5. CARACTERIZAÇÃO E AUTONOMIA DO ABUSO DE DIREITO
A primeira vista, para que o abuso de direito se faça presente, nos termos do que preceitua o Código Civil de 2002, necessário seria a existência de uma conduta que exceda um direito correspondente a determinada pessoa, a fim de que esta atue no exercício irregular de um direito.
A regra geral que deveria ser observada nos remete a razão de que cada direito tem de ser exercitado em obediência ao seu espírito peculiar, sem desvio de finalidade ou de sua inafastável função social. Não existe direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, posto que o exercício de qualquer direito deve se conformar com os fins sociais e econômicos inerentes ao mesmo, como também se balizar com o princípio da boa-fé.
Diante disso, para se proceder à caracterização do abuso de direito deve-se tentar identificar o seu motivo legítimo, o qual deve ser extraído, conforme leciona Heloísa Carpena (7),"das condições objetivas nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com sua finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de comportamento dado pela boa-fé e com a consciência jurídica dominante".
Em compasso com essa linha de raciocínio, torna-se imperioso fazer alusão ao sempre abalizado entendimento de Cristiano Chaves de Farias (8) quando o mesmo atesta que:
. .. não se pode deixar de reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva – princípio vetor dos negócios jurídicos no Brasil (arts. 113 e 421, CC) – porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício de direitos subjetivos (e de quaisquer manifestações jurídicas) contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial.
Caracterizado o ato abusivo mediante o exercício de um direito ou prerrogativa de maneira contrária aos valores que justificam o reconhecimento dos mesmos, procederemos a uma abordagem desse ato como categoria jurídica autônoma.
Não obstante o fato de encontrar-se inserido no plano da antijuridicidade, como também de ter sido incluído no Código Civil de 2002 no Título pertinente ao ato ilícito, o ato abusivo não pode ser confundido com o ato ilícito, consoante já fizemos a diferenciação anteriormente. Com efeito, entendemos que o abuso de direito se apresenta como uma categoria autônoma da antijuridicidade.
As teorias que negam a autonomia do ato abusivo se fundamentam na equiparação deste com o ilícito, em razão de ambos produzirem os mesmos efeitos, qual seja a responsabilização civil do agente. Todavia, discordamos de tal posicionamento, pois, a caracterização do ato ilícito nem sempre enseja a obrigação de indenizar. Podem ocorrer situações em que o indivíduo esteja acobertado por alguma excludente de responsabilidade.
Ademais, convém salientar que o abuso de direito não está condicionado à violação de limites formais ou concretas proibições normativas. Sua doutrina vai muito mais além dessa realidade, pois, os seus limites são ditados pelos princípios que regem o ordenamento jurídico, o que, mais uma vez implica o reconhecimento de sua autonomia jurídica.
A doutrina do abuso de direito está em sintonia com a atual tendência da racionalidade jurídica, a qual não mais se coaduna com a idéia da completude do ordenamento e sim com a consagração dos princípios como valores fundamentais do sistema jurídico nacional, os quais, em sua maioria, se encontram constitucionalizados. Vale destacar, em especial, para o estudo do abuso do direito, a incidência dos princípios da socialidade e eticidade, ambos consagrados pelo Código Civil de 2002.
Não se admite mais que o direito positivado possa prever exaustivamente todas as condutas anti-sociais ou indesejáveis. Tal função será melhor desempenhada pelos princípios, visto que os mesmos passaram a assumir um maior grau de normatividade, permitindo uma constante adequação do ordenamento jurídico às exigências de nosso tempo, de forma a tornar o sistema mais dinâmico.
Nesta realidade, o Magistrado seria chamado a exercer sua função de maneira mais inovadora e criativa e, acima de tudo, muito pouco dependente do texto legal. Assim, sempre que a jurisprudência transcender às prescrições normativas, os princípios do próprio sistema certamente serão acionados, para no âmbito de sua normatividade, adequarem-se ao caso concreto apresentado. É bom ressaltar que a hipótese anteriormente aventada não se confunde com a função integrativa dos princípios, a qual, por sua vez, é observada na existência de lacuna no ordenamento jurídico.
