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Servo político

19/09/2018 às 12:30
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Naturalizando-se o sentimento de inferioridade, somados o analfabetismo funcional e a indiferença diante do que não lhes diz respeito diretamente – a República –, os servos passam a ignorar o que lhes custa caro entender.

A escolha que se faz hoje, no Brasil, entre civilização e barbárie (sem lei) e democracia versus fascismo, em boa medida, passa pelo que denominamos aqui de Sservo Político.

Alguns chamam de imbecil político o que denominei Servo Político e, no meu caso, não é injúria à dignidade de ninguém.

O Servo Político é um passo à frente do “analfabeto político” (celebrizado pelo dramaturgo Bertold Brecht), aquele que nada vê, nada ouve e com nada se importa; sem saber que o alimento que não ingere é fruto de que nada lhe importuna o juízo.

O Servo Político, além disso, considera natural não lhe prestarem atenção, importância e respeito. É um fenômeno de massa, em que as pessoas são coisas e se dão por satisfeitas se e quando são números da produção em escala.

La Boetie, no final do Renascimento – recuperado pela “sociologia tecnológica” de Bauman no século XXI –, denominava de Servidão Voluntária. É dessa fonte que bebe água o Servo Político de hoje.

Na época de La Boetie, alguns povos já se libertavam da servidão por dívidas, ao passo que muitos se submetiam espontaneamente à servidão no trabalho e na pax celestial. 

Hoje o servo serve ao capital, sem saber que o capital se serve dele.

Na sociedade de massas, em que a alteridade não tem significado porque não pode ser comprada, prevalece o self-made man. Que cada um se faça por si.

Como nem todos "se fazem por si", aprofunda-se o desnível entre estratos, classes, camadas e grupos sociais.

Logo, "quem não se fez por si" é discriminado como incompetente.

Sua escola e educação também serão tarifadas por incompetência. E o ciclo não se fecha, sempre aberto a mais uma rodada de discriminação.

Esse preconceito ou discriminação de classe, e na base da produção e do consumo, consolida-se socialmente. O Servo, voluntariamente, caminha para a estigmatização: “é assim porque é, e pronto”.

Muitos se consideram de fato inaptos (e ineptos) à modernidade. Estranhando os porquês do fracasso da competição desigual, fazem disso parte de sua natureza social.

Por isso, os servos atuais já se reconhecem como perdedores.

Perderam a corrida rumo ao sucesso, porque lhes foi "provado" o quanto são incapazes de fazer (por si) e de pensar (para si e para demais).

O analfabetismo funcional, por exemplo, lhes impede de reconhecer a extensão da autonomia, o poder desconcentrado que é inerente à autarquia: o exercício do poder.

Naturalizando-se o sentimento de inferioridade, somados o analfabetismo funcional e a indiferença diante do que não lhes diz respeito diretamente – a República –, os servos passam a ignorar o que lhes custa caro entender.

Esse preconceito e discriminação – de cima, abaixo e vice-versa – geram em outros a necessária resistência.

Porém, para o servo voluntário, entender o que oprime e o que liberta surge como um desafio doloroso. Um incômodo insuportável.

A servidão atual (ou idiotia), neste caso, é um déficit de compreensão.

Assim como é difícil compreender o que é a política, é complicado demais entender o que é liberdade.

Liberdade de que eu poderia reclamar, se posso ir e vir, e falar o que quiser?

Então, diminutivamente, não há quem queira ser libertado, porque o servo não se vê como servo.

Como “forçar à liberdade” o servo que se realiza – no sentido de “res”, coisa – na servidão voluntária?

Tudo que se diga em contrário soa como agressão, ofensa; como se o servo desafiado fosse aviltado em sua integridade ao ser chamado à "consciência de servo".

Na prática, ocorre a naturalização do racismo (raças inferiores), machismo (sexo superior), elitismo e sua ideologia de classes subalternas e dominantes.

Naturalizados os insumos do fascismo, não há necessidade de lutar pela descompressão, simplesmente porque o servo não vê a opressão.

Por isso também o discurso do politicamente correto e dos direitos humanos são confrontados pelas próprias vítimas da violação.

Na prática isso ainda explicaria porque algumas mulheres defendem homens agressores, abusadores ou que recebem o dobro do que elas no trabalho de mesma função. E negros e pobres acalantam seus antípodas e opressores.

Em suma, o Servo Político é aquele e aquela que, criados à margem de toda inclusão, não se percebem excluídos. E, desse modo, por ação ou omissão, acabam defendendo a exclusão de si e dos outros. Uma vez que se internalizou o sentimento de que aquilo que não se vê (Liberdade, Igualdade) não pode existir – e, portanto, não faz falta.

Quando não se sabe "o-que-se-é" (conhecimento de si e do entorno) não há dever-ser.

Neste conjunto, é certo alguns se julgarem no direito de serem tolos?

Há um direito para isso, se entendermos que a República é uma obrigação pública?

É preciso recordar que a diferença linguística entre servo e servidor não é gigantesca, ainda que ontologicamente (fazendo-se na história política) haja uma diferenciação abismal.

Por desconhecer o significado desta mudança de qualidade do cidadão, o Servo Político insiste em não querer direitos, porque não se julga aviltado – ou querer todos os direitos.

Neste caso, o servo quer todos os direitos porque, se há um déficit de mensuração da política e da opressão, é óbvio que não haverá análise ponderada, proporcional, do Direito.

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Esse quadro mudaria se o servo, ao se curvar ante a autoridade opressora, emitisse um sinal de flatulência. Sua metáfora seria a ironia desconstrutiva do poder.

Pois, sua arma mais considerável ainda é o descrédito que carrega em sua irônica forma de ver a opressão.

Porém, para tanto, primeiro teria de se ver como oprimido.

Depois, a tarefa de todos seria impedir que o oprimido liberto da servidão voluntária se convertesse em opressor dos que ainda não são capazes de ponderar sobre o direito dos outros. Paulo Freire foi notável ao descrever isto.

Por fim, talvez pudéssemos pensar que a República, a nossa república (diminuta), não habilita o sujeito para não ser tolo ou para requerer apenas o “direito justo”.

De outro ângulo também podemos pensar que essas questões dizem respeito à capacidade individual/ética e intelectual de cada um. Acompanhando-se ou não o Espírito de evolução da Humanidade.

O fato é que esse conjunto é o traço mais forte deste breve século XXI e, obviamente, é predominante nas eleições domingueiras (em meio ao churrasco caseiro) de 2018 no Brasil.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Servo político. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5558, 19 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69048. Acesso em: 25 abr. 2024.

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