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Lawfare: pólvora, flechas e direito

09/10/2018 às 15:10
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As corporações policiais já são (e assim devem ser) os órgãos com os maiores sistemas de controle. São fiscalizadas por tudo e por todos. Logo, no atual contexto nacional, são outros os órgãos que verdadeiramente precisam enquadrar-se em algum sistema de freios.

Há muito discute-se acerca da necessidade de maior autonomia às polícias judiciárias. Afinal, é óbvia a constatação de que somente um órgão insulado de ingerências externas pode realmente exercer o difícil papel de investigar, principalmente quando o objeto de investigação é o próprio Poder.

Esse debate, embora, como dito, já seja antigo, recentemente ganhou novo fôlego. De um lado, pelos debates das eleições presidenciais que reverberam o discurso uníssono da necessidade de fortalecimento da inteligência policial como ferramenta de combate ao crime organizado. Do outro, pela operação Lava-Jato, ao demonstrar que uma polícia estruturada, técnica e atuando dentro dos limites legais é capaz de trazer à Justiça, mesmo os moradores da Casa-Grande. Direito Penal, pelo menos no momento, aparentemente, deixou de ser norma aplicável apenas à senzala. The rule of law, pela primeira vez, deixou de ser mero conceito abstrato nos livros jurídicos e passou a fazer parte do discurso televisivo.

Nesse contexto, é importante que se reacenda a discussão sobre o fortalecimento das polícias judiciárias (federal e estadual), pois é esse o caminho para a construção de um sistema de justiça mais efetivo.

Um dos projetos legislativos que aponta para esse caminho é a PEC 412. Esse projeto de emenda constitucional tem por objeto a concessão de uma maior autonomia à Polícia Federal e poderia servir como paradigma a ser reproduzido pelas polícias judiciárias estaduais. Contudo, existem forças que não desejam esse avanço e, para isso, lançam toda sorte de argumento, impedindo um debate verdadeiramente objetivo e científico sobre o tema.

A crítica que se faz a essa autonomia, em geral, resume-se à rasa concepção de que a Polícia, enquanto “braço armado” do Estado, deveria ser colocada numa camisa de força ainda mais apertada. A nota técnica emitida pela 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF resume bem esse entendimento equivocado:

Tal proposta levaria à criação de um perigoso rompimento do equilíbrio entre os órgãos de poder, conferindo poderes exacerbados a um braço armado do Estado, com previsíveis consequências nefastas ao próprio Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais dos cidadãos. A polícia é órgão estatal que representa o emprego da violência estatal no seio da sociedade. Atividade de inegável importância, mas que, por imperativo democrático, deve ser submetido a controles rigorosos, na defesa dos direitos fundamentais do cidadão. Não à toa, a Constituição conferiu ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, cujo fundamento mais essencial é a proteção dos direitos fundamentais, exercendo importante papel no sistema de freios e contrapesos entre os órgãos de poder. (grifo nosso).

Antes de revelar a contradição que subjaz a essa argumentação, primeiramente, é importante corrigir a distorção conceitual muitas vezes propositalmente enxertada nessas espécies de discurso.

Sendo assim, é bom esclarecer que no Estado Democrático de Direito a Polícia não “emprega violência no seio da sociedade”, quem o faz é a criminalidade. O que é demandado das forças policiais circunstancialmente, no estrito cumprimento do seu dever legal, é o uso da força, que de forma alguma pode ser confundida com “violência”. Essa última pressupões abuso, arbítrio, ilegalidade e, por óbvio, não pode ser exercida por nenhum órgão estatal democrático.

Quanto à estereotipada imagem trazida pela metáfora “braço armado”, há também que se ter muito cuidado, pois não representa a realidade. Num Estado Democrático de Direito o Poder não emana da força física. Fosse assim, as forças armadas e as forças policiais seriam a casta social com maior gama de privilégios e, claramente, não é isso que se observa. Em verdade, é justamente o oposto. O denominado “braço armado” é raquítico, mal consegue sustentar-se ereto, o peso da própria mão já é suficiente para vergar o cotovelo. Por outro lado, veja o “braço desarmado”. Esse, sim, opulento, musculoso, verdadeiramente anabolizado[1].

