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Abuso de direito

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8. Incidência da Doutrina do Abuso de Direito nas Situações Cotidianas

            Para demonstrar a incidência da doutrina do abuso de direito em nossas relações cotidianas, não precisamos procurar muito, posto que a mesma ocorre notadamente com as mais diversas relações de consumo e de vizinhança. Todavia, não são as únicas, pois até na rede mundial de computadores, a internet, o comportamento abusivo se manifesta.

            No afã de ilustrar a nossa abordagem procuraremos citar situações em que o direito ou prerrogativa individual foram exercitados em patente violação aos fundamentos valorativos (morais e sociológicos) inerentes aos mesmos, v.g. a boa-fé, os fins sociais ou econômicos e os bons costumes.

            O que despertou nosso interesse pelo tema foi justamente uma reportagem veiculada por um tele jornal, a qual abordava um abuso cometido numa relação de vizinhança. Consta da mesma reportagem que o indivíduo era proprietário de um imóvel residencial, o qual tinha uma portentosa área de lazer, com piscina e demais atrativos. Ocorre que ao lado dessa propriedade fora construído um pequeno prédio com três andares. O proprietário da casa, sentindo-se ofendido em seu direito a privacidade, bem como arrimando-se num suposto direito ao pleno exercício de seu domínio, ordenou que fosse ampliada a altura do muro que limitava o seu imóvel e o pequeno edifício. Realizada a obra, constatou-se que o muro ficara da altura do edifício e, mais um agravante, fora utilizado concreto para ampliar o muro. Concluindo o fato, os moradores do prédio ficaram afetados, uma vez que fora obstada a entrada da luz solar em parte do edifício, além da circulação do ar. Tendo os moradores prejudicados provocado a tutela jurisdicional do Estado, obtiveram ganho de causa, através do desfazimento da obra, ou seja, a demolição do muro. No entanto, a medida restara inexeqüível, haja vista que em tendo sido utilizado concreto para erguer o muro, a demolição poderia comprometer a estrutura do prédio. De acordo com a matéria, a situação permanece até então sem solução.

            Apesar de considerarmos a existência de abuso no comportamento do proprietário da casa, este ato também pode ser taxado como ilegal, haja vista também ter afrontado os dispositivos do Código Civil que disciplinam os direitos de vizinhança. Mas ainda assim reconhecemos violação ao fim social inerente ao direito à privacidade, bem como a boa-fé.

            Na seara das relações consumeristas, um dos mais claros exemplos de abuso de direito pode ser encontrado por ocasião das cobranças de débitos. Ocorre que muitos fornecedores costumam, no exercício do direito de crédito, extrapolar os limites permitidos para a cobrança, ocasionando para o devedor enormes constrangimentos e, em alguns casos, expondo-o ao ridículo. Um exemplo clássico dessa prática é o do cobrador de porta, indivíduo que realiza a cobrança de maneira humilhante, vexatória, visto que, expõe o devedor ao ridículo perante a vizinhança e demais pessoas presentes no momento.

            Ainda nas relações de consumo, considera-se abusiva cláusula contratual que autorizava a Instituição Financeira a descontar diretamente da conta corrente de funcionário público, seu cliente, valor de empréstimo, uma vez que os vencimentos do servidor têm natureza alimentar, não se admitindo que a instituição credora continuasse a efetivar tal desconto. Claro está que tal conduta excede os limites éticos de qualquer negócio, ensejando, via de conseqüência, o abuso de direito.

            Exemplos diversos de cláusulas abusivas, isto é, cláusulas contratuais que excedem a boa-fé e a função social do contrato, são facilmente encontrados no dia a dia, tais como: as taxas de serviços cobradas pelos hotéis sem qualquer sentido, uma vez que a hospedagem já se apresenta como o objeto da contratação; as cláusulas que isentam de responsabilidade por furtos ou danos causados a veículos nos estacionamentos de shoppings, restaurantes ou supermercados; as cláusulas que permitem o curso cobrar mensalidades, independente da desistência do alunos, dentre tantas outras.

            Dentre práticas comerciais viciadas de abuso, destacamos a venda casada, a recusa de recebimento de cheques de correntistas com menos de seis meses ou um ano de conta corrente, etc.

            Um exemplo de abuso que pode ser abstraído das relações de comércio na internet, diz respeito às compras realizadas através de cartões de crédito. Nesse tipo de negociação, contraente fornecedor abusa da boa-fé do consumidor ao utilizar-se de seus dados para prática de fins escusos, ou ainda quando recebe o pagamento e descumpre a sua prestação na avença. Neste caso, além de atentar contra a boa-fé da outra parte, violou também os fins econômicos e sociais que norteavam a sua posição como contratante. Decerto que na área penal esta conduta poderia ser enquadrada como estelionato.

