por ora.
Não se põe em dúvida o sucesso dos Juizados Especiais no nosso estado, principalmente como fator de estímulo ao exercício da cidadania, permitindo o acesso ao Judiciário àqueles que, acaso tivessem de reclamar em instâncias ordinárias, não se valeriam do serviço jurisdicional (por desengano ou desemprego). Porém, a despeito dos notórios vanguardismo e êxito, existem aspectos da implementação dos Juizados Especiais na Bahia que não merecem os costumeiros encômios. Há equívocos e distorções que passam despercebidos da comunidade —até mesmo de nós, operadores do direito, sempre tão preocupados com outras questões— e que, a nosso sentir, são gravíssimos. Podemos apontar, apenas a título de exemplo: a) postulação necessariamente oral; b) competência para o conhecimento/julgamento do mandado de segurança contra ato de juiz do Juizado; c) a obrigatoriedade de postulação nos Juizados das causas de consumo orçadas em valor menor do que quarenta salários mínimos; d) inexistência de preparação específica dos funcionários e conciliadores (com técnicas de mediação, por exemplo) etc. A estreiteza deste espaço não nos permite discorrer sobre todos estes aspectos. Fiquemos, por ora, apenas com o primeiro. Quanto ao segundo problema, já tivemos oportunidade de nos pronunciar, em ensaio publicado na Gênesis Revista de Direito Processual Civil, 20/243-252, e na Revista de Processo n. 105. Talvez, no futuro, cuidemos amiúde dos demais. Pois bem.
Prescreve o art. 14, caput, LF 9.099/95, que a postulação nos Juizados Especiais pode ser escrita ou oral —se for oral, será reduzido a termo pela Secretaria do Juizado, podendo ser utilizado o sistema de fichas ou formulários impressos (art. 14, §3o., Lei Federal 9.099/95). O texto da lei é claro: permitem-se duas formas de postulação, não se estabelecendo, sequer, qualquer hierarquia entre elas. A lei baiana (7.033/97) não se manifesta sobre o tema, o que reforça ainda mais a incidência do diploma federal.
Na Bahia, entretanto, a postulação perante os Juizados Especiais é necessariamente oral. Além de manifestamente ilegal, porquanto fira o disposto em lei federal, esta exigência gera inúmeros problemas.
a) Como a postulação tem de ser feita perante um atendente judiciário, que a reduzirá a escrito, não há possibilidade física nem cronológica de se atender mais do que quinze pessoas por turno —o que convenhamos não é um número satisfatório. Acaso pudesse ser feita por escrito, não haveria limite diário de atendimento, permitindo aos denodados atendentes judiciários se concentrassem nos atendimentos dos cidadãos que aparecessem desacompanhados de advogados —merecedores, exatamente por isso, de atenção toda especial.
b) Cada postulação dura no mínimo trinta minutos, a depender da estabilidade do sistema operacional dos microcomputadores e sem contar o tempo de espera, retirada da senha e abertura dos portões (no caso dos Juizados de Apoio situados em shoppings centers). A postulação por escrito não demandaria mais do que cinco minutos, sem filas ou delongas desnecessárias.
c) Somente as partes, pessoalmente, ou advogados podem postular perante os Juizados, o que gera uma situação no mínimo curiosa. Se a causa for de altíssima complexidade, ou envolva bilhões de reais ou relevantíssimo interesse público, qualquer estagiário de direito ou outro mensageiro poderá promover o protocolo da petição inicial no Fórum Rui Barbosa, perante qualquer um dos diligentes e operosos funcionários da Distribuição, que não titubeará em aceitar a postulação.
Em causas de menor complexidade (mais simples, pois), a própria parte ou o advogado devem perder as suas duas horas diárias de penitência. Não há sentido, razoabilidade nem necessidade neste discrímen.
d) A limitação à postulação escrita é dirigida apenas ao autor. Assim, o réu, nos Juizados, normalmente uma grande empresa, pode, tranqüilamente, juntar sua volumosa e bem elaborada peça de defesa escrita, sobre a qual não poderá manifestar-se o autor, salvo se houver documentos ou preliminares, quando será ouvido na audiência. Trata-se de ofensa gritante ao princípio da igualdade, que de tão comezinha carece, inclusive, de maiores considerações.
e) Os advogados, atentos a todas estas circunstâncias, buscam, como sói ocorrer, adaptar-se a esta situação. Uns, por exemplo, pedem para juntar a petição inicial como "documento" (?!); outros elaboram os seus "termos de queixa" no escritório, levando a postulação "oral" em disquete ou, se isso não for possível, ditando, pausadamente, os escritos adrede preparados.
A exigência de postulação oral, nos Juizados Especiais, é, pois, a um só tempo: a) inconstitucional, por ferir o princípio da igualdade; b) ilegal, por desrespeitar o mandamento da Lei Federal n.º 9.099/95, que autoriza a postulação escrita; c) excessivamente burocrática, e portanto desaconselhável, porquanto (1) limite a quantidade de atendimentos diários, (2) imponha a presença física do advogado – jogando para escanteio o estagiário de direito, (3) implique gasto desproporcional de tempo para a sua efetivação.
Não se trata este ensaio de uma crítica amarga, de quem só vê "coisa ruim" pela frente. Não, muito ao contrário. Acreditamos piamente nos Juizados Especiais.
Como professor e advogado, entretanto, cumpre-nos esta tarefa, de apontar/corrigir os desvios de rota, ajudando a redirecionar esta Terra ao caminho da sua sina: o de ser destaque na produção/operação jurídica no Brasil.