4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o princípio, um dos objetivos mais buscados e que foi fonte de inspiração para a presente obra foi justamente questionar. O que se pretendeu foi instigar o raciocínio. Quando digo instigar, fico preso a literalidade do termo, ou seja, estimular o questionamento, fomentar criticidade e buscar de alguma maneira expor um posicionamento com apoio em materiais que já foram produzidos sobre o tema.
Toda a análise e estudo foi voltada para a crítica a um brocardo que não vem sendo corretamente aplicado pelo Judiciário. Ocorre que, se nos mantivermos inertes quanto aos excessos produzidos por quem quer se seja a nossa volta, estaremos sempre fadados às trevas. Criticar é preciso, foi sempre a partir de pensamentos críticos e revolucionários que o mundo evoluiu. A inércia, a permanência em uma zona de conforto/aceitação por medo ou preguiça é extremamente nociva.
O que foi acima mencionado ganha ainda mais relevância quando aplicado ao contexto social e político que enfrentamos atualmente no país. Não se pode admitir que o Judiciário tenha ações irrestritas a ponto de, na prática, legislar contra legem através de suas súmulas e jurisprudências, a ponto de contrariar a Constituição Federal em suas decisões e ainda assim nos mantermos inertes. A omissão de quem presencia tudo isso e se cala é uma afronta a toda a evolução histórica do Direito e a todos aqueles que lutaram por um Estado Democrático em que a Constituição existe para conferir garantias e poder soberano ao povo.
Há mais de cem anos, Rui Barbosa criticava perante o Supremo Tribunal Federal o triste fato de sermos retóricos em vez de juristas, oportunidade em que enquadrou o regime brasileiro como um “arbítrio palavreado”, veja-se:
“Oxalá fôssemos uma nação de juristas. Mas o que somos, é uma nação de retóricos. Os nossos governos vivem a envolver num tecido de palavras os seus abusos, porque as maiores enormidades oficiais têm a certeza de iludir, se forem lustrosamente fraseadas. O arbítrio palavreado, eis o regímen brasileiro.” (BARBOSA, Rui. Juristas e Retóricos. Antologia. Seleção, prefácio e notas de Luís Viana. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1953, p. 109). (grifei)
Impressionante (por ser triste) como o discurso do icônico Rui Barbosa, mesmo mais de um século depois, continua tão atual. Tão impressionante a ponto de presenciarmos criações doutrinárias e jurisprudenciais “lustrosamente fraseadas” com o intuito primordial de conferir (ou ao menos tentar conferir) legitimidade para decisões que não cabem em nosso ordenamento jurídico.
Inadmissível que a justiça penal dissocie-se de sua função constitucional e passe a agir como uma máquina de moer carne, buscando condenações a todo custo e usando fundamentações voltadas a acalmar os ânimos sociais, principalmente com relação aos menos abastados, como se já não bastasse serem eles as maiores vítimas de um sistema corrompido, em que falta o básico para a maioria porque uma minoria precisa manter sua pompa. Nada mais absolutista.
Tais práticas são deletérias, vez que ao esforçarem-se em exercer cada vez mais o chamado “arbítrio palavreado” o que acaba ficando em segundo plano são princípios fundamentais, garantias constitucionais, excertos da Constituição Federal que ali estão com o intuito precípuo de limitar o poder estatal e consequentemente conferir um pouco mais de proteção ao cidadão que já é tão dilacerado pelos seus próprios representantes.
É necessário, pois, críticas. Talvez seja essa a maneira mais eficiente de impedir a mitigação de garantias fundamentais. O que não pode ser aceito é que essas mitigações tornem-se corriqueiras, gerem precedentes, a ponto de representarem um retrocesso incalculável em nossa sociedade.
As garantias fundamentais são de todos. Imprescindível, portanto, que a coletividade lute por elas, que não as deixem esvair sobre os dedos, pois se a preocupação com as mesmas for surgir apenas no momento de invoca-las pode ser tarde demais. A relativização de uma garantia para um representa risco para todos. A condenação de um inocente que foi erroneamente submetido ao Júri por força de uma decisão de pronúncia fundamentada no in dubio pro societate não atinge somente o indivíduo injustiçado, muito pelo contrário, é uma ameaça geral (a maior delas). A coletividade é atingida.
Assim sendo, como um dos objetivos do trabalho também era o de propagar conhecimento para a população em geral, estimulando a todos que lutem por suas garantias e proteções, cita-se pela última vez as lições do Professor Daniel Guimarães Zveibil, pela pertinência delas em relação ao abordado:
Não nos parece, desta forma, que a efetiva tutela e o refinamento dos direitos e garantias fundamentais dependam unicamente da inteligência humana, pois ela guarda infinito potencial destrutivo quando desatrelada de qualquer valor fundado na solidariedade com o próximo. A depuração do direito passa, portanto, inevitavelmente, pela depuração do espírito humano. E temos, em verdade, a opção de perseguirmos essa depuração sem que necessariamente tenhamos de receber, previamente, alertas dolorosos em nosso cotidiano. Não é necessário, se quisermos, que qualquer circunstância tenebrosa nos atinja para que repensemos nossos caminhos e destinos.