Ainda contribuindo na desmistificação dessa questão da (in)existência de um “braço armado”,  é bom registrar que no Brasil há uma estimativa da existência de cerca de 14.500 promotores[2], todos eles com livre porte de arma decorrente de Lei. Já a Polícia Federal possui um efetivo aproximado de somente 12.000 servidores, entre agentes, escrivães e delegados. Esse dado traz um aspecto relevante a ser considerado no momento de rotular esse ou aquele órgão como“braço armado” do Estado.

A rigor jurídico, o próprio conceito de “braço armado” sequer faz sentido quando o debate toma palco num Estado democrático de Direito. Vale dizer: “braço armado” é um conceito ideologicamente enviesado aplicável apenas a estados totalitários. Em regimes democráticos, em Estados de Direito pós queda do muro de Berlim, esse tipo de construção argumentativa não possui validade jurídica. A própria ideia de “polícia repressora” não faz sentido, pois nos regimes democráticos constitucionais a Polícia não “reprime”. Mesmo quando lhe é imposta a necessidade do uso da força, ela apenas atua de forma a restaurar o status quo constitucional. Logo, não há que se falar em “repressão”, mas sim em restauração. A pecha de órgão estatal armado e repressor não se alinha com a missão constitucional atribuída à polícia judiciária. Essa distinção conceitual é muito importante e o discurso acerca das funções da polícia judiciária precisa dessa depuração.

A verdade é que a tentativa da construção dessa imagem caricata da polícia judiciária através do uso distorcido de figuras de linguagem anacrônicas é um subterfúgio retórico com o fito de provocar reações emocionais e rememoramento de tempos passados, mas que de forma alguma encontram respaldo nas realidade pós 88.

O constituinte originário imputou às polícias judiciárias uma missão que está diretamente ligada à defesa do sistema constitucional e da ordem social. Nesse sentido, a tentativa de construir no imaginário popular uma figura inexistente é um subterfúgio de má-fé. De fato, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis se revela também de forma intensa nas Delegacias de Polícia.

Com essa pequena digressão já se começa a desconstruir a ideia de que as polícias judiciárias precisam de mais controle e, passa-se a perceber que as reais ameaças ao Estado de Direito não se encontram nessa pequena parcela de autonomia pretendida. Em verdade, o local onde a concentração de poder tem trazido consequências nefastas aos direitos e garantias fundamentais é bem outro. Alguns ainda não se atentaram, mas o equilíbrio entre os órgãos estatais há muito foi quebrado e isso não tem qualquer relação com a pretendida autonomia das polícias judiciárias.

O ponto fulcral para a compreensão desse debate é perceber que a fonte de Poder no Estado de Direito não é a pólvora, mas, sim, a Lei. A ideia de controle baseado num suposto “braço armado”, como já articulado, não se mostra factível nos Estados modernos. Não é mais possível a constrição de uma nação inteira por meio do medo. Fatores econômicos demandam que haja a aderência voluntária de significativa parcela da população a determinado regime, mesmo que autoritário, para que ele se sustente. Veja o recente exemplo da greve dos caminhoneiros ocorrido no país. Uma categoria pouco notada conseguiu num movimento paredista de poucos dias colocar a nação inteira de joelhos. De fato, o país foi levado à beira do caos com o desabastecimento de todo tipo de produtos. Perceba que nesse caso, não houve “braço armado” que desse solução. A situação só se resolveu com o convencimento da categoria e concessão do governo de parte das reivindicações.

Esse exemplo demonstra que na atualidade, em Estados democrático de Direito fundados numa economia de mercado, a força física não é mais a fonte primordial de Poder. O eixo de Poder se deslocou para o discurso e, por consequência, para o convencimento. Se na distopia apresentada no filme Matrix, o convencimento se dava a partir da projeção direta no cortéx cerebral, na atualidade, a criação da ilusão, por falta de melhor tecnologia, se dá por meio do discurso. É o discurso a nova fronteira do Poder. É por meio dele que se criam as agregações em massa e a manipulação da opinião pública nessa ou naquela direção, conforme a conveniência do momento. Noam Chomsky[3] já se referiu a isso e ao papel da mídia nessa construção como Manufactued Consent.

No Brasil, alguns há muito já perceberam isso e foi justamente por meio do domínio do discurso jurídico e de sua instrumentalização que paulatinamente os limites do Direito positivo foram sendo flexibilizados e o rompimento do equilíbrio institucional se estabeleceu.

