Modelos de Análise de Decisões no STF: HC do Ex-Presidente Lula

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Trata-se de trabalho de iniciação científica na área de análise e avaliação de argumentação judicial, nomeadamente a análise de argumentação judicial no âmbito de decisões, proferidas em tribunais superiores, correlatas ao Direito Privado.

1 INTRODUÇÃO

O Século XX, em especial a sua segunda metade, posterior à Segunda Guerra Mundial, caracteriza-se pela germinação do chamado “neoconstitucionalismo”. A partir do fracasso de uma série de regimes ditatoriais – Argentina, Chile, Brasil, v. g. –, ascenderam países democráticos, possuindo, cada um deles, como fundamento desta recém proclamada democracia, com vistas à postivação dos princípios fundamentais da nação, dos direitos e deveres inerentes aos cidadãos, à legitimação da cultura jurídica e de suas idiossincrasias, e dando as estruturas basilares da totalidade do ordenamento jurídico, uma Constituição.

Esta nova configuração do cenário jurídico mundial, a partir da adoção, por parte de um grande número de países, principalmente daqueles no interior da cultura jurídica ocidental, do modelo constitucional democrático, naturalmente, provocou uma miríade de consequências, das quais cabe aqui ressaltar as consequências doutrinária e judicial. O modelo constitucional de Estado como difundido nas últimas décadas do Século XX desencadeou verdadeira crise nas concepções doutrinárias que concorreram durante toda a sua extensão, a saber, as concepções positivista normativista, jusnaturalista, realista, e o ceticismo jurídico, ensejando a criação de novas concepções, capazes de responder e adequar-se ao novo paradigma de maneira mais satisfatória, como o chamado positivismo crítico e o pós-positivismo. Ademais, o modelo provocou a ascenção valorativa do instituto da argumentação judicial – já que as decisões deveriam estar sempre justificadas e conformadas aos princípios e valores do ordenamento, como imposição democrática de vedação à arbitrariedade judicial.

No modelo ensejado pela Constituição brasileira, por exemplo, se encontra imperativa a necessidade, com base no fundamento democrático, de os juízes justificarem suas decisões por meio da integração do caso fático não só com uma norma compreendida isoladamente, mas também com toda a malha principiológica presente no documento fundamental, podendo até mesmo recusarem-se a aplicar determinada norma com base na sua incompatibilidade com os valores e princípios do ordenamento. Não caberia falar de positivismo, em tal configuração – dado que sua compreensão sobre o papel do juiz é por demais restrita, bem como previlegia demasiadamente a dimensão lógico-fomal da argumentação judicial, num caráter meramente subsuntivo –, nem em realismo – já que possui a maioria de suas bases em comum com o positivismo, embora coloque menos enfoque sobre a esfera lógico-formal da argumentação judicial, e mais sobre a lógico-material –, e muito menos em jusnaturalismo – visto que este perde sua importância prática por meio da positivação dos direitos e garantias fundamentais e inalienáveis na Constituição – ou de ceticismo jurídico – a perspectiva de que fatores externos ao Direito acabariam, sempre ou na maioria das vezes, por determiná-lo, não contribui positivamente para a análise argumentativa das decisões, já que tende a interpretá-las como “viciadas”.

Conforme o aqui debatido, como primeiro marco teórico, estabelecemos, como concepção a determinar o pano de fundo das análises desenvolvidas, concepção afim à defendida por Dworkin, em seu pós-positivismo, principalmente no que diz respeito ao entendimento da Constituição como documento inaugurador de comunidade principiológica. Justifica-se esta decisão com base nos objetivos gerais pretendidos por este trabalho de iniciação científica, a saber, compor artigo capaz de auxiliar – consideradas suas limitações de dimensão e de tempo de desenvolvimento –, servindo como ferramenta a ser utilizada para fins estatísticos e/ou fins de delineamento de quadro de maior amplitude, na identificação de existência de padrões argumentativos nas decisões judiciais em matéria de Direito privado; objetivo geral seguido pelo objetivo específico de avaliar, argumentativamente, seguindo os padrões doutrinários sobre a matéria desenvolvidos pelo Professor Manuel Atienza – que também utiliza posição afim à de Dworkin em suas análises – e, excepcionalmente, por outros doutrinadores como Alexy – que parte de bases diferentes –, decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema “judicialização da política” – HC 152752, que tem por paciente o ex-presidente Lula. Em face de tais objetivos, o pós-positivismo de Dworkin é especialmente frutífero, pois permite por em foco, não em detrimento das outras, a dimensão pragmática do Direito e da justificação judicial, importantíssima para uma apropriada análise argumentativa no interior do paradigma atual.

