Em 1988 – após um longo período de lutas e mazelas que assolaram o Brasil – o então presidente José Sarney sentiu-se na obrigação de recompensar os brasileiros por todo o sofrimento vivenciado nos anos que decaíram e, então, decidiu iniciar um processo de redemocratização o qual foi concretizado com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna vinha realmente para dar brilho novamente ao olhar dos brasileiros que muito havia padecido com a ditadura militar, trazendo consigo incontáveis direitos e garantias que há muito não eram conhecidos pelos brasileiros, por isso é conhecida também como Constituição Cidadã, pois formalmente consagrou o título de cidadão e trouxe igualdade a todos os brasileiros.
Dentre as garantias trazidas pela Constituição existe uma que será abordada no presente Artigo que, sem dúvida, revolucionou a relação entre consumidor e fornecedor. O inciso XXXII do art. 5º da Constituição Federal verbera que “O Estado promoverá, na forma da Lei, a defesa do consumidor”. Um pouco mais adiante, no art. 48 do “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (ADCT), carregou consigo uma roupagem que há muito já era esperada pelos brasileiros quando disse que “ O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Deste simples dispositivo nasceu a Lei nº 8.078/1990 a qual entrou em vigor em 11 de setembro de 1990.
A Lei nº 8.078/1990 foi então intitulada de Código de Defesa do Consumidor e, sem dúvidas, foi um grande marco não só para os consumidores, mas para a população brasileira como um todo, haja vista que visa proteger as relações de consumo, não necessariamente o consumidor, posto que este nem sempre em relação de vulnerabilidade e hipossuficiência. O Código Consumerista veio para equilibrar as relações de consumo, ao passo que também foi uma grande benesse para os fornecedores, posto que estes também encontram-se amparados por esta Lei.
Tem-se por verdadeiro que o CDC veio para normatizar várias necessidades que permeavam a vida dos consumidores e fornecedores deste país, ao passo que preocupou-se em estabelecer conceitos e definições bem explicadas do que vinha a ser fornecedor e consumidor, elencando seus direitos básicos e implementando instrumento de melhorias nas relações consumeristas, de modo a estabelecer prazos prescricionais e decadenciais, bem como controlar o marketing feito pelos fornecedores, para que estes não viessem a agir de má-fé com seus consumidores, de forma que estes pudessem ser ludibriados a comprar um produto que não tivesse as reais características explanadas pela propaganda.
Sabe-se, portanto, que, como meios de dirimir as possíveis desavenças consumeristas temos o Procon, e, caso este desentendimento não seja resolvido ali, entra em ação o Poder Judiciário. Uma questão que vem a render embates entre doutrinadores diz respeito à indagação se um conflito consumerista poderia vir a ser resolvido através da Arbitragem.
A arbitragem é um instituto legalizado desde o ano de 1996, com a promulgação da Lei nº 9.307, que deu autonomia de vontade às partes para utilizarem o referido instituto sem a intervenção estatal, demonstrando mais agilidade na resolução dos conflitos e menos custo em comparação ao Poder Judiciário, que pela grande demanda, evidencia morosidade e burocracia na tutela dos direitos dos cidadãos.
Logo, o instituto da arbitragem define, no artigo 1º da Lei 9.307/96, que os litígios devem versar sobre direitos patrimoniais. Assim, desta definição há dúvida quanto a sua aplicabilidade nos conflitos consumeristas decorrentes de contratos de adesão e contratos de consumo.
Dado o aumento considerável do poder aquisitivo de uma população que acabara de se livrar de um governo opressor, viu-se a necessidade de consolidar em um Código todas as disposições esparsas que já existiram para regular o direito do consumidor, com uma diferença, estaria por vir um Código tão moderno que conseguiria aplicar-se ao longo dos anos sem sofrer alterações, e mesmo assim atender a todos os anseios da sociedade consumerista, bem como protegê-la dos abusos que poderiam surgir.
