Sempre que há falta do serviço há inversão do ônus da prova?

Resumo:


  • A responsabilidade civil do Estado pode ser objetiva, baseada no risco administrativo, ou subjetiva, vinculada à culpa dos agentes públicos, exigindo a comprovação de nexo causal entre a ação ou omissão estatal e o dano sofrido pelo particular.

  • A teoria do risco administrativo dispensa a prova de culpa da Administração, bastando ao prejudicado demonstrar o ato estatal e o dano, mas a responsabilidade pode ser elidida por causas excludentes, como culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito.

  • O ônus da prova recai sobre o demandante quanto ao fato constitutivo do seu direito, devendo demonstrar o nexo causal e o dano, enquanto a Administração Pública pode se eximir da responsabilidade provando causas excludentes de responsabilidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Em inúmeras situações de falta de serviço admite-se uma presunção de culpa do Estado, pois se assim não fosse, o administrado ficaria em difícil situação ao ter que comprovar que o serviço não se desempenhou como devia.

A responsabilidade civil do Estado, prevista no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal, tanto pode ser apurada em razão do risco da atividade pública, como em decorrência da culpa verificada no desempenho dessa atividade, por seus agentes.

De acordo com Menegale[1], a responsabilidade do funcionário público é o substrato da responsabilidade do Estado; onde de fato não houve responsabilidade direta do funcionário, não pode haver responsabilidade indireta do Estado.

Em regra, a responsabilidade do Estado tem, portanto, fundamento na atitude culposa do agente, que tenha liame com o dano verificado, estando a cargo do demandante o ônus da prova a respeito, conforme antes verificado.

Hauriou apud José de Aguiar Dias[2], ao comentar a teoria do risco administrativo, adverte que apenas excepcionalmente se deve utilizar o risco como pressuposto necessário à responsabilidade civil, quando insuficiente a teoria da culpa e que a evolução da culpa para o risco depende de obra legislativa e não de interpretação jurisprudencial.

Caio Tácito[3] acompanha esse entendimento, afirmando que o sistema que encontra ressonância na jurisprudência brasileira é o da culpa administrativa, reservando-se o princípio do risco aos casos excepcionais consagrados em lei.

A exemplo, a responsabilidade por conduta omissiva do poder Público não prescinde da demonstração de culpa, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello[4] que "determinando-se então a responsabilidade pela teoria da culpa ou da falta de serviço, seja porque este não funcionou quando deveria normalmente funcionar, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente".

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que "o Estado só responde por omissões quando deveria atuar e não atuou...", vale dizer: quando descumpre o dever legal de agir. Em uma palavra: quando se comporta ilicitamente ao abster-se. E ainda: "A responsabilidade por omissão supõe dolo ou culpa em suas modalidades de negligência, imprudência ou imperícia, embora possa tratar-se de uma culpa não individualizável na pessoa de tal ou qual funcionários, mas atribuída ao serviço estatal genericamente", para concluir que "só o exame concreto dos casos ocorrentes poderá indicar se o serviço funcionou abaixo do padrão a que estaria adstrito por lei".

Essa doutrina tem larga aceitação e agora, independente do fundamento da ação, a alegação de omissão estatal não poderá ser analisada sob o aspecto do risco, sendo defeituosa a inicial que contenha essa causa de pedir na hipótese aqui versada.

Isso porque a omissão decorre do descumprimento de dever legal, atento à regra constitucional do artigo 5º, inciso II e somente no exame do caso concreto se poderá avaliar a responsabilidade do ente público, obviamente sob a égide da ilicitude civil.

Há outras hipóteses em que o Poder Público não pode estar adstrito à responsabilidade decorrente do risco administrativo, por exemplo, quando o ato praticado não esteja revestido do caráter administrativo, equiparando-se a Administração ao particular, para esse efeito.