É importante notar, já prosseguindo à delimitação da metodologia utilizada, que Atienza, no livro que será utilizado como referência das análises traçadas – a tradução brasileira de seu livro “Curso de Argumentação Jurídica –, dispõe, de maneira explícita, na página 166, que a argumentação desenvolvida pelos tribunais constitucionais não é facilmente equiparável à argumentação judicial das instâncias ordinárias. É bem verdade que estes possuem peculiaridades, tratam-se de órgãos colegiados, não há nova deliberação sobre provas fáticas ou sobre o mérito original da questão, a decisão não diz tanto respeito aos sujeitos – no controle incidental – como diz respeito à sociedade como um todo, possuem grande importância política, principalmente em solo pátrio, em que as decisões são televisionadas e sofrem exacerbada pressão popular – o que nos é interessante, neste contexto –, entre outros aspectos. Não obstante, o presente trabalho desenvolve análises e faz avaliações das argumentações com base no modelo lecionado por Atienza, apesar de não segui-lo exatamente a risca – os votos são demasiado longos, e, às vezes, está ausente voto escrito (Ministros Cármen Lúcia e Marco Aurélio, no caso em questão).

No livro mencionado, o professor realiza um diagrama para exemplificar a etapa da análise da argumentação com base num caso fictício: Um problema, P, de conteúdo proposicional a (se alguém deve ou não ser condenado, ou se alguém deve ou não ser considerado proprietário… conforme exemplos do livro), Pa, portanto, dividir-se-ia em dois ramos, “o que significaria que a resolução do problema depende de duas questões” (ATIENZA, 2017, p. 105). A partir daí, incidiriam vários argumentos, contrários e favoráveis às várias suposições destinadas à resolução das questões no interior do problema, levando, ao fim, à sua resposta. A análise dos argumentos do HC aqui explicitado foi realizada desta maneira, de forma a identificar as questões centrais estabelecidas por cada Ministro em seus respectivos votos, bem como as respostas oferecidas a estas mesmas questões, mas não será reiteradamente demonstrada, visto que complexa e, de certa forma, confusa, preferindo-se sempre a mera elucidação das questões e respostas propostas pelos Ministros, sem recorrer a diagramas. Os critérios de avaliação exemplificados por Atienza também são aqui utilizados, a saber, universalidade, significando que o voto, em alguma medida, prima pelo princípio de “julgar de maneira similar situações similares” – liga-se à ideia de consistência lógica; a coerência, aqui no sentido de coerência do voto com os princípios e valores intrínsecos ao ordenamento jurídico compreendido em sua totalidade; a adequação das consequências, no sentido da tomada da decisão jurídica com base na ponderação das consequências das várias opções disponíveis; a moral social, em seu sentido autoexplicativo; e a moral justificada, aqui interpretada como a postura do construtivismo ou do procedimentalismo moral, recomendada por Atienza, que diz que “os princípios de uma moral justificada seriam aqueles a que chegaria por consenso um conjunto de agentes que discutiram respeitando certas regras mais ou menos idealizadas” (ATIENZA, 2017, p. 140).

Ficando assim estabelecidos os objetivos gerais, específicos, a base doutrinária e a metodologia, bem como delimitado o tema, resta complementar a justificativa. Num contexto jurídico como o brasileiro, marcado por uma Corte Constitucional forte, de impacto político visível, mas, não obstante, ainda regida pelos princípios intrínsecos ao Direito e ao constitucionalismo, faz-se de relevante interesse a análise argumentativa de seus julgados, eminentemente marcados pela retórica e dialética próprios ao sistema jurídico democrático atual cuja formação procurou-se resumir anteriormente. Dito isso, o HC do ex-presidente, por sua recente resolução, importância, e repercussão popular, foi escolhido dentre a miríade de opções.

No presente trabalho, analisaremos e avaliaremos pormenorizadamente apenas três, dos onze votos proferidos na decisão a respeito do provimento de HC ao ex-presidente Lula – não sendo excluídas, entretanto as eventuais exposições de similaridades com os votos não explicitamente analisados. Tendo em vista a dimensão do trabalho, a representatividade de tais votos – cada um deles corresponde a uma das três correntes interpretativas presentes na discussão – far-se-á suficiente para a constituição de certo entendimento sobre a decisão e, principalmente, sobre o modo de argumentar do Tribunal. Partindo de uma breve explicação do caso, iremos à análise e avaliação – conjunta – dos votos, finalizando por uma avaliação crítica do conjunto dos dados obtidos, com a apresentação dos resultados alcaçados.


