4 DIFERENÇA ENTRE O VALOR DECLARADO NO CAPITAL SOCIAL E O VALOR DE MERCADO E O ALCANCE DA REGRA IMUNIZANTE
A imunidade ora em debate é concedida sob condição resolutória, uma vez que pode ser revogada a partir do momento em que se constatar que a sociedade empresária tem como atividade preponderante as atividades mencionadas como impeditivas: compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
Para que se proceda essa verificação, o CTN estipula que a pessoa jurídica beneficiada seja monitorada, conforme disposto no art. 37:
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.
Ao final do período de apuração (02 anos para as empresas em atividade e 03 anos para as empresas em início de atividade), caso se constate que a contribuinte não tem direito à imunidade, o Fisco deve lançar o imposto devido.
Mas, para que isso seja possível, é necessária a apuração do valor de mercado do bem integralizado, a fim de que seja possível esse lançamento ulterior, que deve ser feito com base no momento da ocorrência do fato gerador, conforme expressamente previsto no § 3.º do artigo 37 acima, bem como no art. 144 do CTN[4].
Como a base de cálculo do ITBI é o valor de mercado do bem, e como este valor é altamente suscetível a fatores diversos, é fundamental que a Fazenda apure o valor na época em que a operação de integralização é apresentada, para preservar um dos elementos fundamentais para a caracterização do fato gerador do imposto.
É nesse momento que se constata se há e qual é a diferença eventual entre o valor declarado no contrato social e aquele que o mercado aponta como correto para o bem avaliado.
Tradicionalmente, as Fazendas municipais têm aplicado a regra imunizante apesar de constatar essa diferença, muitas vezes gigantesca, a exemplo da contribuinte que figura no RE 796.376. Entretanto, a partir da decisão sob exame cabe uma reflexão mais detida a respeito do seu conteúdo.
A expressão chave para entender o alcance dessa imunidade é aquela prevista no texto constitucional: “incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”. Ora, tudo o que for incorporado na forma de capital social é imune, caso contrário sofrerá incidência tributária.
Desse ponto de vista, é pertinente o questionamento levantado a respeito do alcance da norma constitucional, por se tratar de uma restrição ao poder de tributar, e que portanto, deve ser interpretada não com liberalidade, mas sim de forma a buscar os exatos reflexos pretendidos pelo texto constitucional, nem mais, nem menos.
Para colaborar com o debate, interessante a transcrição de um trecho do voto do Desembargador Jaime Ramos:
Todavia, a imunidade tributária não é ampla e irrestrita, mas apenas em relação ao valor do imóvel suficiente à integralização do capital social, vale dizer, se o capital social a ser integralizado é de R$ 10.000,00, por exemplo, e o valor do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica para a realização desse capital é de R$ 30.000,00, o imposto sobre a transmissão de bens (ITBI) não incidirá tão somente sobre a importância de R$ 10.000,00.
Isso porque a intenção do legislador constituinte, ao estabelecer a imunidade do ITBI sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, destinados à integralização do capital social, foi a de facilitar a instituição/criação de novas sociedades e a movimentação de bens que representassem o capital exigido para tal finalidade, e não a de criar mecanismos a fim de que os sócios transferissem para o patrimônio da pessoa jurídica imóveis de valor superior àquele necessário à integralização do capital social, e assim ficar totalmente imunes à tributação.
Aliás, o Código Tributário Nacional determina que, “ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobrea transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior: I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito (art. 36 – grifo aposto).
Logo, não é razoável que se aplique a imunidade tributária sobre o valor total do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica, quando apenas parte dele foi suficiente para a integralização do capital social, ou seja, sobre o valor do imóvel que excede o capital social integralizado haverá a incidência do imposto (ITBI).