Para amparar os consumidores nas relações que pudessem vir a sofrer, o Código de defesa do Consumidor trouxe consigo a “criação de mecanismos alternativos de solução de conflito de consumo”, que são exercidos pelo Procon, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades civis de defesa do consumidor que atuam juntamente com a Secretaria Nacional do Consumidor.
Sabe-se, portanto, que a Arbitragem é também um meio de resolução de litígios, no entanto, o art. 51, em seu inciso VII tratou de proibir expressamente que as cláusulas que determinem a utilização compulsória da arbitragem são nulas de pleno direito.
Ocorre que a literalidade do artigo supramencionado permite o entendimento de que o legislador quis evitar que o consumidor firmasse contratos que o obrigassem a utilizar a Arbitragem como meio de solução de algum conflito que, porventura, viesse a surgir. Ora, é mais do que claro que cláusulas abusivas contrariam o espírito de igualdade trazido pelo Código, haja vista que este veio justamente para dirimir as desigualdades que permeiam o mundo consumerista.
Em resposta ao questionamento quanto à possibilidade da arbitragem ser um meio hábil para resolver conflitos consumeristas, cumpre explicar a aplicação no contrato de adesão.
O Código de Defesa do Consumidor criado em 1990 evidencia no artigo 54 o conceito de contrato de adesão, qual seja:
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
Na concepção de Jorge Ferraz Neto:
[...] nessa modalidade de contratos, a redação das cláusulas compete somente a uma das partes, ficando a outra sujeita a aceita-las ou rejeitá-las em sua totalidade, posto não lhes é dado o direito de modificá-las.
Assim, dada a natureza das cláusulas estipuladas nos contratos de adesão, criou-se a incerteza quanto à utilização do instituto da Arbitragem para solucionar conflitos oriundos das relações reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor.
Versa o art. 51 da Lei nº 8.078/90:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem”
Nota-se, portanto, que o texto da lei é nítido ao coibir a utilização compulsória da arbitragem, ou seja, em sentido contrário, permitiria que a arbitragem fosse utilizada caso fosse livremente pactuada. Tal indagação gerou certo debate entre os tribunais pátrios.
Nota-se que, pouco depois do advento do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 9.307/96, a qual dispõe sobre o instituto da arbitragem, em seu art. 4º, §2º, consente a aplicação de cláusula compromissória aos contratos de adesão, desde que cumpridos alguns requisitos. Vejamos:
Art. 4º § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. (grifos nossos).
Assim, gerou grande inquietação nos Tribunais Pátrios sobre a aceitação da utilização da arbitragem quando de comum acordo nos contratos de adesão consumeristas, tendo em vista a vulnerabilidade jurídica que permeia a maioria da população brasileira, o que desvirtuaria o desiderato da Lei nº 8.078/90, a qual veio para tutelar a hipossuficiência e vulnerabilidade dos consumidores.
In casu, haveria grande possibilidade de que, além da vulnerabilidade que lhe é inerente face às prerrogativas dos fornecedores, os consumidores padecessem com a vulnerabilidade jurídica, tendo em vista que, mesmo com a aceitação expressa da cláusula de arbitragem, a maioria dos consumidores não teria conhecimento jurídico para saber o que é, de fato, a arbitragem.