2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Do habeas corpus

Após a apuração de provas, condução de audiências, entrevistas com testemunhas e todos os outros recursos que competem, idiossincraticamente, às instâncias ordinárias, o então paciente do HC de nº 152751, Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República Federativa do Brasil, obteve condenação, primeiro na 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, com sentença proferida pelo Juiz Sérgio Moro, sendo sentenciado a 9 anos e seis meses de prisão, e, em seguida, pelo TRF-4, tendo sido a pena agravada para 12 anos e 1 mês. Nesse ínterim, visando aguardar em liberdade o julgamento dos recursos especiais e extraordinários que interpôs – visto que, após a condenação pelo TRF-4, segundo o entendimento então dominante, poder-se-ia dar início à execução provisória da pena de prisão – o ex-presidente, por intermédio de seus advogados, impetrou também writ destinado, primeiro, ao STJ, onde restou denegado com ordem para que se iniciasse a execução da pena, e, posteriormente, ao STF, com vista a anular o proferido quando da impetração do habeas corpus no STJ. É neste momento que se iniciam as argumentações aqui analisadas.

Tendo em vista o caráter de remédio constitucional do instituto do habeas corpus, com a função de corrigir, em instância superior, decisões de caráter ilegal, abusivo ou teratológico das instâncias inferiores possuidoras de efeitos imediatos à liberdade de locomoção do paciente, o julgamento do HC nº 152751 foi realizado com caráter de urgência, de modo a antecipar temporalmente o julgamento de outros recursos extraordinários (especiais e extraordinários) com a mesma matéria – em caráter menos amplo, entretanto –,impetrados pelo então paciente. Dotado de conteúdo duplo, estando, à superfície, questão de caráter eminentemente constitucional subjetivo – como também processual –, e, mais profundamente, questão de caráter constitucional de grande amplitude, o habeas corpus dividiu o entendimento do Tribunal quanto ao seu provimento, restando denegado por 6 votos à 5, com o voto da Presidente do Tribunal, Cármen Lúcia, como voto de Minerva – episódio que se faz interessante, dado que a matéria constitucional subjacente ao pedido contido no HC já havia sido contemplada outras 4 vezes, na história recente do Tribunal. Votaram, na ordem, os Ministros Edson Fachin, relator, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello, e a Presidente Cármen Lúcia. Votaram vencidos Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Dias Toffoli.

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2.2 O voto do relator – tese da execução provisória da pena desde a condenação em segunda instância

Partindo para a análise dos votos e iniciando pelo voto do relator, Ministro Edson Fachin, obtemos o primeiro voto contrário à concessão do habeas corpus. O Ministro já havia votado de maneira negativa, com relação ao seu conhecimento.

Fachin estabelece, desde logo, estrutura argumentativa de pergunta-resposta, em seu voto. Começando por colocar o que entende tratar-se da questão central do HC, ou seja, a questão se estaria ou não imbuída de ilegalidade, abuso de poder ou teratologia a decisão proferida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça à qual o writ se refere, acaba por relegar atenção periférica ou residual às questões subjacentes, em seu sucinto voto escrito – composto de apenas 14 páginas.

A questão central estando delimitada, prossegue prontamente à formulação de sua resposta, apresentando argumento interessante por seu teor cíclico: não poderia haver abuso de poder, teratologia ou ilegalidade na decisão proferida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, dado que esta refere-se – inclusive citando explicitamente – e baseia-se em entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal. Boa parte do restante do voto dedica-se a conferir maior força a este argumento, que, aliás, imperou entre os Ministros que votaram contra a concessão do HC, em especial Alexandre de Moraes e Rosa Weber, que também adotam este sistema de “procurar responder à questão central do pedido”, chegando às mesmas premissas, e posteriores conclusões, do relator. Sobre o Ministro Alexandre de Moraes, ademais, este também refere-se explicitamente ao fato de o HC, por sua formulação peculiar, acabar por encerrar duas problemáticas codependentes, de modo que, ao decidir-se sobre a questão constitucional mais ampla, subjacente, torna-se impossível não extender a decisão à sua faceta mais objetiva, manifestando-se no sentido de que eventuais alterações futuras de posicionamento da Corte Constitucional não podem ter a força de transformar decisões judiciais inicialmente legais em ilegais – procurando mitigar a codependência das proposições, portanto. Todos os três mencionaram, como princípio da maior importância no caso presente, a ser contrabalanceado ao princípio da presunção de inocência em discussão, os princípios da segurança jurídica e da integridade da Justiça – princípio citado também por Luís Roberto Barroso e mesmo por Gilmar Mendes, voto vencido.

