4.PRINCÍPIO NON BIS IN IDEM E TRANSAÇÃO PENAL.
As lacunas da Lei 9.099/95 devem ser supridas pela doutrina e jurisprudência, com o fim de buscar o seu exato alcance e real significado. A solução dos conflitos foi o ideal da lei e sua inovação, sem dúvida alguma, revolucionou o sistema processual e penal brasileiro. Se por um lado há críticas quanto à possibilidade de violação dos direitos constitucionais-penais, de outro há elogios pelo caráter despenalizador, informado pelos princípios da mínima intervenção, fragmentariedade, necessidade e idoneidade.
O descumprimento injustificado da transação penal deve ensejar, consoante vimos anteriormente, o oferecimento e início da ação penal. Ao final, com a prestação da tutela jurisdicional, se procedente a pretensão punitiva estatal, deve-se observar, obrigatoriamente, no juízo competente (9), a possibilidade de detração pelo cumprimento parcial da pena transacionada da pena imposta em definitivo.
O artigo 42 do Código Penal, modificado pela reforma de 1984, por óbvio não poderia prever a detração em caso de cumprimento parcial da transação penal, instituto novo no direito brasileiro. A previsão da norma penal resume-se aos casos de privação da liberdade, mas o ponto determinante, o princípio balizador do dispositivo, é evitar a dupla punição num mesmo fato criminoso – non bis in idem.
Assim, entendemos ser possível, analogicamente, abater da decisão condenatória, proferida ao final da ação penal pública ou privada, a pena parcialmente cumprida por força do transacionado. Com a transação há aplicação de pena, de imediato, ao autor do fato, e, com a decisão condenatória, igualmente, há aplicação de pena ao autor daquele mesmo fato.
A analogia in bonam partem vem para suprir uma lacuna legislativa e impedir a violação ao princípio clássico de justiça segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato (Dotti, 2004, p. 604/605).
Não há que se argumentar que o descumprimento da transação tornou ineficaz também a pena parcialmente cumprida ou levou a sua perda. A interpretação, em casos omissos, jamais pode se dar em prejuízo do acusado e a lei penal, sempre que determinou a perda do período de cumprimento da pena, o fez expressamente. Soma-se a isto a existência de efetiva aplicação de pena na transação penal, entendida como uma perda de bens jurídicos imposta pelo órgão da justiça (Fragoso, 2003, p. 348).
Na transação penal pode-se aplicar quaisquer das espécies de penas restritivas de direito ou multa, mas nem todas poderá admitir a detração, por incompatibilidade. Todavia, existindo compatibilidade entre as penas aplicadas, a detração há de ser feita, sob pena de se afrontar o princípio non bis in idem.
Ad exemplum, se aplicada pena de prestação de serviços à comunidade por transação penal e na condenação a mesma pena for aplicada, a detração é possível, ou seja, obrigatória. Mas, se aplicada pena de prestação de serviços à comunidade e, ao final, pena pecuniária, a detração é impossível. Se, na transação penal ficou estabelecida a prestação pecuniária em favor da vítima e o autor do fato adimpliu parcialmente com sua obrigação, o início da ação penal torna-se possível. Caso seja condenado ao final do processo e aplicada novamente pena de prestação pecuniária, obrigatoriamente, deverá se proceder à detração, para não se dar causa ao enriquecimento injusto da vítima e dupla punição do autor do fato.
A compatibilidade deverá ser analisada em cada caso, mas uma regra pode desde já ser estabelecida:
a. é possível a detração sempre que as penas forem idênticas.
Exemplificando: prestação pecuniária e prestação pecuniária; multa e multa; limitação de fins de semana e limitação de fins de semana; prestação de serviços à comunidade e prestação de serviços à comunidade.
b. havendo penas diversas, a detração é possível se as sanções forem substitutivas da privação de liberdade pelo tempo de sua duração.
Alguns exemplos: prestação de serviços à comunidade e interdição temporária de direitos; limitação de fins de semana e prestação de serviços à comunidade.
Importante observar que a doutrina não admite a possibilidade de detração em penas pecuniárias, mas observa-se que a maioria não discorre a respeito da pena imposta em transação penal. As brechas legislativas determinam estudo do assunto, visto que o descumprimento da transação penal, com a crise social enfrentada em nosso país, aumenta a cada ano.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal, em seu artigo 98, instituiu um novo modelo de Justiça criminal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais, 9.099/95, daí decorrente, apresentou significativas e profundas mudanças no panorama processual e penal, com instrumentos e ritos novos, até então desconhecidos em nossa legislação.
O princípio da dignidade humana, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Carta Constitucional, é o norte de atuação do legislador e aplicador do direito e dele decorrem diversos outros princípios, reguladores do sistema penal. A mínima intervenção, a fragmentariedade do direito penal, devem ser observadas continuamente, para que este ramo do direito não sirva unicamente como meio de exclusão social. A Lei dos Juizados Especiais Criminais, neste ponto, veio em total sintonia com os princípios nominados e a transação penal apresenta-se, hoje, dentro do nosso ordenamento jurídico, como a mais importante forma de despenalizar, sem descriminalizar.
As limitações da lei 9.099/95 devem ser supridas por alterações legislativas e, enquanto estas não se produzem, cabe a doutrina e jurisprudência a interpretação dos institutos.
