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A inconstitucionalidade do art. 1.276 do Código Civil

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12/07/2005 às 00:00
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3.A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1276 DO CÓDIGO CIVIL

O artigo 1.276 do Código Civil assim expõe:

Art. 1.276

. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.

§1º.

O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.

§2º.

Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

Infere-se desse dispositivo, de acordo com Maria Helena Diniz [11] que,

O proprietário despoja-se de seu direito com o propósito de não o ter mais em seu patrimônio (CC, artigo 1.276, caput), cessando os atos de posse e deixando de satisfazer os ônus fiscais (CC, artigo 1.276, §2º), revelando desinteresse que se caracteriza como uma omissão anti-social, por não atender à finalidade econômico-social da propriedade.

Dessa forma, o Código Civil estipula o momento no qual o proprietário não deseja ter mais seu imóvel, incubindo ao Estado o direito de tomar para si a propriedade.

Mas como o legislador pode comprovar o desejo do proprietário de não mais conservar em seu patrimônio o imóvel que abandonou ou quando não cumpre suas obrigações fiscais?

O fato é que nem sempre o abandono e a não satisfação dos ônus fiscais configuram tal intenção e, ainda, que o proprietário não está respeitando o princípio da função social da propriedade. Vejamos o porquê.

Primeiramente, no tocante ao "abandono". O proprietário possui pleno domínio sobre seu imóvel. Em virtude de algumas circunstâncias, pode ocorrer do proprietário permanecer longe de seu imóvel, sem que ninguém o utilize. A Constituição Federal assegura o direito à propriedade privada, como uma garantia fundamental, além de fornecer instrumentos para a defesa da mesma. Passados três anos, o Código Civil – lei hierarquicamente inferior à Carta Magna – entende que o Município, no qual está situado o imóvel, pode tomar para si o domínio do mesmo. Ora, se a Constituição oferece ao proprietário recursos para manter sua propriedade, como o Código Civil pode prever tamanha arbitrariedade do Poder Executivo?

Deve-se ter em mente que não é porque o proprietário sai do imóvel por determinado lapso temporal – qualquer que seja – que o mesmo não está de acordo com o princípio da função social da propriedade. Talvez esse proprietário esteja agindo assim, na tentativa de aperfeiçoar tal princípio. Um exemplo: o indivíduo "X" é proprietário de um imóvel, qual seja, um terreno, na cidade de Uberaba/MG, e encontra-se desempregado. Surge para o mesmo uma oportunidade de emprego na cidade Tóquio, Japão, que lhe trará muitos benefícios, além de um salário significativo. O indivíduo "X", portanto, com dificuldades, embarca para o Japão, a fim de arrecadar dinheiro para construir uma casa, no mencionado terreno, aqui no Brasil. Passados cinco anos, o proprietário do terreno retorna, com dinheiro suficiente para construir sua casa. Assim, dará a sua propriedade uma destinação social.

Ocorre que o Código Civil não possibilita tal hipótese. O proprietário deve ter a "sorte" de o Estado não perceber que não está ocorrendo a utilização da propriedade há mais de três anos. Caso aconteça o inverso, é permitido que o Poder Público exerça um verdadeiro ato ditatorial, integrando ao patrimônio do Estado a propriedade que antes era do particular.

O artigo 1.276 do Código Civil trata o abandono de forma subjetiva, visto que propõe a análise da intenção do sujeito em conservar ou não o imóvel em seu patrimônio como elemento caracterizador do mesmo. Esse sentido de formação discursiva "com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio" é muito "vago" para o Direito. O Estado não possui o condão de adivinhar o que passa pela cabeça do proprietário, os seus objetivos, as suas vontades. Essa "intenção" não é mensurável, ou seja, considera-se um vocábulo de difícil definição que não abre possibilidade jurídica para comprovação.

Outro ponto é com relação ao não cumprimento dos ônus fiscais. Com a crise que assola o país, nada mais normal que exista falta de recursos, por parte da população. O fato de o proprietário não pagar os impostos referentes ao seu imóvel não significa que o mesmo não esteja atendendo sua finalidade social.