Se, desde 2016, prevalece, na jurisprudência do Supremo Tribunal, o entendimento de que seria, sim, possível, a prisão após condenação do réu em segunda instância, não haveria de se falar em abuso de poder, visto que ato consentâneo. O raciocínio de Fachin segue, mais ou menos, de forma a tentarmos adequa-lo ao modelo de análise de Atienza mencionado anteriormente, a linha: há um problema jurídico que divide-se em duas questões, uma de índole constitucional ampla, e outra de índole constitucional objetiva; quanto a de índole constitucional objetiva, apresenta-se nenhum argumento a favor de sua interpretação enquanto teratológica, abusiva ou ilegal, e um argumento autorreferente, sustentado pela citação de doutrina, do artigo 926 do CPC – que estabelece a necessitade de um stare decisis horizontal –, do princípio da segurança jurídica – também alegado no julgamento do HC impetrado por Lula no STJ pelo Ministro Joel Paciernak, citado na argumentação do relator –, bem como do artigo 927 do mesmo Código, no sentido de interpretá-la enquanto legítima; já quanto a de índole constitucional ampla, o Ministro reconhece a existência e o peso dos diversos entendimentos sobre a matéria, procurando antecipar alguns dos argumentos que serão utilizados nos votos que virão, rebatendo-os um a um e reforçando sua própria tese por meio da apresentação de julgados da Corte Interamericana de Direitos desfavoráveis para o Brasil, com vistas a destacar a morosidade judicial e a impunidade que ainda imperam em solo pátrio. Ele assim o faz, pois sustenta que o entendimento firmado pela Corte Suprema em 2016 deveria manter-se, tendo em vista sua função de realizar a promoção ativa da “dupla dimensão da proteção aos direitos humanos”, que se definiria não só pela proteção aos direitos políticos, individuais, socais, mas também pelo direito à punição dos violadores de direitos.

Parece imperar, dessa forma, na linha argumentativa de Fachin, certa primazia pelos ritérios da universalidade e da coerência jurídica, bem como certa ponderação de consequências. Entretanto, na segunda parte de sua exposição, quando da exploração da questão constitucional subjacente, percebem-se certos elementos de apelo à moral pública, como recurso retórico – ao recorrer a julgados da Corte Interamericana para a demonstração da morosidade de impunidade ainda característicos do Brasil e para a sustentação da chamada “dupla dimensão da proteção aos direitos humanos”.

2.3 Luís Roberto Barroso – o voto pelo “meio termo”

O voto – a análise aqui presente fez-se com base nas anotações pessoais do Ministro direcionadas ao voto no Plenário, visto que este inexiste na íntegra – do Ministro Luís Roberto Barroso assemelhar-se-ia quase que inteiramente, quanto ao teor dos argumentos utilizados, aos outros Ministros cujos votos lhe acompanharam, não fossem suas peculiaridades argumentativas, seu apreço pelos dados estatísticos – também presentes em Alexandre de Moraes, em grande medida, embora de forma diferente –, cuja fundamentação teórica, inclusive, explicita em seu voto, e sua sugestão criativa, manifestada ao final. Entretanto, é sua semelhança ao voto de Gilmar Mendes – de resolução contrária à sua –, que chama a atenção.

O Ministro inicia sua argumentação reconhecendo, desde já, a óbvia importância política do caso em exame, ressaltando também o fato da jurisprudência a respeito da questão constitucional subjacente já ter sido firmada por três vezes, em três diferentes ocasiões, seguindo para uma análise histórica da amplitude do princípio constitucional da presunção de inocência. Por muito tempo, segundo diz, permitiu-se a prisão desde a condenação em 2º grau de jurisdição – em verdade, permitia-se a prisão desde o 1º grau, até a revogação do instituto por meio da lei 11.719 de 20/06/2008 –, até que o entendimento, enfim, alterou-se, em julgado do STF datado no ano de 2009; após, extendeu-se um período de 7 anos, com o entendimento alterado, voltando este a reverter-se no ano de 2016, reconhecendo-se “mutação constitucional” baseada nos impactos negativos do entendimento anterior. A partir daí, Barroso dá uma série de exemplos, no interior destes 7 anos em que esteve alterado o entendimento da corte, em que imperaram a impunidade e a morosidade da Justiça, tendo vários casos desembocado em prescrição pura e simples – neste aspecto, assemelha-se a Fachin, bem como, novamente, a Gilmar Mendes.