Pelo pó de pirlimpimpim (panprincipiologismo[4]) e pela magia da autoregulação por normativos administrativos (mesmo que inconstitucionais), o Ministério Público brasileiro se destacou da Democracia e do próprio Estado de Direito. Trata-se de um órgão que se colocou numa situação sui generis. Ao não responder a ninguém (além de a si mesmo), ao não ser submetido a sistemas externos de controle, ao não respeitar sequer o Direito posto, tornou-se uma superestrutura excessivamente autônoma, acoplada ao Estado apenas por necessidades econômicas, mas não se submetendo à lógica imposta a todos os demais poderes constituídos.

Essa constatação é irrefutável. Não há como enquadrar o Ministério Público brasileiro na teoria de Montesquieu, pois nenhum sistema de freios e contrapesos, a parte daqueles pro forma, se aplica. Sua autonomia e independência o blindam das mais comezinhas noções de accountability e compliance. Contraditoriamente, tudo que exige dos outros, na prática, não entende aplicável a si mesmo. De fato, não existe correspondente no mundo, o que, por si só, já é indicativo de que algo não vai bem.

A doutrina cunhou o termo lawfare, justamente para conceituar o uso do Direito como instrumento de guerra. Basicamente, lawfare seria o emprego de manobras jurídico-legais como substituto da força armada, visando alcançar determinados objetivos de interesse de algumas classes. É disso que se trata aqui. Para muito além do infantil discurso sobre controle do “braço armado” do Estado, o que deve ser percebido é quem de fato detem o Poder no Estado de Direito moderno e, portanto, quem realmente precisa ser controlado.

Como mencionado, no Estado democrático de Direito, não é a polícia o verdadeiro “braço armado”, quem tem a real força “armada” é quem possui o poder jurídico. E isso se deve ter bem claro.

O poder jurídico se revela de diversas formas e o seu manejo supera em muito a capacidade destrutiva da força física. A arma de fogo disparada muitas vezes não acerta e quando acerta, quem atirou vai responder perante a Justiça e terá muita dor de cabeça, mesmo atuando em clara situação de excludente de ilicitude. Por outro lado, o poder jurídico manejado estrategicamente faz o mesmo estrago, sem que o responsável sequer se preocupe com sua responsabilização.

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A ação penal e a ação de improbidade administrativa são munições teleguiadas, nunca erram seu alvo. Mesmo que lá na frente ocorra a absolvição, o estrago já está feito. O character assassination é sempre antecipado e ocorre como efeito extrapenal em todos os casos. E aquele que puxa o gatilho fica sempre preservado na indestrutível blindagem da autonomia e independência funcional.

Àqueles que ainda não se convenceram do pleno lawfare estabelecido, o que dizer das “recomendações” (leia-se determinações) do Ministério Público? Quando uma nação deseja intimidar outra a fazer determinada coisa, lança-se mão dos chamados exercícios militares. Nesses exercícios demonstra-se sua capacidade bélica, como que subliminarmente dizendo: olha o tamanho do meu porrete. No lawfare, as “recomendações” substituem os exercícios militares . Vale dizer: faça o que eu “peço”, se não...

O próprio termo “recomendação” é no mínimo um mal uso do vernáculo. Afinal, tais recomendações soam mais como promessa de mal injusto e grave, fato que juridicamente recebe outro nomem iuris no Direito Penal. Bem além de meras sugestões administrativas, as “recomendações” se tornaram mais uma arma no lawfare instalado. Perceba como um instrumento sequer expressamente previsto no Direito positivo é instrumentalizado e acaba distorcendo o Estado democrático de Direito. Assim como o boiadeiro toca o gado para o local que considera mais adequado, as “recomendações” tocam indiretamente a Administração Pública e o Poder Político, os confinando/moldando ao entendimento de um órgão que pensa-se termostato da moralidade nacional sem que, contudo, tenha qalquer legitimidade política uma vez que seu poder não decorre da soberania popular.

Descortinadas as distorções decorrentes da exagerada autonomia institucional (que, na prática, é sinônimo de descontrole) somado aos super-poderes jurídicos que possuem, assim como a sua irresponsabilidade pessoal pelos seus atos, apontar a polícia judiciária como fonte de ameaça ao Estado de Direito é, no mínimo, um equívoco de interpretação fática. As corporações policiais já são (e assim devem ser) os órgãos com os maiores sistemas de controle. São fiscalizadas por tudo e por todos. Logo, no atual contexto nacional, são outros os órgãos que verdadeiramente precisam enquadrar-se em algum sistema de freios.