Por todas essas razões, não podemos nos furtar em admitir o instituto do abuso de direito como uma categoria jurídica autônoma, haja vista que o mesmo apesar de se encontrar inserido no plano da antijuridicidade, em nada se confunde com o ato ilícito, conforme já fora amplamente demonstrado.
6. A POSITIVAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO
A teoria do abuso de direito apesar de não representar uma inovação para o sistema jurídico nacional, visto que, o revogado Código Civil de 1916 já a reconhecia de forma indireta, apenas recebera sua positivação pelo ordenamento com o advento do Código Civil de 2002.
De acordo com o inciso I do art. 160 do Código Civil de 1916, não deveriam ser constituídos atos ilícitos os que fossem praticados no exercício regular de um direito reconhecido. A contrario sensu, podemos abstrair da redação do aludido dispositivo que os atos porventura praticados no exercício irregular de um direito seriam considerados como ilícitos.
Observe-se que o legislador de 1916 não consagrou diretamente a tese do abuso de direito. Pelo contrário, equiparou-o com o ato ilícito atribuindo responsabilidade ao titular pelos danos causados a terceiros. Esse tratamento legislativo em nada contribuiu para a compreensão e difusão da teoria no Direito pátrio, fazendo com que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pouco se ocupassem acerca desse tão importante instituto jurídico.
Com efeito, apesar de anos de ausência de previsão normativa específica, restou a jurisprudência à árdua missão de estabelecer contornos e aplicação ao abuso de direito, embora tenha havido muita dissonância nos entendimentos.
Dessa maneira, a jurisprudência procurou, durante anos, gerar uma solução satisfatória para as situações concretas que não se amoldavam à doutrina do ato ilícito. Tanto é assim que a caracterização do abuso pelos Tribunais tem sido relacionada ao descumprimento da função do direito subjetivo, como também a violação da boa-fé objetiva ou ao descumprimento de um dever moral.
Já o Código Civil de 2002, diferentemente de seu antecessor, consagrou de forma expressa a teoria do abuso do direito, muito embora não tenha trazido no texto legal a sua denominação, haja vista que o incluíra no Título pertinente aos atos ilícitos.
Sob a influência do Código Civil Português, o nosso atual Código Civil positivara o abuso de direito em seu art. 187 atribuindo que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
O abuso, portanto, não mais aparece relacionado ao exercício irregular de um direito ou prerrogativa individual, posto que passara a assumir função limitadora destes, mediante a imposição de limites éticos. Tais limites, por sua vez, serão estabelecidos em conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, os bons costumes e a função social e econômica dos direitos.
Conforme já poderíamos imaginar, a inserção do abuso de direito no bojo do Código Civil de 2002, apesar de ter significado um importante avanço em nosso ordenamento jurídico, não poderia escapar de algumas notas críticas, as quais passaremos a considerar em seguida.
Em primeiro plano, é mister considerar a confusão provocada pelo legislador ao ter inserido a teoria do abuso de direito no Título II do Capítulo V do Livro III – Do ato ilícito – uma vez que, não reconheceu a autonomia do ato abusivo perante o ilegal, deixando de promover, conseqüentemente, a identificação das duas espécies de antijuridicidade. A despeito disso, urge ressaltar que a própria norma expressamente dispôs que "também comete ato ilícito" aquele que age abusivamente.
Ademais, em decorrência do equívoco legislativo supra considerado, poder-se-ia atribuir como efeito da concepção do abuso de direito como espécie de ato ilícito, a responsabilidade subjetiva, sendo a culpa elemento quase indissociável do conceito de ilicitude. Na realidade, a aplicação da teoria do abuso de direito exige responsabilização objetiva, a qual encontra substrato na teoria do risco, e revela o ato abusivo através da confrontação entre o ato praticado e os valores tutelados pelo ordenamento civil-constitucional.
Na óptica de Heloísa Carpena, a afirmação de que será abusivo o ato que exceda manifestamente os limites do direito em questão, comporta várias objeções. A primeira estaria relacionada à utilização do advérbio "manifestamente", posto que o mesmo geraria dúvidas quanto ao seu alcance, ou seja, se diria respeito ao grau ou a quantidade. Ainda em conformidade com a citada doutrinadora, impõe-se negar ambas as hipóteses, vez que, tal circunstância não seria elemento do ato abusivo, sendo necessário à caracterização do mesmo, tão somente, a inobservância de limites axiológicos.