A lei nova deve solucionar os conflitos hoje existentes não só quanto aos efeitos pelo descumprimento da transação penal, mas também na possibilidade de detração penal pelo cumprimento parcial da pena, em respeito ao princípio non bis in idem e, por conseqüência, a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral. 16ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 2003.
FRANCO, Alberto Silva. Jornal Sou da Paz, ano 2, nº 3,
20 de abril de 2002. disponível em
GOMES, Luiz Flávio. Tendências político-criminais quanto à criminalidade de bagatela. São Paulo: RBCCrim, 1992.
FERNANDES, Antonio Scarance; Grinover, Ada Pellegrini; Gomes, Luiz Flavio; Gomes Filho, Antonio Magalhães. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
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PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Criminologia e Juizado Especial Criminal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.
Notas
1. Alberto Silva Franco, em entrevista publicada no Jornal Sou da Paz, ano 2, nº3, 20 de abril de 2002, discorreu a respeito da produção legislativa que visa somente respostas a explosões de violência e asseverou que a Lei dos Crimes Hediondos não diminuiu a criminalidade. "Ela não aumenta, diminui ou estabiliza os índices de determinados delitos. A lei penal não serve para resolver conflitos sociais, problemas próprios de um sistema que é desigualitário". Não é o aumento de pena que vai diminuir a criminalidade. Quando foi criada a Lei de Crimes Hediondos, se estabeleceu um desequilíbrio dentro do sistema penal. Não se pode valorar um bem jurídico chamado vida em igualdade de condições de um bem jurídico chamado patrimônio. Por exemplo, há uma lei que incluiu como crimes hediondos a falsificação de remédios. Nessa mesma lei se estabelece que a falsificação de cosméticos e de água sanitária se equipara à falsificação de remédios, e a pena prevista é de 10 anos de reclusão. Então, se uma pessoa falsificar um batom, ela pode estar subordinada a uma pena de 10 anos de reclusão. Agora faça um paralelo com uma pessoa que mata outra. Qual é a pena prevista? É de no mínimo 6 anos de reclusão. Então, essas modificações feitas na legislação levam a verdadeiros absurdos.
2. 5ª T– RESP 625510 SP Decisão:19/08/2004 DJ:20/09/2004 (unânime); 5ª T – RESP 613492 SP Decisão:17/06/2004 DJ:23/08/2004 (unânime); 5ª T – HC 30693 SP Decisão:06/04/2004 DJ:17/05/2004 (unânime); 5ª T - HC 27003 RO Decisão:09/03/2004 DJ:05/04/2004 (unânime); 5ª T* EDRHC 12033 MS Decisão:03/12/2002 DJ:10/03/2003 (unânime); 6ª T – HC 24148 SP Decisão:10/02/2004 DJ:08/03/2004 (unânime); 6ª T - HC 19445 SP Decisão:03/02/2004 DJ:01/03/2004 (unânime); 6ª T - RHC 14141 SP Decisão:13/05/2003 DJ:09/06/2003 (unânime).
3. Artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal estabelece que todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...). O Ministério Público, por seus órgãos de execução, também tem o dever de fundamentar suas manifestações.
4. HABEAS CORPUS. TRANSAÇÃO PENAL. LEI 9.099/95. PENA DE MULTA. DESCUMPRIMENTO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL. RESSALVA DE ENTENDIMENTO CONTRÁRIO. 1. "(...) 1 - A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória, gera a eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal. 2 - Não se apresentando o infrator para prestar serviços à comunidade, como pactuado na transação (art. 76, da Lei nº 9.099/05), cabe ao MP a execução da pena imposta, devendo prosseguir perante o Juízo competente, nos termos do art. 86 daquele diploma legal. Precedentes." (REsp 203.583/SP, in DJ 11/12/2000). 2. Ressalva de entendimento contrário do Relator. 3. Ordem concedida. (HC 14560/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 24.05.2001, DJ 17.09.2001 p. 196). E, ainda: RESP. 222061; HC 11111; RESP 172951; RESP 194637; RHC 10369; HC 14560.
5. RE 268.320-5; RE 268.319-1; HC 79.572.
6. As decisões majoritárias do Superior Tribunal de Justiça são no mesmo sentido: RESP 222061; HC 12215; HC 11111; HC 10219; RESP 205739; RESP 190194; RESP 203740; RESP 200849; RESP 153195; HC 9853; RESP 172981; RESP 172951; RESP 194637; RHC 10369; HC 14560; RHC 11350.; RESP 226570; RESP 612411; HC 33487.
7. René Ariel Dotti, na introdução de seu livro, diz: "A missão do Direito Penal consiste na proteção de bens jurídicos fundamentais ao individuo e à comunidade. Incube-lhe, através de um conjunto de normas (incriminatórias, sancionatórias e de outra natureza), definir e punir as condutas ofensivas à vida, à liberdade, à segurança, ao patrimônio e outros bens declarados e protegidos pela Constituição e demais leis".
8. Vide nota de rodapé 7.
9. O artigo 66, inciso III, letra c, da Lei de Execuções Penais determina a competência exclusiva do Juízo das Execuções Criminais para a aplicação da detração.