Típico exemplo ocorre nos acidentes de trânsito. A exemplo, anote-se a orientação jurisprudencial que se destaca:

“Em se tratando de delito de trânsito, a questão deve ser focada pelo ângulo da responsabilidade subjetiva, pois não pode interpretá-la sob a modalidade do risco administrativo. O ato de dirigir veículo não pode ser confundido ou interpretado como sendo um ato administrativo, ou seja, manifestação da Administração Pública, que, agindo em tal qualidade, procura adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou, ainda, impor obrigações aos administrados ou a si própria”[5]

“Não se aplica o princípio da responsabilidade objetiva do Estado, quando se trata de colisão de veículos”[6]

“Em se tratando de acidente de veículos, é entendimento desta Câmara que não se aplica na hipótese a teoria do risco administrativo, devendo, em consequência, ser provada a culpa da Administração”[7]

Na verdade, tal qual o direito comum, a teoria do risco administrativo, que é aquela decorrente da atividade extracontratual do Estado por atos de gestão, rende ensejo à responsabilidade independente da averiguação de culpa, porque de risco exclusivamente se trata, quando o ato lícito praticado pela Administração Pública tenha efeitos danosos sobre o indivíduo, de caráter genérico e anormal, sendo inexigível da parte o sacrifício a ela imposto, em benefício da coletividade.

Hely Lopes Meirelles[8] aborda o tema afirmando que, na avaliação do risco administrativo, não se cogita da culpa da Administração, bastando que a vítima demonstre o fato danoso e injusto ocasionado por ação ou omissão do Poder Público. Ensina o Mestre que tal teoria baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade, impondo-lhes ônus não suportado pelos demais, concorrendo, portanto, todos os demais administrados para a reparação, sendo o risco e a solidariedade social os suportes dessa doutrina.

Elcio Trujillo[9], autor de obra exclusivamente dedicada ao assunto, coloca como pressuposto da indenizabilidade decorrente da atividade lícita do Estado, o ato lícito que venha a causar um prejuízo especial e anormal, isto é, ato impositivo de sacrifício e não, simplesmente, restritivo de direito. Ainda assim, o ato deverá ter natureza administrativa e revela-se em razão do risco imposto pela atividade pública.

Disso resulta que o ato lícito, decorrente de atividade de natureza administrativa e que venha a causar restrições de direitos a toda uma coletividade, com fundamento no interesse público, não pode gerar qualquer direito indenizatório.

José Joaquim Gomes Canotilho[10], em obra antiga, dedicada à discussão do tema da responsabilidade do Estado por ato lícito à luz do ordenamento da época, considera que a necessidade de apuração de culpa na conduta do agente estatal tem como pressuposto a aplicação do direito privado e que a teoria do risco administrativo somente se verifica na seara da atividade lícita do Poder Público.

Afirma que a Administração Pública não poderia ser responsável independentemente da averiguação de culpa, em qualquer hipótese, a menos que se considere – hipótese inaceitável – a máquina estatal e todas as suas ramificações, como excepcionalmente perigosa, tornando indenizáveis situações que não se enquadram como típicas  de risco ou de perigo.

Weida Zancaner Brunini[11],  atualmente considerada a Autora que mais diretamente enfrentou a questão da abrangência da teoria do risco administrativo, inicia a abordagem do tema afirmando que o ato ilícito não tem a natureza de encargo atribuído pelo Poder Público ao particular, em razão da atividade administrativa, pois a ninguém será exigida tolerância nessa hipótese.

A Autora relata a posição de Amaro Cavalcanti, que admite a responsabilidade do Estado com pressuposto de culpa baseado na teoria da representação. Argumenta que a causalidade tem a sua explicação natural e fácil no princípio da representação, segundo a qual, o Estado é causa eficiente do ato lesivo, por tê-lo querido e praticado pelo seu funcionário ou representante.

Todavia, relatando o posicionamento de vasta doutrina, acaba concluindo a Autora que o fundamento da responsabilidade do Estado reside no exame da licitude do ato e do nexo de causalidade, resolvendo-se dessa forma na teoria objetiva.

Muito embora evidenciado o acerto da posição da ilustre doutrinadora, no deslocamento da teoria do risco administrativo exclusivamente para as hipóteses de ato lícito, não se pode admitir que o reconhecimento da ilicitude da conduta administrativa resultaria na desnecessidade de verificação de culpa, porque esta é elemento daquela. Segundo Alvino Lima, o ato ilícito, como denominação genérica, compreendendo o delito e o quase-delito da antiga doutrina, é um todo, do qual a culpa é apenas um dos elementos.

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Assim, mais defensável será a posição que admite a que responsabilidade objetiva pode abarcar o fundamento da culpa indireta, nos casos necessários e quando em exame a atividade ilícita da Administração Pública, como antes demonstrado, do que aquela que insere na teoria do risco as hipóteses de atividade ilícita.

