Direito Penal do Inimigo: lições e perspectivas no Direito Tributário

06/11/2018 às 03:19
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Propõe-se a analisar o Direito Tributário sob a nova perspectiva ideológica, influenciada pelas discussões provenientes do Direito Penal do Inimigo e sua forma de combate diferenciada, buscando-se definir a figura do contribuinte terrorista da nação.

A corrida eleitoral influenciou a difusão de discussões provenientes do Direito Penal, estritamente ligadas à figura da repressão, fiscalização e punição de certas condutas consideradas infratoras de relevância nacional.

Os anseios sociais, sem dúvidas, desgastados e sofridos, foram exaltados por um sentimento de punição severa dos considerados “inimigos do Estado, da sociedade”, o que reacendeu a discussão sobre o Direito Penal do Inimigo.

Fazendo-se um rápido resumo para contextualização do tema, o Direito Penal do Inimigo pode ser assim sintetizado pelo Professor José Carlos Robaldo:

É uma ideia defendida por alguns estudiosos, que tem na pessoa de Jakobs, penalista e filósofo alemão, seu principal defensor. Defende-se, em síntese, nesta linha a existência de dois direitos penais, um para os infratores comuns, isto é, para aqueles que eventualmente cometem crimes, onde, para a sua aplicação os direitos e garantias fundamentais do infrator, devem ser respeitados pelo Estado e outro, para os terroristas, inimigos da sociedade, no qual, para a sua aplicação, não se exige o respeito desses direitos e garantias fundamentais.[1]

Para melhor visualização da discussão, pode-se exemplificar com a atuação dos EUA com relação a forma de punição dos seus infratores nacionais e os considerados terroristas, não-nacionais, com punição muito mais severa, formas processuais especiais, regimes diferenciados.

O Professor Eugenio Raul Zafarroni entende que o Brasil já vem aplicando o Direito Penal do Inimigo quando utiliza o Código Penal para punir, mas sim, legislações especiais, como as medidas de segurança, uso de prisões preventivas, lei de crimes hediondos, que funcionam como medidas de contenção para redução da periculosidade do agente.

A população, vítima da violência crescente, vem pressionando o Estado por punições mais eficazes, que são, vulgarmente, interpretadas como mais severas, rígidas, para expurgar o infrator da sociedade, mirando o crime organizado, o esquematizado tráfico de entorpecentes, com facções fortemente armadas e hierarquizadas como verdadeiros “inimigos da nação”.

Dentre várias propostas em discussão, uma específica chama a atenção pela possibilidade de autorização para aniquilação sumária do potencial infrator, tachado de terrorista, pelo mero risco abstrato da sua existência proporciona à sociedade, não havendo o que se falar de aplicação do princípio do devido processo legal, ampla defesa e aplicação de penas com o trânsito em julgado, justamente, porque o indivíduo não seria considerado um cidadão, mas sim um não-cidadão, que pode ser punido de forma diferenciada e com maior rigor.

Mesmo com a Constituição garantido como direito fundamental a proibição da utilização de penas cruéis, perpétuas e de morte (apenas no caso de guerra declarada), aplicadas aos nacionais e estrangeiros, consideras cláusulas pétreas, representando um nítido excesso e abuso por parte da mão punitiva do Estado.

No entender do Professor César Roberto Bitencourt o Direito Penal do Inimigo representa um retrocesso, algo violento, desrespeitoso, desumano, representando uma destruição, uma desarmonia do sistema penal com as garantias fundamentais, mesmo se comparado com a violência experimentada na ditadura militar, indo de encontro com a nova constituinte e seus princípios limitadores do poder repressivo estatal.

Na visão de Bitencourt:

O direito penal do inimigo é um verdadeiro direito penal do autor, porque quando eu separo os cidadãos dos não-cidadãos, isto é, eu despersonalizo o indivíduo, para poder retirar depois, fica mais fácil eu aplicar um direito penal do inimigo em alguém que eu já declarei que pessoa ele não é, é coisa, é res, fica muito fácil sustentar que ele não tem direito.

A construção dos conceitos e ideias do Direito Penal do Inimigo conseguem ultrapassar a esfera garantista do Estado Democrático de Direito, desvalorizando todo avanço histórico dos ideais protecionistas humanitários dignos, equiparando-o a condição de coisa, sem valor, podendo ser punido de forma especial, diferenciada, severa, sem o amparo da legislação do infrator tido por nacional, permitindo, inclusive, a execução sumária de potenciais “terroristas” pela mera periculosidade.

