A escolha que se faz hoje, no Brasil, entre civilização e barbárie (sem lei) e democracia versus fascismo, em boa medida, passa pelo que denominamos aqui de Sservo Político.
Alguns chamam de imbecil político o que denominei Servo Político e, no meu caso, não é injúria à dignidade de ninguém.
O Servo Político é um passo à frente do “analfabeto político” (celebrizado pelo dramaturgo Bertold Brecht), aquele que nada vê, nada ouve e com nada se importa; sem saber que o alimento que não ingere é fruto de que nada lhe importuna o juízo.
O Servo Político, além disso, considera natural não lhe prestarem atenção, importância e respeito. É um fenômeno de massa, em que as pessoas são coisas e se dão por satisfeitas se e quando são números da produção em escala.
La Boetie, no final do Renascimento – recuperado pela “sociologia tecnológica” de Bauman no século XXI –, denominava de Servidão Voluntária. É dessa fonte que bebe água o Servo Político de hoje.
Na época de La Boetie, alguns povos já se libertavam da servidão por dívidas, ao passo que muitos se submetiam espontaneamente à servidão no trabalho e na pax celestial.
Hoje o servo serve ao capital, sem saber que o capital se serve dele.
Na sociedade de massas, em que a alteridade não tem significado porque não pode ser comprada, prevalece o self-made man. Que cada um se faça por si.
Como nem todos "se fazem por si", aprofunda-se o desnível entre estratos, classes, camadas e grupos sociais.
Logo, "quem não se fez por si" é discriminado como incompetente.
Sua escola e educação também serão tarifadas por incompetência. E o ciclo não se fecha, sempre aberto a mais uma rodada de discriminação.
Esse preconceito ou discriminação de classe, e na base da produção e do consumo, consolida-se socialmente. O Servo, voluntariamente, caminha para a estigmatização: “é assim porque é, e pronto”.
Muitos se consideram de fato inaptos (e ineptos) à modernidade. Estranhando os porquês do fracasso da competição desigual, fazem disso parte de sua natureza social.
Por isso, os servos atuais já se reconhecem como perdedores.
Perderam a corrida rumo ao sucesso, porque lhes foi "provado" o quanto são incapazes de fazer (por si) e de pensar (para si e para demais).
O analfabetismo funcional, por exemplo, lhes impede de reconhecer a extensão da autonomia, o poder desconcentrado que é inerente à autarquia: o exercício do poder.
Naturalizando-se o sentimento de inferioridade, somados o analfabetismo funcional e a indiferença diante do que não lhes diz respeito diretamente – a República –, os servos passam a ignorar o que lhes custa caro entender.
Esse preconceito e discriminação – de cima, abaixo e vice-versa – geram em outros a necessária resistência.
Porém, para o servo voluntário, entender o que oprime e o que liberta surge como um desafio doloroso. Um incômodo insuportável.
A servidão atual (ou idiotia), neste caso, é um déficit de compreensão.
Assim como é difícil compreender o que é a política, é complicado demais entender o que é liberdade.
Liberdade de que eu poderia reclamar, se posso ir e vir, e falar o que quiser?
Então, diminutivamente, não há quem queira ser libertado, porque o servo não se vê como servo.
Como “forçar à liberdade” o servo que se realiza – no sentido de “res”, coisa – na servidão voluntária?
Tudo que se diga em contrário soa como agressão, ofensa; como se o servo desafiado fosse aviltado em sua integridade ao ser chamado à "consciência de servo".
Na prática, ocorre a naturalização do racismo (raças inferiores), machismo (sexo superior), elitismo e sua ideologia de classes subalternas e dominantes.
Naturalizados os insumos do fascismo, não há necessidade de lutar pela descompressão, simplesmente porque o servo não vê a opressão.
Por isso também o discurso do politicamente correto e dos direitos humanos são confrontados pelas próprias vítimas da violação.
Na prática isso ainda explicaria porque algumas mulheres defendem homens agressores, abusadores ou que recebem o dobro do que elas no trabalho de mesma função. E negros e pobres acalantam seus antípodas e opressores.
Em suma, o Servo Político é aquele e aquela que, criados à margem de toda inclusão, não se percebem excluídos. E, desse modo, por ação ou omissão, acabam defendendo a exclusão de si e dos outros. Uma vez que se internalizou o sentimento de que aquilo que não se vê (Liberdade, Igualdade) não pode existir – e, portanto, não faz falta.
Quando não se sabe "o-que-se-é" (conhecimento de si e do entorno) não há dever-ser.
Neste conjunto, é certo alguns se julgarem no direito de serem tolos?
Há um direito para isso, se entendermos que a República é uma obrigação pública?
É preciso recordar que a diferença linguística entre servo e servidor não é gigantesca, ainda que ontologicamente (fazendo-se na história política) haja uma diferenciação abismal.
Por desconhecer o significado desta mudança de qualidade do cidadão, o Servo Político insiste em não querer direitos, porque não se julga aviltado – ou querer todos os direitos.
Neste caso, o servo quer todos os direitos porque, se há um déficit de mensuração da política e da opressão, é óbvio que não haverá análise ponderada, proporcional, do Direito.
Esse quadro mudaria se o servo, ao se curvar ante a autoridade opressora, emitisse um sinal de flatulência. Sua metáfora seria a ironia desconstrutiva do poder.
Pois, sua arma mais considerável ainda é o descrédito que carrega em sua irônica forma de ver a opressão.
Porém, para tanto, primeiro teria de se ver como oprimido.
Depois, a tarefa de todos seria impedir que o oprimido liberto da servidão voluntária se convertesse em opressor dos que ainda não são capazes de ponderar sobre o direito dos outros. Paulo Freire foi notável ao descrever isto.
Por fim, talvez pudéssemos pensar que a República, a nossa república (diminuta), não habilita o sujeito para não ser tolo ou para requerer apenas o “direito justo”.
De outro ângulo também podemos pensar que essas questões dizem respeito à capacidade individual/ética e intelectual de cada um. Acompanhando-se ou não o Espírito de evolução da Humanidade.
O fato é que esse conjunto é o traço mais forte deste breve século XXI e, obviamente, é predominante nas eleições domingueiras (em meio ao churrasco caseiro) de 2018 no Brasil.