No campo da prova, em sede de risco, aplica-se à hipótese as regras gerais do código de processo civil, cabendo ao demandante a prova do nexo de causalidade (e não de culpa, porque não se cogita de ilicitude) e à Fazenda Pública o ônus relativo à prova das causas excludentes – que resume a teoria da ação a cargo do autor e da exceção a cargo do réu, abordada no primeiro capítulo.

Isso porque a Constituição Federal não consagrou a teoria do risco integral, podendo ser elidida a responsabilidade civil do Estado mediante a prova de ocorrência das excludentes civis (culpa da vítima, caso fortuito, etc...).

A responsabilidade do Estado por ato lícito, portanto, tem como pressuposto o nexo causal entre os fatos e o dano causado, certo que a teoria do risco integral não encontra previsão legal em nosso ordenamento jurídico, a teor do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal.

 Essa disposição representa reedição do artigo 107 da anterior Carta Magna, a respeito do qual já se havia manifestado o Supremo Tribunal Federal:

"Responsabilidade Civil do Estado. Culpa exclusiva da vítima. O art. 107 da Constituição não adotou a teoria do chamado risco integral. Precedentes do STF".

 De fato, "não se qualifica como antijurídico, excluída desse modo a responsabilidade civil do Estado, o dano que tem como causa exclusiva o dolo ou a culpa grave do próprio prejudicado, sem que nenhuma falha da Administração, ou culpa anônima do serviço possa ser identificada como causa, ainda que concorrente, na verificação do evento danoso"[12].

Como já teve oportunidade de ressaltar o E.Tribunal de Justiça de São Paulo, "o risco administrativo não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano sofrido pelo particular, significa que a vítima fica dispensada de provar a culpa da Administração".

Assim, quanto ao ônus probatório, a teoria do risco administrativo não submete o Estado a nenhum tipo de inversão apenas porque dispensada a vítima da prova de culpa da Administração Pública.

É que a culpa, nesse caso, não se revela como pressuposto do reconhecimento da responsabilidade do Estado, sendo de todo irrelevante qualquer exigência de prova a respeito.

Resta todavia, ao Autor, o ônus da prova quanto ao fato constitutivo de seu direito, especialmente o nexo de causalidade entre a atuação estatal e o resultado apontado, bem como a anormalidade e especificidade da exigência pessoal decorrente da imposição administrativa.

Incumbe ainda ao demandante provar o dano e sua extensão, também como fatos constitutivos do direito reclamado.

Em se tratando, como visto, de atos administrativos a respeito dos quais o reconhecimento da indenizabilidade tenha como pressuposto a culpa indireta da Administração, seja porque esse tenha sido o móvel da demanda, seja porque a natureza do ato não guarde equivalência com o risco da atividade pública, como nos casos de conduta omissiva e de atos praticados sem  caráter administrativo, à parte incumbe o ônus da prova a respeito da ilicitude do ato, além do nexo de causalidade e do dano verificado.

Também não se pode modificar o regime de apuração quando se discuta a responsabilidade do Estado com base em relação protegida pelo Código de Defesa do Consumidor, seja na hipótese de culpa, seja na de risco, porque, como antes demonstrado, a regra de inversão do ônus da prova a favor do consumidor não implica na revogação do sistema probatório do Código de Processo Civil, muito menos das regras atinentes ao Estado em juízo, garantidoras do interesse público.


Notas

[1] Menegale, J. Guimarães, Direito Administrativo e Ciência da Administração, Rio, 1937

[2] Responsabilidade Civil, Vol. II, ed. Forense, pg. 606

[3] Revista de Direito Administrativo, vol. 55 pg. 262

[4] Celso Antônio Bandeira de Mello, Ed. Dir. Adm., SP, Ed. RT, SP 1986

[5] ITACSP-3a.Cam., Ap. 384.952, j.12.1.88

[6] RT 509/141

[7] RT 645/113

[8] Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 22ª ed. – pg. 563

[9] Responsabilidade do Estado por Ato Lícito – LED, 1996, pg. 101

[10] O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos – Livraria Almedina – LAEL – Coimbra

[11] Da Responsabilidade Extracontratual da Administração Pública – Ed. RT 1981

[12] Yussef Said Cahali, Responsabilidade Civil do Estado, ed. RT 1982, pg. 41

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Sobre os autores
Lucas Lopes Boccuzzi

Aluno de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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