(...)
É erro mortal concluir que o aperfeiçoamento do direito dependa só dos exclusivamente cultos; sem qualquer intenção de diminuir seus méritos. Todavia, a nosso sentir, a depuração contínua do direito depende, sobretudo, de almas sinceramente solidárias. Porque a essência do direito é servir ao ser humano, e não o tiranizar. O direito é luz. Não trevas. (ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Set/out 2008, p. 294/296). (grifei)
Dessa maneira, no exercício de uma última análise, pode-se depreender que a criticidade é a chave para impedir abusos. É o que rompe o silêncio. Como já anteriormente mencionado, um debate acerca de um tema controverso, a exposição de argumentos de ambos os lados no sentido de defender os respectivos posicionamentos, representa a mobilidade do direito propriamente dita. É assim que o direito evolui, sendo crítico, sendo debatido. Portanto, que o direito possa ser usado como um farol que ilumina a jornada, pois como já bem disse o Professor Daniel: “o direito é luz. Não trevas”.
REFERÊNCIAS
ANTONINI, José Roberto. Pronúncia – in dubio pro societate. Boletim IBCCRIM, ano 15, nº 177, Agosto, 2007, p. 13/14;
BARBOSA, Rui. Juristas e Retóricos. Antologia. Seleção, prefácio e notas de Luís Viana. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1953, p. 109;
BISINOTTO, Edineia Freitas Gomes. Origem, história, principiologia e competência do tribunal do júri. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9185. Acesso em: 02 de outubro de 2017;
CAMPOS, Walfredo Cunha. A falácia do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Boletim IBCCRIM, ano 14, nº 164, Julho, 2006, p. 18;
CAPEZ, Fernando. Professor Fernando Capez – Palestra – Tribunal do Júri – Prática Forense. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s9E59hGYJSw. Acesso em: 05 de outubro de 2017;
FILHO, Vicente Greco. Manual de Processo Penal. 8ª edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2012;
JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 13ª edição, São Paulo, Editora Saraiva, 2016;
MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Campinas/SP, Editora Bookseller, 1997;
Mini Aurélio, o Dicionário da língua portuguesa, 8ª edição, Curitiba/PR, 2010, p. 517.
NETO, Cândido Furtado Maia. O promotor de justiça e os direitos humanos – acusação com racionalidade. Curitiba. Juruá Editora, 1999. Página 83;
NETTO, Alexandre Orsi. A falácia do in dubio pro societate no processo de execução criminal. Boletim IBCCRIM, ano 17, nº 204, novembro, 2009, p. 14/15;
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008;
PELUSO, Cezar. É preciso entender a grandeza do princípio da presunção de inocência. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-26/peluso-preciso-entender-grandeza-presuncao-inocencia. Acesso em: 02 de outubro de 2017;
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8ª edição, Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2004;
SILVA, Evandro Cavalcanti Lins e. Sentença de pronúncia. Artigo do Boletim IBCCRIM nº 100, março 2001;
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado. 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 21;
VALE, Ionilton Pereira do. A atenuação do princípio in dubio pro societate nos procedimentos do júri em face da Lei 11.689/2008. RT 879, janeiro de 2009, p. 499/514.
ZVEIBIL, Daniel Guimarães. O arbítrio palavreado no processo penal. Breve ensaio sobre a pronúncia e o in dubio pro societate. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCRIM nº 74, set/out 2008, p. 281/296
Notas
[1] Época compreendida entre Moisés até a morte de Jesus. Foi nessa época que, segundo os cristãos, o próprio Deus entregou para Moisés as Tábuas da Lei com os 10 mandamentos.
[2] A respeito do devido processo penal, cf.: SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: RT, 2005, item “3.3”, p. 45-47; TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: RT, 2002, item “12.6”, p. 207-218.
[3] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. A dignidade do processo penal de Canuto Mendes a Lauria Tucci (Prefácio). In: TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2002, p. 08.
[4] MARQUES, José Frederico. Do processo penal acusatório. Estudos de direito processual penal. Millenium: Campinas, 2001, p. 17.
[5] LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975, item “32”, p. 63: “Não é a absolvição do culpado, mas a condenação do inocente, que afeta os fundamentos do direito, desacredita a Justiça, alarma a sociedade, ameaça os indivíduos, sensibiliza a solidariedade humana.” (grifei)