A crítica ao dispositivo constante do art. 187 do Código Civil persiste ainda quanto à afirmação de que o titular poderá abusar do direito quando "exercê-lo". Ocorre que o emprego de tal verbo pode gerar a falsa impressão de que a conduta omissiva não poderia caracterizar abuso, não correspondendo, portanto, com a realidade posta através das situações concretas.
Infeliz também fora a redação normativa ao referir apenas à titularidade de um "direito", tendo em vista que a utilização de tal expressão transparece a idéia de restrição da aplicabilidade da teoria. Vale salientar que o abuso, como categoria autônoma dos atos contrários ao direito, não se limita ao exercício de determinado direito subjetivo, identificando-se igualmente com outras situações jurídicas subjetivas, consoante já fora defendido por nós em linhas anteriores.
Não obstante as críticas direcionadas contra a literalidade de algumas expressões constantes do preceito normativo do art. 187 do Código Civil, impossível negar a importância da positivação do abuso de direito em nosso sistema jurídico, levando-se em consideração, principalmente, o fato de que a consagração de tal instituto contribuirá para por fim a antigas celeumas suscitadas pelos operadores do direito.
Destarte, para se obter um melhor resultado quanto à utilização da teoria ato abusivo, é imperioso que se promova uma interpretação construtiva da mesma, notadamente a partir do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, a fim de que, dessa forma, o nosso sistema jurídico seja revigorado, ao permitir a adequação das normas à realidade social que, por seu turno, apresenta-se sempre dinâmica.
7. Efeitos do Ato Abusivo
A priori incumbe consignar que pelo fato do ato abusivo tratar-se de matéria de ordem pública, tem-se como o seu primeiro efeito a possibilidade do mesmo ser suscitado como matéria de defesa (não sendo necessária a propositura de ação) pela parte interessada, pelo Ministério Público ou mesmo conhecido ex officio, a qualquer tempo ou grau de jurisdição.
Outrossim, por não se tratar de ato ilícito, a noção de ato abusivo extrapola a teoria da responsabilidade civil. O ato abusivo, dessa maneira, comporta sanções diretas e/ou indiretas. Quando o ato abusivo é reconhecido judicialmente, além do dever de indenizar, pode decorrer também a nulidade do ato, consoante preconiza o art. 166, inciso VI do Código Civil, sempre que a questão for pertinente à fraude de lei imperativa.
No caso de cominação de sanção indireta para fins de tornar possível a reparação dos danos provocados pelo ato abusivo, defendemos, a exemplo da imensa maioria da doutrina, a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, a qual, por sua vez, encontra substrato na teoria do risco.
Corroborando com o entendimento explicitado acima, destacamos o Enunciado nº 37 da Jornada de Direito Civil, o qual preconiza que "a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico".
As conseqüências do ato abusivo devem ser as mesmas de qualquer atuação sem direito, de todo ato ou omissão ilícitos. Assim, a obrigação de indenizar tem lugar desde que, o comportamento abusivo do agente se alinhe com os demais pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam o dano e o nexo causal entre o ato abusivo e o dano. A obrigação de indenizar é, portanto, o mais importante efeito decorrente do ato de abuso.
Já a sanção direta do ato abusivo consiste, em primeiro lugar, em sua reparação in natura, ou seja, na possibilidade de se determinar o desfazimento do ato. Entretanto, para a aplicação dessa natureza de sanção, o Magistrado, ao seu prudente arbítrio, deverá proceder a escolha da mais eficaz para o caso concreto. Citando exemplos de sanções diretas, temos, além do desfazimento do ato, a tutela inibitória, a improponibilidade da ação, dentre outras.
Para que haja a obrigação de indenizar é imprescindível a ocorrência do dano. Donde se falar ser possível que ato abusivo não dê lugar à reparação, mas apenas ao desfazimento do ato, por não ter havido prejuízo.
Por fim insta salientar que, diferentemente do ato ilícito, o ato abusivo não enseja a responsabilidade penal do sujeito, tendo em vista o fato do mesmo ser atípico, pois, apenas se revela pela sua disformidade valorativa em relação a prerrogativa individual ou direito exercido e nunca pela contrariedade a específicas obrigações normativas, não podendo, dessa maneira, ser previamente enquadrado pela lei como fato criminoso.