Mais uma hipótese: o indivíduo "X" mora na cidade de Uberaba/MG, em uma casa própria, e tem um terreno, na cidade de Campinas/SP, sua terra natal. O indivíduo "X" sonha em um dia voltar para Campinas e construir uma casa em seu imóvel. Acontece que, ultimamente, analisando o orçamento financeiro, ele se vê impossibilitado de cumprir com os ônus fiscais referentes ao imóvel de Campinas. Passados quatro anos, a prefeitura de Campinas entende que o não pagamento dos impostos incide em abandono e procede a tomada do imóvel.

O abandono, conforme o Diploma Civil, fica caracterizado quando o proprietário não deseja mais conservar o imóvel em seu patrimônio, presumindo-se também essa intenção quando o proprietário não satisfaz os ônus fiscais.

No exemplo acima, vê-se que o proprietário não possui tal propósito, mas passa por uma crise financeira que não o possibilita de pagar os impostos.

Por conseguinte, não se pode deduzir que o não cumprimento dos ônus fiscais caracteriza o abandono.

A Constituição Federal autoriza somente uma modalidade de confisco: o do artigo 243, que diz respeito às glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Nesse caso, haverá expropriação imediata sem qualquer indenização ao proprietário.

No artigo 1.276, §2º, do Código Civil, é permitido que o Estado realize outra modalidade de confisco, não respeitando o direito à propriedade previsto constitucionalmente.

O não cumprimento dos ônus fiscais configura uma dívida do proprietário com o Poder Público, devendo esse último, caso entenda ter havido lesão ao erário, propor ação de execução de título extrajudicial, em conformidade com o ordenamento jurídico. Contudo, deve ser defeso tomar patrimônio alheio para satisfação da dívida. O Executivo, agindo dessa forma, além de cometer uma infração constitucional, adentra em esfera que não é a sua, mas do Poder Judiciário, fazendo, como se diz popularmente, "justiça com as próprias mãos".

É certo que a propriedade deve ter uma destinação social, entretanto tal finalidade deve conciliar com a garantia que o proprietário possui com relação a seu imóvel.

Assim, o artigo 1.276 do Código Civil é arbitrário à Constituição Federal, restando, desse modo, configurado inconstitucionalidade de tal dispositivo.

O Código Civil, no que tange à classificação normativa, é considerado lei ordinária. Ferreira [12] conceitua lei ordinária como "um ato normativo primário editando normas gerais e abstratas, sendo assim entendida em função de sua generalidade e caráter abstrato. A lei ordinária é o ato normativo típico".

Pode-se entender, portanto, que a lei ordinária é aquela que trata a respeito de várias coisas dentro de um determinado âmbito jurídico, como o Código Civil assim o faz.

Com relação à posição das leis ordinárias dentro do sistema hierarquizado das normas no ordenamento jurídico, Montoro [13] explica que:

A posição hierárquica das leis ordinárias no ordenamento jurídico é, de um lado, inferior à das normas constitucionais e complementares, e de outro, superior a dos decretos regulamentares e a dos demais atos normativos inferiores, como as convenções coletivas de trabalho, atos administrativos, contratos, etc. Pode-se, por isso, discutir sobre a "constitucionalidade" ou inconstitucionalidade dessas leis.

Logo, é perfeitamente plausível a decretação da inconstitucionalidade de tal dispositivo presente no código civil.

Trata-se de uma inconstitucionalidade material, ou seja, como já exposto, seu conteúdo contraria norma constitucional.

O modo como essa inconstitucionalidade será alegada poderá ser pelo critério difuso ou pelo concentrado.

No critério difuso, quando a questão aqui abordada aparecer em alguma lide processual, sendo declarada pela autoridade judicial – caso entenda pela inconstitucionalidade – referente à instância na qual o processo está tramitando. Como já estudado, a inconstitucionalidade aqui resulta somente inter partes, e para que a mesma tenha eficácia erga omnes, cabe ao Senado Federal, por meio de resolução, suspender a execução da lei (artigo 52, X, CF).