Ao final da retrospectiva histórica que traça, e com base em interpretação dos incisos LVII e LXI da Constituição Federal, estabelece que a regra para a prisão, em território brasileiro, não seria a do trânsito em julgado, mas a da emissão de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, seria a da reserva de jurisdição, portanto, e não a de trânsito em julgado. Após, prossegue a uma demonstração de vários entendimentos internacionais, de modo a sustentar sua tese, bem como a uma explicação didática do que são princípios e regras – e de como efetuar a ponderação principiológica –, de modo a defender que a presunção de inocência tenderia a cair e, finalmente, inverter-se, após a condenação em 2º grau, quando outros princípios deveriam sobre ela prevalecer, como a proibição do excesso e a vedação à proteção deficiente (Rosa Weber traça argumentação afim, a partir deste argumento). Barroso alça a credibilidade e a respeitabilidade da justiça, assim como Rosa Weber e outros de seus contrapartes, como aspectos a serem levados em conta, no caso em questão, associando-os aos “principais papeis do Direito Penal”, nomeadamente os de prevenção geral, prevençao específica, retribuição e ressocialização – mais ou menos nos moldes já discorridos por Fachin – que far-se-iam deficientes, diante de uma possível retomada do entendimento dominante entre os anos de 2009 e 2016. O Ministro sustenta ainda que depois da condenação em 2º grau não haveriam mais dúvidas acerda da autoria e da materialidade do crime.

O argumento central da intervenção de Luís Roberto Barroso, dessa forma, parece ser a necessidade de vedação da proteção deficiente, entendendo a volta ao entendimento anteriormente constituído entre 2009 e 2016 como uma tendência nesse sentido, visto a grande quantidade de prescrições durante o período, com réus recorrendo indefinidamente. O Ministro afirma de forma reiterada que entender de forma literal o dispositivo constitucional que prevê o trânsito em julgado como condição inexorável para a execução da prisão conduz à ineficiência do sistema penal e à uma maior facilidade em prender criminosos pequenos e com baixos recursos do que criminosos de colarinho branco. “Sem a execução após a condenação em 2º grau, o sistema induz à prescrição”, diz, discorrendo estatisticamente sobre o sistema penal e demonstrando – fundando-se em uma doutrina essencialmente baseada nas circunstâncias fáticas do Direito – que em pouquíssimas ocasiões ocorre reforma significativa pro reo em recursos especiais e extraordinários – fato que sustenta a manutenção do atual entendimento do STF. Ademais, diante da possibilidade de sua tese principal não ser acolhida pela maioria do Plenário, chega a recomendar que se mitigue o potencial protelatório dos recursos especiais e extraordinários pelo estabelecimento, como marco de início para a execução da pena, a primeira decisão do STJ – sugestão idêntica à de Gilmar.

Diante do exposto, a argumentação de Barroso segue, assim como a argumentaçaõ traçada por Fachin, tendências universalistas, de coerência, mas, ao que parece, suas ponderações quanto as consequências da decisão a ser tomada, principalmente quanto ao impacto geral da mudança interpretativa concernente à problemática constitucional mais ampla, parecem ser de caráter mais proeminente, como a utilização de ferramentas como a estatística – e a base teórica por ele apresentada como pano de fundo para suas interpretações –, nos leva a concluir. O Ministro apela pela moral, no discurso retórico, mais de uma vez, quando demonstra asco e decepção quanto ao estado atual de ineficiência punitiva do Estado Brasileiro. Sua linha argumentativa parece seguir a lógica de perseguir, ao contrário do que ocorre na argumentação do relator e da maioria dos outros Ministros, e procurar atacar, mais fortemente, a tese subjacente, e não exatamente a questão de haver ou não teratologia, abuso, ou ilegalidade na decisão do STJ, posicionando-se sobre isso, praticamente, somente durante o parágrafo em que explicita de forma inequívoca o seu voto. Ao atacar a tese subjacente, o ministro cita extensivamente a doutrina e vale-se de ferramentas estatísticas – não estranhas ao restante dos membros do Tribunal, como revela o voto do Ministro Alexandre de Moraes.