Desta feita, face à grande discussão gerada, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.189.050, decidiu que a cláusula de arbitragem prevista em contrato de adesão só terá eficácia se a iniciativa pelo compromisso arbitral partir do próprio consumidor ou se, posteriormente, ratificar sua instituição.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. CONTRATO DE ADESÃO. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. POSSIBILIDADE, RESPEITADOS DETERMINADAS EXCEÇÕES. 1. Um dos nortes a guiar a Política Nacional das Relações de Consumo é exatamente o incentivo à criação de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo (CDC, art. 4°, § 2°), inserido no contexto de facilitação do acesso à Justiça, dando concretude às denominadas "ondas renovatórias do direito" de Mauro Cappelletti. 2. Por outro lado, o art. 51 do CDC assevera serem nulas de pleno direito "as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem". A mens legis é justamente proteger aquele consumidor, parte vulnerável da relação jurídica, a não se ver compelido a consentir com qualquer cláusula arbitral. 3. Portanto, ao que se percebe, em verdade, o CDC não se opõe a utilização da arbitragem na resolução de conflitos de consumo, ao revés, incentiva a criação de meios alternativos de solução dos litígios; ressalva, no entanto, apenas, a forma de imposição da cláusula compromissória, que não poderá ocorrer de forma impositiva. 4. Com a mesma ratio, a Lei n. 9.307/1996 estabeleceu, como regra geral, o respeito à convenção arbitral, tendo criado, no que toca ao contrato de adesão, mecanismos para proteger o aderente vulnerável, nos termos do art. 4°, § 2°, justamente porque nesses contratos prevalece há desigualdade entre as partes contratantes. 5. Não há incompatibilidade entre os arts. 51, VII, do CDC e 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/96. Visando conciliar os normativos e garantir a maior proteção ao consumidor é que entende-se que a cláusula compromissória só virá a ter eficácia caso este aderente venha a tomar a iniciativa de instituir a arbitragem, ou concorde, expressamente, com a sua instituição, não havendo, por conseguinte, falar em compulsoriedade. Ademais, há situações em que, apesar de se tratar de consumidor, não há vulnerabilidade da parte a justificar sua proteção. 6. Destarte, a instauração da arbitragem pelo consumidor vincula o fornecedor, mas a recíproca não se mostra verdadeira, haja vista que a propositura da arbitragem pelo policitante depende da ratificação expressa do oblato vulnerável, não sendo suficiente a aceitação da cláusula realizada no momento da assinatura do contrato de adesão. Com isso, evita-se qualquer forma de abuso, na medida em o consumidor detém, caso desejar, o poder de libertar-se da via arbitral para solucionar eventual lide com o prestador de serviços ou fornecedor. É que a recusa do consumidor não exige qualquer motivação. Propondo ele ação no Judiciário, haverá negativa (ou renúncia) tácita da cláusula compromissória. 7. Assim, é possível a cláusula arbitral em contrato de adesão de consumo quando não se verificar presente a sua imposição pelo fornecedor ou a vulnerabilidade do consumidor, bem como quando a iniciativa da instauração ocorrer pelo consumidor ou, no caso de iniciativa do fornecedor, venha a concordar ou ratificar expressamente com a instituição, afastada qualquer possibilidade de abuso. 8. Na hipótese, os autos revelam contrato de adesão de consumo em que fora estipulada cláusula compromissória. Apesar de sua manifestação inicial, a mera propositura da presente ação pelo consumidor é apta a demonstrar o seu desinteresse na adoção da arbitragem - não haveria a exigível ratificação posterior da cláusula -, sendo que o recorrido/fornecedor não aventou em sua defesa qualquer das exceções que afastariam a jurisdição estatal, isto é: que o recorrente/consumidor detinha, no momento da pactuação, condições de equilíbrio com o fornecedor - não haveria vulnerabilidade da parte a justificar sua proteção; ou ainda, que haveria iniciativa da instauração de arbitragem pelo consumidor ou, em sendo a iniciativa do fornecedor, que o consumidor teria concordado com ela. Portanto, é de se reconhecer a ineficácia da cláusula arbitral. 9. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1189050 SP 2010/0062200-4, Relator: Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 01/03/2016, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/03/2016) (grifos nossos)
Diante do posicionamento do Ilustre Ministro, tem-se por certo que é possível que seja instituída cláusula de arbitragem nos contratos consumeristas, desde que o próprio consumidor tome a iniciativa ou a ratifique expressamente.
Assim, compreende-se que o Código de Defesa do Consumidor proíbe a instituição forçosa da utilização da arbitragem, sendo admitido pelo Superior Tribunal de Justiça que a mesma seja utilizada nos contratos consumeristas desde que a iniciativa seja do consumidor ou, não sendo, o mesmo ratifique expressamente sua vontade na utilização de tal instituto.