A Segurança Pública só avançará com o fortalecimento das polícias judiciárias. Esse é o único caminho a ser trilhado. Não há como negar-se essa realidade. A contenção do avanço das polícias judiciárias presta apenas um desserviço ao país e não pode mais ser escondida sob um verniz argumentativo falacioso.

Essa necessidade de maior autonomia das polícias judiciárias atende não só a uma questão de natureza gerencial-administrativa. Em verdade, a questão jurídica de preservação dos direitos e garantias fundamentais e do restabelecimento do equilíbrio de forças dentro do Estado democrático de Direito é tão importante quanto. Perceba que a tentativa de sufocamento das polícias judiciárias atende apenas ao projeto de poder de outros órgãos. E não há nada mais autoritário do que a concentração da investigação no mesmo órgão responsável pela acusação. E aqui se encontra mais um exemplo da lawfare. Na guerra, a estratégia de invasão e conquista de território é um dos principais eixos de dominação. Na lawfare, a conquista de território é substituída pela conquista de prerrogativas e atribuições dos outros. Veja a questão do poder investigatório do Ministério Público. Em que pese o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido essa possibilidade de forma subsidiária e excepcional, na prática, esse pequeno espaço de possibilidade foi expandido ao máximo. Mais uma vez, autorregulando-se por normativos administrativos (Resolução n. 181/CNMP), a exceção virou regra e aproveitando a oportunidade inauguraram o Direito criando possibilidades sequer previstas em Lei. Cite-se como exemplo a possibilidade de arquivamento de investigações sem chancela judicial e a pactuação de amplos acordos de não persecução penal.

Essa estratégia do lawfare e o modelo de sistema de justiça pretendido é um projeto totalitário que sorrateiramente, ainda que de maneira informal, vem se consolidando no Brasil, mas não de todo despercebido. Lênio Streck do alto da legitimidade de já ter sido membro do Ministério Público vem há tempos alertando sobre os perigos das distorções na atuação ministerial, em recente artigo comentando sobre o uso político desse poder, afirma:

Isso é ruim para a instituição do Ministério Público. Já escrevi aqui que me preocupo com o uso político do processo por parte da Instituição. Como é possível que um agente político do Estado, que possui as garantias da magistratura, comporte-se a partir de um agir estratégico, como se fosse advogado privado? Como é possível que se admita — e se peça ou se sugira — que o juiz julgue a partir de seu subjetivismo e de leituras nas entrelinhas e daquilo que não está dito nos autos?[5]

O mesmo jurista, em outro artigo, resume bem as atuais distorções sistematicamente observadas e que cada vez mais demonstram o afastamento do Ministério Público do projeto idealizado pelo constituinte originário:

Falei com dois ilustres deputados constituintes que fizeram das tripas o coração na Constituinte para catapultar o MP, de simples órgão estatal, a um quase-Poder. E eles disseram: o que vemos hoje por aí... não foi isso que pensamos, com gente do MP indo às redes sociais para defender projetos que, entre outras coisas, restringe o sagrado direito de Habeas Corpus e institucionaliza a prova ilícita. Afora coisas como pregação de inversão do ônus da prova e que prova é uma questão de fé ou crença... Ministério Público foi feito não para ser perseguidor e acusador sistemático. Aliás, aprendi com promotores de Justiça como Voltaire de Lima Moraes , Francisco Luçardo, Cláudio Barros Silva e Sérgio Gilberto Porto, que foram procuradores-gerais de Justiça: o Ministério Público, a partir de 1988, é outra instituição, sempre disseram. Agora é uma espécie de ombudsman, fiscal do povo ou fiscal contra os atos do próprio Estado, como dizia Valadão.[6]

No mesmo sentido vão as considerações do Sub-procurador geral da República e ex-Ministro da Justiça Eugênio Aragão:

Não que o Ministério Público não deva exercer seu controle de legalidade sobre as ações da administração; deve fazê-lo, porém, sem perder a disposição ao diálogo, à parceria, sem querer reivindicar justiceiramente um monopólio do espírito público que não lhe pertence. Não deve, com seu controle, inviabilizar escolhas políticas e bloquear sua execução, mas garantir qualidade e eficiência no processo e no resultado, dentro do marco legal existente[7]. (grifo nosso)