2.4 Celso de Mello e a total extensão do princípio da não-culpabilidade

Por fim, Celso de Mello trata-se de nosso único representante dentre os Ministros que votaram por deferir o habeas corpus e de nosso voto representativo da corrente interpretativa, presente durante a votação, tendente a conferir a completa extensão ao princípio da não-culpabilidade – ou princípio da presunção de inocência.

“A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos, nem ao império dos fatos e das circunstâncias”, diz, em frase que parece cuidadosamente elaborada para parecer diametralmente oposta ao que afirmaram Ministros como Edson Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes. Celso de Mello parte de um raciocínio analógico, que compara os acontecimentos concernentes ao julgamento – bem como este próprio –, à acontecimentos inerentes à períodos anti-democráticos, a exemplo do período ditatorial experienciado pelo Brasil, de forma a sustentar a visão de que se estaria discutindo algo potencialmente indiscutível, sob o ponto de vista democrático, na ocasião. Trata-se de elemento peculiar, também, à sua linha argumentativa, o enfrentamento das problemáticas contidas no HC, não nos moldes usuais utilizados pelos outros Ministros, mas de forma diversa, estabelecendo a questão central na apreciação do HC e afastando a avaliação do mérito – que caberia às instâncias ordinárias –, no entanto, interpreta “apreciação do HC” como a apreciação da questão constitucional subjacente a este. É fenômeno comum, também, no decorrer do voto, a citação à doutrina constitucional – de onde ressaltam-se citações ao Ministro Gilmar. Boa parte do voto, entretanto, parece estar direcionada especificamente a sustentar a fundamentalidade do princípio da não-culpabilidade como um todo – objeto que não se encontrava em discussão e nem, muito menos, em discordância –, bem como defender que sua interpretação individual da impossibilidade da execução da pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória não impossibilitaria a execução de prisões cautelares nas hipóteses previstas em lei, e também a demonstrar universalidade interna quanto aos seus próprios julgados – tendo concedido habeas corpus em uma profusão de julgados sob sua tutela monocrática, o que, aliás, parece conflitar abertamente com o princípio da colegialidade e do respeito aos precedentes e entendimentos do Tribunal tão zelosamente explicitados durante o proferimento do voto da Ministra Rosa Weber.

Procura demonstrar, por meio de vários julgados do STF, contradições na apreciação do princípio. Muitos julgados demonstram, por exemplo, ser impossível adicionar o nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado. Ora, se tal formalidade, de consequências muito menos desfavoráveis ao réu que a privação de sua liberdade, não pode ser realizada, muito menos poderia a execução provisória da pena antes de transitada em julgado – é o entendimento que se pretende. Utiliza o art. 284 do CPP, adicionando a ele sua exposição de motivos e a justificativa do executivo, de modo a dar maior peso retórico ao argumento, que, por sua vez, dará força ao anteriormente mencionado. Rejeita a tese de que as pessoas recorreriam indefinidamente, atribuindo ao Legislativo a responsabilidade de efetual esse tipo de controle – tratar-se-ia de uma invasão imprópria do poder Judiciário, portanto, procurar resolver o problema por meio de interpretação, ainda mais sobre princípio fundamental não necessariamente ligado ao problema –, além de enumerar já algumas limitações existentes com relação à esfera recursal. Ressalta a irradiação do princípio da presunção de inocência para esferas estranhas à judiciária, como a administrativa. Rechaça a ideia de decaimento relativo do princípio. Destaca o importante papel da coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro.

Analisando de forma geral, Celso de Mello encaixar-se-ia, tendo em vista análise de seus argumentos, como predominantemente ligado ao aspecto de universalidade – por seu esforço visível em provar universalidade interna, consigo mesmo, e com as decisões anteriores por ele proferidas –, embora esta seja mitigada quando contraposta ao princípio da colegialidade e do respeito aos precedentes votados pelo Tribunal, fato que lhe faria carecer em coerência com os princípios internos e inerentes à sua função.

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Sobre o autor
Gustavo Henrique A. P. de Oliveira

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho realizado sob a orientação do Prof. Dr. Fabiano Hartmann Peixoto, na modalidade de Iniciação Científica da Universidade de Brasília.

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