            Outra situação que ocorre na internet e que enseja o abuso de direito, é justamente o spamming. O spam nada mais é do que o envio ao consumidor-usuário de publicidade de serviços ou produtos, oferecendo uma gama de vantagens para o caso de uma efetiva contratação ou utilização, sem que a mesma tivesse sido solicitada. Após receber tais mensagens indesejadas, o usuário geralmente perde um bom tempo selecionando, lendo e excluindo as mesmas. Ademais, o spamming causa grandes dificuldades aos fornecedores de serviços de internet, já que os mesmos necessitam viabilizar medidas para coibir essa prática, o que, naturalmente, implica aumento nos custos de sua atividade econômica.

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            Pela falência que pode gerar a internet o spam contraria o fim social e econômico da grande rede, o que já serviria para enquadrar a prática como abuso de direito. De outro norte, insta salientar que a conduta dos spammers também é atentatória a boa-fé objetiva. Uma pessoa que envia mensagens para uma outra sem que esta tenha ao menos solicitado, está distante da probidade e lealdade que se espera das relações intersubjetivas, mesmo que se manifestem em meios virtuais.

            Segundo nossa concepção, a lide temerária também se configuraria como hipótese de abuso de direito. As lides temerárias, mal que acomete o Poder Judiciário, caracterizam-se por postulações sem o menor fundamento jurídico, sendo, portanto, motivadas pela má-fé e, muitas vezes, pela intenção de devedores em postergar o pagamento de obrigações líquidas, certas e vencidas. Seriam abusivas, pois, atentam contra a boa-fé, bons costumes e fins sociais e econômicos, devendo as mesmas serem reprimidas por todos que ainda crêem na Justiça. Neste caso, convém ressaltar que o próprio Código de Processo Civil cuidou de cominar sanções para essas lides infundadas. É a chamada litigância de má-fé.

            No âmbito do Direito de Família, podemos citar como conduta considerada abusiva, a do cônjuge detentor da guarda dos filhos, que, deliberadamente, tenta embaraçar o exercício do direito de visitas do outro cônjuge.

            Interessante exemplo de violação dos bons costumes diz respeito à vedação da chamada "farra do boi", a qual consistia numa manifestação cultural que acabava submetendo os animais à crueldade excessiva, hipótese esta que também não poderia deixar de ser considerada como abusiva.

            Conforme podemos perceber, no campo prático de incidência da teoria ora estudada, a linha de diferenciação entre o abuso de direito e o ilícito é bastante tênue, o que faz complicar ainda mais o papel do operador do direito na aplicação da doutrina do abuso de direito.


9. Conclusão

            Em breve síntese, concluímos que o dispositivo que inseriu a teoria do abuso de direito no Código Civil de 2002, tratou-se de norma destinada a promover a relativização dos direitos e prerrogativas individuais, de forma a coibir o exercício abusivo dos mesmos pelos seus sujeitos, preservando-se com isso os interesses coletivos e o bem estar social. Portanto, todo e qualquer ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não sejam considerados ilícitos por falta de previsão legal, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização.

            Não há, destarte, direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, devendo todo exercício de direitos e prerrogativas respeitar os fins sociais e econômicos, os bons costumes e, principalmente, a boa-fé.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

            CARVALHO NETO. Inácio de. Abuso de Direito. 2 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2003.

            CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. 2 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002.

            DELGADO, Mário Luiz. et al (coord.). Novo Código Civil. Questões Controvertidas. Considerações sobre o Abuso de Direito ou ato Emulativo Civil. Por Flávio Tartuce, p. 89. São Paulo: Editora Método, 2004.

            FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris. 2005.

            GANGLIANO, Pablo Stolze. et al. Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral. vol 1. 2 ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.

            ------------------. Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil. vol 3. 2 ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

            MARTINS, Plínio Lacerda. O Abuso nas Relações de Consumo e o Princípio da Boa – Fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

            NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 16. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

            SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 16 ed., ampl. por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

            TEPEDINO, Gustavo. et al (coord.). A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos das Perspectivas Civil - Constitucional. O Abuso de Direito no Código Civil de 2002 (art. 187) – Relativização dos direitos na ótica civil - constitucional. Por Heloisa Carpena, p. 377. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.


Notas

            1

Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1979, vol. 1, p. 368-369. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945).

            2

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 404.

            3

Vocabulário Jurídico, 16ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999.

            4

SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997, p. 465-466.

            5

Cf. "Abuso de Direito no Código de 2002", In TEPEDINO, Gustavo (coord.), A Parte Geral do novo Código Civil – Estudos na perspectiva civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

            6

Ob. cit. p. 382.

            7

Ob. cit. p. 382.

            8

CHAVES, Cristiano Farias de. Direito Civil – Teoria Geral. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 521.
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Sobre o autor
João Álvaro Quintiliano Barros

Advogado, pós graduando em Direito Civil-Especialização

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, João Álvaro Quintiliano. Abuso de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6944. Acesso em: 23 dez. 2024.

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