4. Da não aplicação do regime empresarial para sociedade simples – artigos 982, 983 e 966 do Código Civil – Da ilegalidade do afastamento do Regime Especial de Recolhimento do ISS (D-SUP)
A organização do profissional de contabilidade na forma de sociedade simples uniprofissional, formada exclusivamente por contadores, que prestam serviços em nome da sociedade de forma pessoal é comumente aceita e prevista na legislação pátria. Ressalte-se, o serviços em sua maioria são prestados pelos próprios sócios, de forma pessoal.
Conforme estabelecem os artigos 982 e 983 do Código Civil:
Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.
Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.
Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.
[...] (grifamos)
Também, o artigo 966, parágrafo único do Código Civil estabelece:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. (grifamos)
Por não serem considerados empresários, os profissionais das sociedades uniprofissionais, por exercerem pessoalmente suas atividades de profissões regulamentadas de modo pessoal, com responsabilidade ilimitada, não podem ser classificados como sociedades empresariais somente pelo fato da expressão “Limitada” em sua razão social. Vale ressaltar que seus documentos são registrados no competente órgão de classe e não na Junta Comercial do Estado.
Logicamente, para sobreviver no competitivo mercado de prestadores de serviços contábeis, a Sociedade Simples tem adequar seu corpo técnico de funcionários à realidade de mercado. Necessita possuir, obviamente, empregados que lhe fornecem apoio secundário para consecução de seus fins, tais como, TI (tecnologia da informação), atividades administrativas em geral, limpeza, atendimento e segurança, entre outros. Em outras palavras, são meras atividades-meio, que por si só, não desnaturam a natureza jurídica de sociedade simples uniprofisssional e não tem o condão de oferecer uma estrutura empresarial à sociedade.
Neste sentido, equivocado o entendimento do Município de São Paulo ao fazer suscitar questões como porte ou estrutura. Ora, ressaltamos, tal discrimen não consta da lei e não pode ser invocado para fundamentar cobrança, vez que o serviço, na sua essencialidade, é prestado de forma pessoal pelos sócios contadores.
Com relação à adoção do tipo societário Limitada, ainda mais óbvio que tal regime se aplica para suas atividades secundárias, tais como empréstimos em bancos e demais operações administrativas, mas nunca com relação à prestação de serviço de contabilidade, pois esta, por expressa determinação legal, será sempre pessoal e ilimitada – conforme já destacado no item acima – art. 1.177 parágrafo único do Código Civil. Tanto é verdade que em muitos dos casos os contribuintes são signatários de contratos de seguro de responsabilidade. É o que comumente se chama de diferenciar o negócio nuclear “core business” das atividades complementares – que qualquer sociedade simples que almeja o sucesso deve possuir.
Além da súmula não poder criar restrições ou interpretações previstas em Lei, ainda que fosse remotamente admitida essa possibilidade, o simples fato de ter a expressão “Limitada” ou “LTDA” não seria suficiente para impossibilitar o enquadramento como SUP pois se trata de sociedade simples uniprofissional.
Com a finalidade de esclarecer a ilegalidade que vem sendo perpetrada pela Municipalidade de São Paulo é importante trazer à tona que a responsabilidade pessoal do profissional contabilista no desempenho da atividade, a qual demanda o enquadramento no regime especial de tributação, não se confunde com a sua responsabilidade perante a sociedade; se ela é limitada ou ilimitada. Ou seja, existe uma confusão de conceitos nos desenquadramentos perpetrados pelo Município de São Paulo do Regime Especial de Tributação com a lavratura de autos de infração, especialmente por não se observar a correta natureza da atividade exercida, bem como a responsabilidade pessoal do profissional contador. A responsabilidade limitada do sócio perante a sociedade, não se confunde com a sua responsabilidade profissional, na qual se baseia o regime especial de tributação.