Ainda que as partes tenham liberdade para contratar o valor do capital social a ser subscrito e integralizado, essa liberdade não pode ser oposta ao fato de que, ao declarar o valor de bens imóveis por valores dissociados daqueles praticados no mercado, os sócios estão desrespeitando o princípio da realidade do capital social. Na lição de Gusmão (2007, p. 204): “Pelo princípio da realidade do capital social este não pode ser fictício ou irreal. Deve corresponder ao valor real declarado no contrato”.
Portanto, não se trata de restringir a aplicação da imunidade, mas sim calibrar seus efeitos dentro dos limites impostos pela Constituição, e assim impedir um verdadeiro enriquecimento ilícito por parte dos sócios que integralizam imóveis por valores inferiores ao real.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o imóvel é integralmente transferido ao patrimônio da pessoa jurídica, mas somente uma parcela dele é suficiente para integralizar o capital social, é forçoso admitir que essa entrada tenha outra justificativa, que pode ser encontrada na investigação da natureza econômica da operação.
A transferência de um bem imóvel pode ser feita, quanto à natureza econômica da operação, a título gratuito ou oneroso. Caso seja uma transferência gratuita, ficará no campo de incidência do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD); se onerosa, pertencerá ao campo de incidência do ITBI.
No caso em estudo, há que se desconsiderar uma transação gratuita, uma vez que a transferência está sendo feita por pessoas diretamente interessadas no resultado final obtido pela sociedade com aquele imóvel, e que inclusive está sendo transferido a guisa de ser usado em uma atividade produtiva.
Ademais, a doação pura e simples pressupõe uma redução patrimonial daquele que doou para o beneficiário, sem contrapartida para o doador. Ora, se considerar toda a transferência desse excedente uma doação, então a integralização do capital social também deveria ser encarada assim, o que não é o caso.
Estando o imóvel integralmente à disposição da sociedade, e revertendo seus frutos na forma de dividendos para os detentores das cotas sociais, deve-se admitir a onerosidade dessa transferência.
Assim assiste razão à decisão recorrida, e que entendeu não ser possível estender a imunidade à totalidade do imóvel integralizado, por se tratar de operação tributável pelo ITBI sob a forma de cessão onerosa do imóvel, com a finalidade de exploração na atividade produtiva da sociedade, com contrapartida nos eventuais lucros a serem obtidos dessa exploração.
Por fim, resta ainda uma questão importante.
Ainda que seja possível a aplicação da regra constitucional tal como proposta a partir da interpretação dos dispositivos estudados, ressalta-se que, em nome do princípio da reserva legal, é importante que o município preveja em sua legislação tributária uma norma disciplinadora dessa forma de interpretação, a fim de afastar eventuais acusações de ilegalidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30. jun 2015.
BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172.htm>. Acesso em: 30. jun 2015.
BRASIL. Lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acesso em 02. jul 2015.
BRASIL. Lei 9.249 de 26 de dezembro de 1995. Altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9249.htm. Acesso em 02. jul 2015.
BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 30. jun 2015.
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas. Direito Autoral. 2a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 27a ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GUERRA, Érica. A ordem econômica à luz dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://ericaguerra.jusbrasil.com.br/artigos/121944101/a-ordem-economica-a-luz-dos-fundamentos-da-republica-federativa-do-brasil. Acesso em: 30. jun 2015.
GUSMÃO, Mônica. Curso de Direito Empresarial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MACEDO, José Alberto Oliveira. ITBI Aspectos Constitucionais e Infraconstitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
Notas
[1] Imposto sobre a transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.
[2] Neste artigo serão considerados somente os dois tipos societários mais comumente encontrados nas sociedades empresárias nacionais: as sociedades anônimas (S/A) e a sociedade por cotas de responsabilidade limitada (Ltda.), já que os demais tipos societários previstos na lei civil caíram em desuso, sendo raramente encontrados.
[3] E da pessoa natural no caso da EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Tributária), prevista no art. 980-A do Código Civil: “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”. (grifos não presentes no original). Aplica-se subsidiariamente à EIRELI o regramento da Ltda., a teor do disposto no art. 980-A, § 6º
[4] Art. 144 do CTN: “O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”.