Pelo critério concentrado, mais amplo, deverá ser proposta uma ação direta de inconstitucionalidade genérica, uma vez que trata de uma incompatibilidade de um dispositivo de lei ordinária com a Constituição Federal e caberá ao STF que a competência para exercer o julgamento.

Desse modo, resta aos legitimados previstos no artigo 103 da Carta Magna proporem essa ação, já que a inconstitucionalidade do artigo 1.276, do Código Civil é evidente.


CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 apresentou tamanha inovação ao inserir, em seu texto legal, o princípio da Função Social da Propriedade, que declara a preocupação estatal com o bem comum no tocante ao direito à propriedade.

Ocorre que os benefícios da coletividade não podem se sobrepor a um direito fundamental do cidadão, qual seja, o da propriedade privada. É necessário haver um equilíbrio entre a propriedade privada e a função social, para encontrar uma perfeita harmonia jurídica na sociedade.

O que não se pode permitir é o autoritarismo do Poder Público em um Estado Democrático de Direito. E é isso que ensejou o presente estudo, porque constatou-se, no artigo 1.276 do Código Civil, absurda incompatibilidade com os preceitos da Constituição. Esse diploma legal deixa que o Executivo presuma o momento em que o proprietário de um imóvel – urbano ou rural – não deseja conservá-lo em seu patrimônio, de uma forma diametralmente subjetiva.

Como se não bastasse, ainda autoriza que o Estado tome para si esse patrimônio, a partir dessa presunção, e também quando o mesmo não cumpre com os ônus fiscais, com o tal "abandono presumido", estipulando o período de três anos para a concretização do mesmo.

O poder executivo não possui o mérito de descobrir quais são as verdadeiras intenções do proprietário.

O fato de o proprietário não se fazer presente no imóvel, por algum tempo, ou deixar de pagar os impostos devidamente, não constitui indicativos absolutos de descumprimento da destinação social da propriedade.

Quando um cidadão adquire um imóvel, esse fenômeno denota uma conquista da finalidade social, ou seja, significa dizer que esse indivíduo representa menos uma pessoa, dentre milhares, que não possuem sequer uma moradia.

No Brasil – país em desenvolvimento – a maioria das pessoas encontra-se em crise financeira. Assim, torna-se incompatível a idéia de alguém não querer preservar um imóvel, vindo, por qualquer motivo, a abandoná-lo.

Se o Estado deseja receber os impostos que lhe são devidos (no caso do §2º do artigo 1.276 do Código Civil), ele que utilize as vias judiciárias normais, respeitando o ordenamento jurídico, e não realizando "confisco" sem ter a noção exata do que se passa com o proprietário.

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Não se pode olvidar dos instrumentos que a Constituição fornece para a proteção da propriedade privada. Logo, o Código Civil não deve contrariar vários dos próprios preceitos e o princípio da supremacia constitucional, conferindo ao Estado o poder de "tomada" de imóveis nas situações arroladas pelo artigo 1.276. Destarte, como a Constituição se encontra no topo da pirâmide jurisdicional, verifica-se a inconstitucionalidade do dispositivo em análise.

Portanto, utilizando-se do controle de constitucionalidade, seja por meio difuso ou concentrado, esse preceito civil deve ser considerado inválido, tendo o Estado que renovar os seus critérios, no que tange ao direito à propriedade privada concomitante ao princípio da Função Social.


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NOTAS

01 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 2003, p. 154.

02 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 2002, p. 281.

03 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 1998, p. 247.

04 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2002, p. 268.

05 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2000, p. 313.

06 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2001, p. 572.

07 Ibid., p. 577.

08 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. Volume 4. Tomo III. 2000, p. 240.

09 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2000, p. 302.

10 Ibid., p. 303.

11 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas, 2002. p. 169.

12 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 1996, p. 336.

13 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 2000, p. 337.

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Sobre a autora
Thaysa Capsy Boga Ribeiro

Acadêmica do curso de Direito pela Universidade de Uberaba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Thaysa Capsy Boga. A inconstitucionalidade do art. 1.276 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 737, 12 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6998. Acesso em: 19 abr. 2024.

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