Assim, não é pelo fato de possuir a expressão “Limitada” que os escritórios de contabilidade passam automaticamente a serem sociedade empresária. Conforme reproduzido nos artigos 982 e 983 acima, tanto as sociedades simples quanto as sociedades empresárias podem ter sua forma societária como “sociedade limitada”. Para se verificar a diferença entre sociedade simples limitada e sociedade empresária, e a diferenciação entre sociedade de pessoas e sociedade de capital, devem ser destacados dois critérios: 1) grau de dependência da sociedade em relação a qualidades subjetivas dos sócios e 2) responsabilidade dos sócios nas suas obrigações.
Pelo primeiro critério, temos que na sociedade de capital a contribuição financeira, o investimento é muito mais importante do que o conhecimento técnico dos sócios, ou seja, o cunho econômico para o investimento é muito maior do que o conhecimento técnico para o exercício do objeto a ser prestado. Também, como segundo critério, a responsabilidade dos sócios diferencia as Sociedades Simples das Empresárias.
Em suma, o porte, a organização, a intensidade da produção, não são essenciais para a diferenciação. O elemento fundamental da diferenciação é a atividade intelectual. Nas palavras da doutrina:
[...] Em contrapartida, a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade intelectual pura, mesmo organizada, não será empresária, por maior que seja sua organização, por mais intensa que seja sua produção, eis que a atividade intelectual (literária, artística ou científica) não se inclui entre as atividades próprias do empresário.
Estando isso claro, torna-se fácil compreender que a natureza empresarial de uma sociedade não é aferida pela sua esmerada organização, por sua estrutura nem pela intensidade com que desenvolve seu empreendimento. Uma sociedade de profissionais liberais, voltada, exclusivamente, para dar apoio ao exercício da atividade que motivou sua criação, na área médica ou da advocacia, por exemplo, é e sempre será́ uma sociedade simples. Aliás, fosse inserido o critério da estrutura ou da intensidade dos negócios na identificação de uma sociedade, ter-se-ia de admitir que, com a só́ expansão dos negócios, uma sociedade simples, em um determinado momento histórico, ver-se-ia obrigada a migrar de um regime para outro, isto é, cancelar seu registro no Oficio de Registro de Pessoas Jurídicas e abrir outro no Registro Público de Empresas Mercantis – uma situação de fato que levaria à absoluta insegurança jurídica.
Será́ empresária, porém, a sociedade que tiver por objeto, além do exercício de uma profissão intelectual, outra atividade organizada de produção ou circulação de bens ou de serviços, porquanto a atividade intelectual em tal caso caracteriza-se como elemento (parte integrante) da outra que a absorve, recaindo, por isso, na ressalva da parte final do art. 966, parágrafo único, do Código Civil. No exemplo dado, se a sociedade for constituída para o exercício da medicina combinado com hospedagem (spa, hospital etc.), a atividade médica passa a figurar como elemento do objeto social, que é mais amplo e a ela não se limita. Nessa sociedade não há o exercício exclusivo da medicina (da profissão intelectual), mas de um conjunto de atividades, que contam com o seu concurso . (grifamos).
Importante trazer à baila que, na Iª, III, IV e Vª Jornada de Direito Civil, foram aprovados os enunciados 57, 193, 194,195, 382 e 474, que se aplicam integralmente ao presente caso, com o seguinte teor:
Enunciado 57: Art. 983: A opção pelo tipo empresarial não afasta a natureza simples da sociedade.
Enunciado 193: Art. 966: O exercício das atividades de natureza exclusivamente intelectual está excluído do conceito de empresa.
Enunciado 194: Art. 966: Os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores da produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida.
Enunciado 195: Art. 966: A expressão “elemento de empresa” demanda interpretação econômica, devendo ser analisada sob a égide da absorção da atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, como um dos fatores da organização empresarial.
Enunciado 382: Nas sociedades, o registro observa a natureza da atividade (empresarial ou não - art. 966); as demais questões seguem as normas pertinentes ao tipo societário adotado (art. 983). São exceções as sociedades por ações e as cooperativas (art. 982, parágrafo único).
