4.DO ENFRENTAMENTO DO TEMA
A partir do raciocínio supra, seja aquele que defende a plena existência e validade das leis interpretativas, seja aquele que defende sua inocuidade, é fato inconteste que o art. 3º da Lei Complementar n. 118/2005 não pode ter eficácia retroativa, posto restringir direito antes assegurado ao contribuinte pelo Superior Tribunal de Justiça.
Ainda que não se possa falar em direito adquirido ao prazo decenal, é certo que lei nova não pode retroagir para afetar legítima expectativa do contribuinte. É a lição de GILMAR FERREIRA MENDES:
"É bem verdade que, em face da insuficiência do princípio do direito adquirido para proteger tais situações, a própria ordem constitucional tem-se valido de uma idéia menos precisa e, por isso mesmo mais abrangente, que é o princípio da segurança jurídica enquanto postulado do Estado de Direito. A idéia de segurança jurídica tornaria imperativa a adoção de cláusulas de transição nos casos de mudança radical de uma dado instituto ou estatuto jurídico". (7)
Assim, resta claro que o art. 3º da novel legislação não é norma de caráter interpretativo, uma vez que modificou substancialmente o dispositivo que pretendia interpretar (no caso, o inc. I do art. 168, do CTN).
Nos termos do entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça, o §1º, do art. 150 do Código Tributário Nacional estabelece uma condição para a extinção do crédito tributário, qual seja a ulterior homologação do pagamento antecipado por parte do fisco. Daí que enquanto pendente tal condição resolutiva, definitivo não é o pagamento e, portanto, inviável a repetição. Já a norma do inc. I, do art. 168, é clara no sentido de que a extinção do crédito tributário é o ato que possibilita a ação de repetição do indébito, pelo quê se a norma pretensamente interpretativa acaba por "revogar" parte do § 1º, do art. 150, tem-se certo que de norma interpretativa não se trata. O art. 156, VII do mesmo Diploma Legal vem colocar uma pá de cal no assunto, ao dispor que extingue o crédito tributário o pagamento antecipado e a homologação do lançamento, nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§1º e 4º.
O Código Tributário Nacional, nos dispositivos acima citados, deixou claro que a extinção do crédito, nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, depende, mormente para que se legitime a repetição eventualmente devida, da ulterior chancela da Fazenda Pública, seja expressa, seja tácita. Afirmar o contrário seria prestigiar o entendimento de que a lei contém palavras inúteis, qual seja, no caso, o conjuntivo "e" presente no art. 156 do CTN. E, como se sabe, nos termos do cânone latino do "verba cum effectu, sunt accipienda", não se pode presumir que na lei constem vocábulos inúteis e/ou ineficazes. Aliás, essa é a lição que Carlos Maximiliano nos deixou com letras indeléveis, a de que "as expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis." (8)
Desta feita, tem-se como intolerável que se possa querer atribuir à pseudo-interpretação que revogou o regime jurídico anterior eficácia retroativa, pois que atenta aos mais elementares princípios constitucionais.
A chamada ‘tese dos cinco anos mais cinco’, na realidade, resulta nada mais nada menos de simples interpretação conjugada dos arts. 165, I, 168, I, 150, §4 e 156, VII do CTN, e da inércia permanente do fisco em sua função de fiscalizar, preferindo a automática constituição do crédito tributário, por omissão, ao cabo de cinco anos, mediante a chamada homologação tácita do pagamento antecipado.
Disto decorre que o legislador, por meio da interpretação dita autêntica, não tem, nunca teve e jamais terá o poder de modificar a interpretação dada pelo Poder Judiciário, detentor único da prerrogativa de aplicar a lei em última análise, bem como ressai inviável uma interpretação que não se coadune com o espírito evidente da lei interpretada, sendo certo que nosso ordenamento não admite exegese que implique em conclusões completamente desvinculadas do lógico. No caso, repita-se, o Judiciário limitou-se a aplicar os dispositivos legais claros, incontroversos e de facilíssima compreensão, afastando qualquer interpretação ilógica dada pelo fisco.
Quanto à constitucionalidade da aplicação futura do art. 3º da Lei Complementar n. 118, não há como se lhe negar. A novel legislação veio revogar dispositivo do CTN, que, recepcionado pela Constituição Federal como lei de status complementar, só poderia ser revogado por outra lei complementar, tal qual a lei objeto deste estudo. Ademais, detém o legislador complementar federal competência para dispor acerca de normas gerais em direito tributário, e, o dispositivo in comentum veicula, por certo, norma de caráter genérico e inespecífico. Ainda que se possa defender que o legislador andou mal em modificar o termo inicial do prazo prescricional para a ação de repetição de indébito, não há que se falar em inconstitucionalidade de qualquer espécie.
Andou mal o legislador, posto que descabe falar em extinção de algo que não existe. Isto porque quando do pagamento antecipado, ainda não existe crédito constituído, posto que ausente a figura do lançamento. Para que o crédito tributário exista como tal é preciso que seja ele previamente constituído pelo lançamento, que é privativo da autoridade administrativa tributária, nos precisos termos do art. 142 do CTN.