O Professor Eugenio Raúl Zaffaroni[2] em explanação no I Congresso Internacional de Crime, Justiça e Violência idealizado pela curso LFG afirma que o Estado Democrático de Direito está em uma luta constante, dialeticamente, com o Estado de Polícia, num eterna batalha de reprimir os fortes impulsos agressivos de repressão.

Para Zaffaroni, o Direito Penal do Inimigo não seria aceitável num Estado Democrático de Direito, apenas no Estado de Guerra, pois na paz, temos infratores, na guerra, termos inimigos, ainda assim, não é qualquer forma de punição que podemos aplicar, tendo em vista vedação dos crimes contra a humanidade regulados por limitações impostas pelo Direito Internacional e acordos de Genebra. Para concluir seu raciocínio, afirma que a partir do momento que o Direito Penal do Inimigo é aceito, com aplicação limitada ao “inimigo em sentido estrito”, sua tendência natural é que ele passe a influenciar todo o Direito Penal, tendo a história demonstrado isso pelo deslocamento do poder punitivo, classificando como “guerra suja”[3].

Afinal de contas, o que a discussão do Direito Penal do Inimigo tem a ver com o Direito Tributário? Tudo!

No Código Tributário Nacional encontra-se a definição legal de Poder de Polícia:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. 

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder

O Direito Tributário aplica o Poder de Polícia? É claro, a Receita Federal por meio de seus auditores fiscais é um exemplo típico de atividade administrativa que disciplina e limita por meio de instruções e portarias a prática das atividades mercantis para fins de segurança do sistema arrecadatório.

O auditor fiscal, na condição de agente fiscalizador pode ser equiparado ao policial, no intuito de prevenir possíveis condutas infratoras e garantir as devidas punições administrativas e/ou judiciais.

O poder de tributar envolve o poder de destruir, frase emblemática da Corte dos EUA no caso McCulloch v. Maryland, 1819, pelo Chief of Justice John Marshall. Ao longo da história, as Constituições serviram para criação de freios e contrapesos para atenuar a inesgotável sede arrecadatória do Estado por meio de limitações ao poder de tributar, criando princípios, regras, permitindo deduções, compensações, para apaziguar os ânimos e permitir a proliferação mercantil, gerando consequentemente mais arrecadação.

Como já diversas vezes já defendidas por mim, o Direito Tributário pode ser usada como uma mola mestra para alavancar o crescimento do País, com algumas reformas, como também para afundar, dada sua importância e impacto na saúde financeira do País.  

De que forma, precisamente, o Direito Penal do Inimigo poderia ser utilizado no Direito Tributário? E qual(is) seu(s) malefício(s)?

Como já exposto, o primeiro momento é a identificação do indivíduo que será considerado inimigo, tido como sendo um não-cidadão, alguém que existe simplesmente para fazer o mal, prejudicando ou pondo em perigo os demais.

Por esse conceito, é fácil classificar um contribuinte como potencial inimigo da nação no âmbito tributário, basta ser um “grande sonegador”, tendo em vista que a sua omissão de receitas provoca um prejuízo enorme aos cofres públicos e que compromete a própria máquina pública, pondo em risco folha de pessoal, licitações e obras públicas, repasses constitucionais e todos os demais objetivos do Estado.

Não há dúvidas que a sonegação é mal por si só muito prejudicial, que demanda forte e célere repressão, justamente para não ser estimulada ou tolerada condutas desse tipo.

O Fisco tem de ser fortemente estruturado, com pessoal e equipamentos avançados para possibilitar uma fiscalização mais eficiente e uma arrecadação mais produtiva, justamente para evitar a propagação da sonegação.

Apesar de todo aparato tecnológico, não rara das vezes, é comum se deparar com a utilização de “sanções políticas”, que são restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo, pela coerção gravosa e indireta que inviabiliza o próprio exercício da empresa, da atividade econômica lícita, ex: apreensão de mercadorias, inscrição no cadin, obtenção de CNPJ, frutos do excesso inerente do Estado.

