Em 62 a.C., Júlio César, pontífice máximo da religião romana, decidiu se divorciar de sua esposa, Pompeia, após episódio que trouxe dúvida sobre o seu comportamento. Segundo ele, dada a sua autoridade e posição, sua “esposa não deve estar nem sob suspeita”. Isso deu origem ao provérbio de que “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta.”.
Recentemente, Antonio Nucifora, economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil, nos falou sobre a necessidade que o País tem de exemplos de liderança moral ao desaprovar a recente decisão dos membros do STF, de aumentar os próprios salários, com reflexos para outros servidores, iniciativa havida como moralmente controversa por partir dos mais bem pagos servidores públicos, integrantes do grupo dos mais ricos em um momento de aperto para todos os cidadãos menos privilegiados¹.
Os dois casos, separados por milhares de anos, têm em comum, essencialmente, destacar a importância da aparência e do exemplo como elementos para a construção de uma percepção mais lisonjeira das nossas instituições e dos seus integrantes, com evidentes reflexos na cultura social.
Sem essa força do exemplo e da coerência com elevados padrões de ética, de combate ao patrimonialismo e ao salve-se quem puder, jamais teremos avanços para vencer a corrupção sistêmica que destrói o nosso País e desalenta os cidadãos.
A situação do STF ainda piora, pois na sequência o INSS decidiu recorrer de decisão do STJ que garantiu aos aposentados que precisam de cuidadores, de forma comprovada, um acréscimo de 25% no valor dos proventos.
É claro que nesse caso há obrigação do INSS recorrer, mas para a sociedade fica a incoerência do Governo estar prestes a acatar o (auto)aumento ao STF e demais carreiras jurídicas, enquanto os pobres e desvalidos aposentados, aos milhares, têm o direito contestado.
Há, pois, uma clara oportunidade de avanço nos nossos modelos institucionais, que ao perpetuar várias mazelas comprometem o decoro de poderes, dirigentes, parlamentares, governos e entes estatais em decorrência da existência de conflito de interesses concreto ou aparente.
Nem mesmo se discute se há impropriedade ou não em determinada atuação, pois a melhor definição do conflito de interesses é aquela dada pela INTOSAI, organização internacional não-governamental de entidades fiscalizadoras, com status consultivo no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, no sentido de também abranger a vertente preventiva de evitar questões que podem surgir ou aparentar surgir na conduta de determinado agente público.
Evidente desdobramento da integridade (ou decoro), o combate ao conflito de interesses busca evitar situações que envolvam riscos de corrupção ou que possam levantar dúvida sobre integridade e independência.
Equivale ao princípio da moralidade previsto na CF que, segundo o Judiciário brasileiro, não pode ser concretamente estabelecido mediante decisão judicial pela ausência de regras legais que definam as suas linhas e diretrizes diante de determinado fato. Ou seja, na maioria das situações é letra morta para evitar-se uma suposta ditadura do Judiciário decorrente do subjetivismo.
De um ponto de vista mais prático, o conflito de interesses está relacionado diretamente com a corrupção, pois pode ser descrito como “uma relação entre um evento e o meio que facilita ou torna possível a sua ocorrência”.
A governança corporativa e as ações que buscam garantir integridade nas empresas, em processo de aprimoramento constante, decorrem de forma objetiva do tema do conflito de interesses, enquanto no universo público temos uma rede protetora com mais buracos do que um queijo suíço.
De fato, a Lei 12.813, de 2013, trata do conflito de interesses de forma restrita no que tange às situações previstas e limitada por abranger somente o Poder Executivo Federal, mostrando-se insuficiente. Aparentemente, não atende a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção ratificada pelo Brasil em 2005, que exige a adoção de sistemas destinados a prevenir esses conflitos.
Nesse sentido, um bom indicativo é dado por Cláudio Araújo Reis e Luiz Eduardo Abreu², ao registrarem a omissão da legislação sobre a relação que o domínio político possui com a grande quantidade de cargos de livre nomeação e o tipo peculiar de conflito de interesses que disso resulta ou pode resultar. Não é à toa que um dos atuais candidatos ao Governo de Santa Catarina defende a simples extinção de todos eles.
No âmbito do Poder Legislativo, tem sido comum casos de relatores de projetos de lei com ligações diretas ou indiretas de interesse com os temas em debate, o que indica a existência de conflito ou, ao menos, completo desprezo às mais elementares regras de sua prevenção e de preocupação com a imagem da instituição. Também no Poder Judiciário há várias situações ensejadoras de regulação mais democrática e avançada.
Por outro lado, se temos vestais no parlamento, para as quais não há impropriedade na atuação pela inexistência de conflito efetivo – o que é sempre a defesa apresentada – mais fácil ainda será discutir e aprovar nova legislação mais abrangente que reprima e previna o conflito de interesses e o abuso da função pública pelo bem do combate à corrupção e ao decoro.
Não precisamos, para isso, como alguns defendem, esperar algumas gerações pela elevação do nível educacional do nosso povo. Basta reconhecer a força moralizadora e mobilizadora do exemplo tal qual buscou Júlio César há 2 mil anos. Precisamos institucionalizar a liderança moral.
Notas
(1) Sobre isso vide o excelente artigo de Roberto Macedo, “Decepção: o Supremo e sua pauta-bomba”
(2) Cláudio Araújo Reis e Luiz Eduardo Abreu, “Administrando conflitos de interesses”