Em tese, é possível ao legislador modificar o entendimento sedimentado pela jurisprudência. No entanto, tal deve ser feito com parcimônia e apenas para o futuro, sob pena de se instaurar o caos e a insegurança jurídica.
O Superior Tribunal de Justiça, apreciando a constitucionalidade do dispositivo legal in comentum, decidiu, em maio próximo passado, pela irretroatividade do novo entendimento. Em tempo:
"Tributário. Repetição de indébito. Verbas indenizatórias. Adesão ao PDV. Férias não gozadas. Imposto de renda. Tributo sujeito a lançamento por homologação. Prescrição. Orientação firmada pela 1ª Seção do STJ, na apreciação do ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: natureza modificativa (e não simplesmente interpretativa) do seu artigo 3º. Inconstitucionalidade do seu art. 4º, na parte que determina a aplicação retroativa. Entendimento consignado no voto do ERESP 327.043/DF.
1. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).
2. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, §1º, 168, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a "interpretação" dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.
3. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF.
4. Recurso especial a que se nega provimento." (9)
Rematando, impende notar que a Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, foi concebida para adequar o CTN aos novos ditames normativos inaugurados pela nova Lei de Falências, porém, sorrateiramente, cuidou também de alterar o cômputo do prazo para o pleno exercício do direito de pedir a restituição de tributos pagos a maior ou que foram julgados indevidos pela Justiça, truque legislativo que, em razão da benevolência do Congresso e da volúpia arrecadatória do Executivo para sustentar superávits primários, vem sendo levianamente utilizado pelos burocratas do Planalto, tanto para criar novos impostos e aumentar alíquotas existentes, quanto para reduzir o prazo para recuperar tributos, a teor do disposto no art. 3º da Lei em referência, cuja aplicação retroativa, aliás, ex vi da segunda parte do art. 4º do mesmo diploma, além de contrariar princípios constitucionais notórios, ainda revela, diante de todo esse surrealismo tributário que ora vivenciamos, que o interesse da Fazenda não consiste apenas em arrecadar, mas também não devolver aquilo que recebeu indevidamente.
Referências Bibliográficas:
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Saraiva. 9ª ed., 2003. São Paulo.
CARNEIRO, Daniel Zanetti Marques. A Lei Complementar nº 118 e a prescrição da pretensão de restituição do indébito tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 21.
CARRAZZA, ROQUE ANTÔNIO. Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004.
CARVALHO, Paulo de Barros. In Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência, Editora Saraiva, 2ª edição, 1999.
COELHO, Sacha Calmon Navarro e LOBATO, Valter. Reflexões sobre o art. 3º da Lei Complementar 118. Segurança jurídica e a boa-fé como valores constitucionais. As leis interpretativas no Direito Tributário brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 108.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 18ª ed., Malheiros Editores – 2000.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13. ed., Forense, 1993..
MELO, Omar Augusto Leite. LC 118/05 e a contagem inicial do prazo para pleitear a restituição e compensação de indébito tributário. Revista Dialética de Direito Tributário. Junho/05. São Paulo, pág. 80
MENDES, Gilmar Ferreira. Princípio do direito adquirido. In: ARRUDA ALVIM et al. (coord.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro Moreira Alves. RT, 2003, p. 241.
NOTAS
1
Stein, Torstein. "A Segurança Jurídica na Ordem Legal da República Federal da Alemanha". Cadernos Adenauer n. 3, 2000, acesso à Justiça e Cidadania. Fundação Adenauer Stifung. In Coelho, Sacha Calmon Navarro e Lobato, Valter. "Reflexões sobre o art. 2º da Lei Complementar 118. Segurança Jurídica e a Boa-Fé como Valores Constitucionais. As Lês Interpretativas no Direito Tributário Brasileiro."Revista Dialética de Direito Tributário. Vol. 117. Junho de 2005. Pág. 110.2
Superior Tribunal de Justiça. ERESP 607383 / SC, Embargos de Divergência no Recurso Especial 2004/0113252-5, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção, Data da Publicação: DJ 10/11/2004, pág. 209.3
Carvalho, Paulo de Barros. In Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência, Editora Saraiva, 2ª edição, 1999, p. 210.4
Carrazza, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 320.5
Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Saraiva. 9ª ed., 2003. São Paulo, pág. 107.6. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed., Forense, 2000, § 98, pp. 93/94.
7
MENDES, Gilmar Ferreira. Princípio do direito adquirido. In: ARRUDA ALVIM et al. (coord.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro Moreira Alves. RT, 2003, p. 241.8
Maximiliano, Carlos. Op. Cit. P. 250.9
Superior Tribunal de Justiça. RESP 742362/MG, Min. Teori Albino Zavascki. Primeira Turma. Data do Julgamento 17/05/2005. Data da Publicação/Fonte DJ 30.05.2005 p. 263.