Identificado o potencial contribuinte sonegador como inimigo, agora, é a hora de trata-lo com rigor, puni-lo de forma mais severa. Se não bastasse todos esses excessos, existe possibilidade de piorar a situação? Claro, não há mal algum que não se possa piorar!

Em 2016, o Supremo considerou constitucional o protesto de CDA, afirmando que constitui um mecanismo constitucional e legítimo, não restringindo de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e não constituindo sanção política. (ADI 5135/DF).

Em agosto de 2018, o STJ decidiu que o não recolhimento de ICMS pode caracterizar crime:

Nos casos de não repasse do ICMS aos cofres públicos, configura-se o crime previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, quando o agente se apropria do valor referente ao tributo, ao invés de recolhê-lo ao fisco.

A diferença entre o mero inadimplemento fiscal e a prática do delito, que não se vincula à clandestinidade ou não da omissão no repasse do ICMS devido, deve ser aferida pelo simples dolo de se apropriar dos respectivos valores, o qual é identificado pelas circunstâncias fáticas de cada caso concreto.

Com esse entendimento, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou habeas corpus a dois empresários que alegaram que o não recolhimento de ICMS em operações próprias, devidamente declaradas ao fisco, não caracterizaria crime, mas apenas inadimplemento fiscal. (HC 399109)

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Se não bastasse esse entendimento, o STJ novamente em setembro replicou a decisão, passando a interpretar uma linha mais severa de punição tributária. O tempo de recessão econômica, baixa arrecadação de tributos, teto de gastos do setor público, salários congelados, insatisfação política, degeneração dos princípios, corrupção abundante e sonegação em massa, são os fatores que estão alimentando essa postura mais ativas e agressivas no Direito Tributário, na tentativa desesperada de normalizar os cofres públicos.

Perceba que o endurecimento do Direito Tributário se mostra com multas mais altíssimas, para não dizer abusivas novamente, para os que cometem fraude e sonegação, uma postura totalmente anti-elisiva com os planejamentos tributários, classificando todos em sua maioria como abusivos, requerendo sempre demonstrações e mais requisitos, sequer, previstos em lei; fiscais com posturas mais ativas, notificando e lavrando diversos autos de infrações, inclusive, com tributos já prescritos; responsabilização dos sócios com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa; bloqueios e bacenjuds sem sequer citações...

Se não bastasse isso, o processo em si, tanto administrativo e judicial é bastante complicado de vencer a jurisprudência defensiva, o campo de provas e o nova influência do Direito Tributário do Inimigo de combater fortemente a corrupção e sonegação fiscal, tratando o nacional, trabalhador autônomo ou empresário, como fonte do problema moral que o País enfrenta.

Perceba que a discussão do Direito Penal do Inimigo é um alerta e um convite para reflexão da punição severa como forma de repressão, tendo em vista seus efeitos maléficos para o cometimento de excessos legitimados do Estado, sendo no primeiro momento aplicado contra o “inimigo não-cidadão” e no segundo momento, sedento de poder, aplicado contra o “infrator nacional”, perdendo-se o controle, violando o Estado Democrático de Direito e repercutindo nas mais diversas áreas, como no Direito Tributário.


Notas

[1] Robaldo, José Carlos de Oliveira. Direito Penal Máximo e o Controle Social. Disponível em http://www.lgf.com.br

[2] Jurista e magistrado argentino. Foi ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Professor emérito e diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, é também doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela Universidade Federal do Ceará, pela Universidade Católica de Brasília e pelo Centro Universitário FIEO. É vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal.

[3] O termo "Guerra Suja na Argentina" designa internacionalmente o modo habitual o regime de violência indiscriminada, perseguição, repressão ilegal, tortura sistemática, desaparecimento forçado de pessoas, manipulação da informação e terrorismo de Estado, que caracterizou a ditadura militar autodeterminada Processo de Reorganização Nacional, que governou o país entre 1976 e 1983. Vítimas da violência incluiram vários milhares de ativistas de esquerda, incluindo sindicalistas, estudantes, jornalistas, marxistas e os guerrilheiros peronistas e simpatizantes. Cerca de 10 mil desaparecidos sob a forma dos Montoneros, guerrilheiros do Exército Revolucionário do Povo (ERP) foram mortos. As estimativas para o número de pessoas que foram mortas ou "desapareceram" variam de 9.000 a 30.000

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Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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