Enunciado 474:
Art. 983: Os profissionais liberais podem organizar-se sob a forma de sociedade simples, convencionando a responsabilidade limitada dos sócios por dívidas da sociedade, a despeito da responsabilidade ilimitada por atos praticados no exercício da profissão.
O tipo societário pode ser Limitada, mesmo para as sociedades de natureza Simples, observando o artigo 983, combinado com o artigo 982, parágrafo único, do Código Civil já acima destacados. Não há de se confundir limitação de responsabilidade do tipo societário com a ilimitada responsabilidade dos sócios na prestação dos serviços objeto da sociedade. Esta é o que, precipuamente, caracteriza a sociedade uniprofissional, e não é excluída pelo tipo societário utilizado na composição da sociedade. Inclusive, a competência para legislar sobre “direito das empresas” é exclusivamente federal, não cabendo ao município a interpretação divergente do que está estabelecido na lei, conforme exposto acima.
Todas estas conclusões impactam profundamente no diálogo com o Direito Tributário, vez que, a adoção do tipo societário, nos moldes exigidos pelo art. 983 do Código Civil, não tem o condão de desnaturar a norma de privilégio tributário das sociedades simples uniprofissionais.
Assim, os artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional estabelecem:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Os artigos acima identificados não permitem que institutos, princípios e normas de direito civil sejam alterados pela legislação tributária. Os contribuintes são registrados nos Registros de Sociedades Civis – e não na Junta Comercial –, mas, conforme a lei civil, e responde perante o Conselho Regional de Contabilidade, o legítimo fiscalizador da atividade de contabilidade.
Nestes termos, a doutrina tributária especializada esclarece:
a adoção de forma societária não é discrímen a ser considerado apto para autorizar o legislador e a autoridade fazendária a dispensar tratamentos tributários diferenciados para os profissionais autônomos e para os profissionais liberais constituídos em sociedade. A forma societária tem o único e exclusivo intuito de união de esforços para a consecução de um bem comum, sem que tal circunstância possa caracterizar como de natureza empresária” .
Também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
TRIBUTÁRIO. ISS. SOCIEDADE SIMPLES LIMITADA. CARÁTER EMPRESARIAL AFASTADO NA ORIGEM. SÚMULA 7/STJ. RECOLHIMENTO POR ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE
1. A orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial.
2. A forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que os profissionais […] exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”. (AgRg no AREsp 519.194/AM, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, DJe 13/08/2015.)
3. No caso dos autos, não obstante a agravante ser uma sociedade limitada, o Tribunal de origem assentou que se ela dedica, precipuamente, à exploração do ofício intelectual de seus sócios, de forma pessoal, sem caráter empresarial, razão pela qual é cabível o benefício da tributação por alíquota fixa do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).
Agravo regimental provido.”
AgRg no AREsp 792878 / SP – Rel. Min. Humberto Martins – DJ 14/12/2015
Vale transcrever parte do voto do Ministro Relator:
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator): Prospera a pretensão recursal de reforma da decisão prolatada. Consoante fixado no decisum ora agravado, a orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial. Com efeito, a jurisprudência desta Corte chegou a afirmar que o benefício não se estende à sociedade limitada porque, nessa espécie societária, a responsabilidade do sócio é limitada ao capital social. Todavia, o entendimento foi reformulado no recente julgamento do Recurso Especial n. 1.512.652/RS, Rel. Min. Napoleão Maia, que tratou da aplicação da alíquota fixa do ISS à sociedade simples, que estava sendo enquadrada como empresária pelo mero fato de existir a responsabilização limitada dos sócios conforme sua cota social.
Na oportunidade ressaltou-se que “o requisito da organização dos fatores de produção é essencial para a configuração da sociedade empresária e não o mero fato de existir a repartição de responsabilidade interna concernente ao capital social”; isto é, “a forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que as profissionais odontólogas exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”. (grifamos)
Por todo o exposto, parece-nos claro que a adoção do termo LTDA. não tem o condão de afastar a sua natureza jurídica de sociedade simples uniprofissional e muito menos afastar o regime de recolhimento especial com a imposição retroativa de apurações tributárias.