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Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

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16/06/2005 às 00:00
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7. DEVER DE COOPERAÇÃO

Tradicionalmente, a obrigação, especialmente o contrato, foi considerada composição de interesses antagônicos, do credor de um lado, do devedor de outro. Por exemplo, o interesse do comprador seria antagônico ao interesse do vendedor. Tal esquema era adequado ao individualismo liberal, mas é inteiramente inapropriado à realização do princípio constitucional da solidariedade, sob o qual a obrigação é tomada como um todo dinâmico, processual, e não apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe aos terceiros, como vimos na tutela externa do crédito. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das condutas positivas que facilitem a prestação do devedor. O dever de cooperação é mais exigente nas hipóteses de relações obrigacionais duradouras.

Perlingieri ressalta que "a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação". Isso implica mudança radical de perspectiva: a obrigação deixa de ser considerada estatuto do credor, pois "a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" [20].

Ainda que não distinga os deveres gerais de conduta (salvo quando se refere à boa-fé) dos que denomina deveres acessórios de conduta, reconhece Antunes Varela que estes tanto recaem sobre o devedor como afetam o credor, "a quem incumbe evitar que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa para o obrigado e proporcionar ao devedor a cooperação de que ele razoavelmente necessite, em face da relação obrigacional, para realizar a prestação devida" [21]. Entendemos, porém, que a cooperação não é efeito secundário dos deveres acessórios, mas ela própria dever geral de conduta que transcende a prestação devida para determinar a obrigação como um todo.

O dever de cooperação resulta em questionamento da estrutura da obrigação, uma vez que, sem alterar a relação de crédito e débito, impõe prestações ao credor enquanto tal. Assim, há dever de cooperação tanto do credor quanto do devedor, para o fim comum. Há prestações positivas, no sentido de agirem os participantes de modo solidário para a consecução do fim obrigacional, e há prestações negativas, de abstenção de atos que dificultem ou impeçam esse fim.

Em certas obrigações o dever de cooperação é mais ressaltado, especialmente quanto ao credor. Orlando Gomes, referindo-se a Von Tuhr, demonstra que em algumas "é indispensável a prática de atos preparatórios, sem os quais o devedor ficaria impedido de cumprir a obrigação" citando o exemplo clássico da escolha do credor nas obrigações alternativas. Se o credor se nega a praticar o ato preparatório, torna-se responsável pelo retardamento no cumprimento da obrigação [22].


NOTAS

1 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: ERDP,1958, p. 22.

2 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1986, p. 117.

3 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 603-31.

4 Cf. HARTKAMP, Arthur. The principles of european contract law. Stvdia ivridica: colloquia 8. Coimbra, n. 64, p. 53-58, 2002.

5 CORDEIRO, 1997, p. 1.234.

6 MENGONI, Luigi. Spunti per una teoria delle clausule generali. In: Il principio de buena fede. Francesco D. Busnelli (Coord.). Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.

7 LARENZ, 1958, p. 143.

8 LARENZ, 1958, p. 110.

9 BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. St. Paul: West Publishing, 1990, verbete estoppel.

10 PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951, p. 102.

11 BORDA, Alejandro. La teoria de los actos proprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.

12 SCHREIBER, Andrson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

13 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 10.

14 Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido. Em visão profundamente individualista, diz que "ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’". Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado. HAYECK, Frederick. Liberalismo: Palestras e Trabalhos. Trad. Karin Strauss, São Paulo: Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51.

15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário de Gama Cury. Brasília: Ed.UnB, 1995, p. 109.

16 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 6ª edição. Paris: LGDJ, 1988, p. 273.

17 A diretiva européia nº 84/450/CEE define a publicidade como "qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, artesanal ou liberal tendo por fim promover o fornecimento de bens ou de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações".

18 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1993, p. 534.

19 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ada Pellegrini Grinover et al. (Coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 266.

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20 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 212.

21 VARELA, 1986, p. 119.

22 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 102.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Deveres gerais de conduta nas obrigações civis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 711, 16 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6903. Acesso em: 27 abr. 2024.

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