O ministro Gilmar Mendes, bem consciente dos nefastos riscos ao Estado democrático de Direito, também há muito pontua o que considera abusos e excessos. Em recente entrevista referindo-se ao recente caso Beto Richa e Haddad, pontuou:

É notório um abuso do poder de litigar. É preciso realmente colocar freios. — Sabemos lá que tipo de consórcio há entre algum grupo, por exemplo, de investigação do Gaeco e um dado candidato? Temos que tomar cuidado, porque, do contrário se pode fazer um plano Cohen, alguma coisa inventada que vai resultar num escândalo que afeta o resultado eleitoral. É bom isso para o país? É bom que uma instituição que tem que zelar pela democracia atue dessa forma? — questionou o ministro, referindo-se ao Ministério Público[8].

Dentro de todo esse contexto, mas retornando o foco à necessidade de avanço na autonomia das polícias judiciárias, destaca-se o entendimento de Luigi Ferrajoli, um dos principais teóricos do Garantismo Penal. Pra esse jurista (repita-se, um dos expoentes da doutrina garantista), bem longe da suposta ameaça ao equilíbrio de poderes, a autonomia dos órgãos de polícia judiciária é algo compatível e mesmo desejável na lógica do Estado de Direito, veja:

Na lógica do Estado de direito, as funções de polícia deveriam ser limitadas a apenas três atividades: a atividade investigativa, com respeito aos crimes e aos ilícitos administrativos, a atividade de prevenção de uns e de outros, e aquelas executivas e auxiliares da jurisdição e da administração. Nenhuma destas atividades deveria comportar o exercício de poderes autônomos sobre as liberdades civis e sobre os outros direitos fundamentais. As diversas atribuições, por fim, deveriam estar destinadas a corpos de polícia separados entre eles e organizados de forma independente não apenas funcional, mas também, hierárquica e administrativamente dos diversos poderes aos quais auxiliam. Em particular, a polícia judiciária, destinada à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender [9].(grifo nosso).

Diante de todo esse cenário, é bom que não só a sociedade, mas principalmente a Academia, perceba que, há muito, a pólvora deixou de ser a ameaça aos direito e garantias fundamentais. O discurso libertário avesso aos órgãos policiais é anacrônico e não se compatibiliza com as polícias judiciárias democraticamente estabelecidas pela constituinte de 1988.

Na pós-modernidade o jogo de dominação e violação das liberdades civis é muito mais sutil, pois se desenvolve no plano do discurso, justamente por isso quase nunca se percebe de onde veio o tiro. Warfare foi substituída pela lawfare. Assim, é importante um despertar para a percepção de onde realmente podem surgir os verdadeiros atentados ao Estado Democrático de Direito e, ao localizar a verdadeira ameaça, colocá-la sob algum arcabouço, mesmo que mínimo, de contenção. Por mais incrível que parece, na atualidade, o perigo vem da flecha de bambu e não do revólver.


Notas

[1] https://www.cartacapital.com.br/politica/mp-brasileiro-elitista-e-o-mais-caro-do-mundo

[2] https://zedudu.com.br/inaj-nmeros-e-grficos-sobre-o-sistema-de-justia-no-brasil/

[3] Edward S. Herman, Noam Chomsky. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media.

[4] A doutrina descreve esse fenômeno como produção de princípios sem normatividade, normalmente com o fim de fundamentar decisões judiciais de forma voluntarista e sem rigor técnico.

[5] https://www.conjur.com.br/2018-set-13/senso-incomum-comum-casos-richa-haddad-advogada-algemada

[6] https://www.conjur.com.br/2018-jul-26/senso-incomum-promotor-rio-janeiro-virou-carcereiro-coisa-nao

[7]https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/o-ministerio-publico-na-encruzilhada-%E2%80%93-1%C2%AA-parte/

[8] https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/09/12/gilmar-mendes-ve-notorio-abuso-de-poder-e-pede-freios-ao-comentar-acoes-do-mp-contra-haddad-alckmin-e-richa.ghtml

[9]  Luigi Ferrajoli, Diritto e Ragione. Teoria del garantismo penale, 2008, p. 800.

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Sobre o autor
Erick da Rocha Spiegel Sallum

Delegado de Polícia Civil - DF ex-agente de Polícia Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALLUM, Erick Rocha Spiegel. Lawfare: pólvora, flechas e direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5578, 9 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69500. Acesso em: 7 nov. 2024.

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