3. OS ATOS ATENTATÓRIOS À DIGNIDADE DA JUSTIÇA E A SUA INFLUÊNCIA SOBRE A EXECUÇÃO TRABALHISTA
O presente capítulo tratará da influência que os atos atentatórios à dignidade da justiça podem exercer sobre a execução trabalhista. Tais atos interferem diretamente na possibilidade da efetiva satisfação do crédito exequendo em tempo hábil, razão pela qual mostra-se necessária a discussão sobre as suas consequências à execução trabalhista diante do tempo exíguo que o exequente dispõe antes que a prescrição intercorrente alcance a sua pretensão.
3.1 O princípio da boa-fé processual e os atos atentatórios à dignidade da justiça
Ao longo de um processo judicial é esperado que todos os sujeitos participantes atuem de maneira proba e leal, sendo um dever de todos não proceder com má-fé. Tal obrigação está consignada no CPC, que, em seu art. 5º, impõe a todos que participarem do processo o dever de comportar-se de acordo com a boa-fé.
Tal princípio, trazido de forma expressa pela legislação, trata-se de uma cláusula geral processual, o que, conforme ensina Didier Junior et al. (2017), é a opção mais correta, visto que, diante das infinitas situações que podem surgir durante o processo, a enumeração exaustiva das hipóteses de comportamento desleal tornaria a lei ineficaz. Havendo, entretanto, uma norma geral a impor o comportamento de acordo com a boa-fé, torna-se desnecessária a enumeração das condutas desleais.
Conforme Bezerra Leite (2017), o princípio da boa-fé processual impõe a qualquer indivíduo que participe de algum ato processual, seja parte, advogado, testemunha, auxiliar ou magistrado, um padrão de comportamento pautado pela honestidade e confiança, além de exigir um estado geral de urbanidade e cortesia recíprocas, e não há qualquer incompatibilidade deste princípio com o processo do trabalho, visto haver lacuna normativa na CLT, razão pela qual o art. 5 do CPC deve ser aplicado de forma subsidiária.
De modo a reforçar a aplicabilidade do princípio da boa-fé processual, o CPC traz em seu texto a figura do ato atentatório à dignidade da justiça. Apesar do citado código não apresentar a definição destes atos, entende-se que são aqueles atos que podem reduzir a respeitabilidade do sistema judiciário por se tratarem de comportamentos, omissivos ou comissivos, que retardam, atrapalham ou tentam fraudar a prestação jurisdicional, não prestando o devido respeito às decisões do Judiciário.
São exemplos de atos atentatórios à dignidade da justiça a não observância do disposto nos incisos IV e VI do art. 77 do CPC, que determinam ser dever das partes cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, não criando embaraços à sua efetivação e não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. O juiz deverá impor aos que infringirem tais dispositivos multa de até vinte por cento do valor da causa, seguindo o disposto no § 2º do mesmo artigo.
Como desdobramento do princípio da boa-fé processual e do que determina o já citado art. 77 do CPC, este mesmo código traz, no artigo 774, alguns comportamentos específicos que são considerados atentatórios à dignidade da justiça durante a execução. Deste modo, temo que:
“Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que:
I - frauda a execução;
II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos;
III - dificulta ou embaraça a realização da penhora;
IV - resiste injustificadamente às ordens judiciais;
V - intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus.
Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.”
Igualmente ao já previsto no art. 77, no caso de o executar praticar as condutas trazidas pelo art. 774 o juiz deverá fixar multa de até vinte por cento do valor da causa. Nesta caso, porém, tais valores serão revertidos ao exequente, e sua execução se dará nos mesmo autos do processo.
Apesar de claramente não exaustiva, a lista do art. 774 é de suma importância para a efetivação do direito já reconhecido na fase de conhecimento. Isto porque, conforme observa Didier Junior (2017), a execução se mostra um terreno fértil para praticas contrárias ao princípio da boa-fé, razão pela qual existem sistemas rigorosos de combate a fraudes que possam ocorrer durante esta fase do processo, como a fraude à execução e a fraude contra credores. Ainda segundo Didier Junior, entretanto, a proteção à boa-fé na execução não deve ser feita somente aplicando-se tais institutos, visto que a boa-fé processual, sendo uma cláusula geral, permite que se identifiquem na execução os atos ilícios atípicos, como o abuso de direito, o desvio de poder e a fraude à lei.
Especificamente na Justiça do Trabalho, o trânsito em julgado de uma sentença favorável ao trabalhador muitas vezes marca o início de uma batalha inglória, cuja característica principal é a impossibilidade de encontrar bens pertencentes ao executado que possam satisfazer o crédito exequendo. Isso se dá, em grande parte das vezes, por conta de artifícios utilizados pelos executados, a fim de esconder os ativos de sua empresa, bem como os seus próprios bens, de modo a frustrar a execução.
Esta situação tornou-se característica na execução trabalhista, influenciando até mesmo nos números apresentados no Relatório Reral da Justiça do Trabalho, realizado pela Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do Trabalho, e que reúne os dados estatísticos referentes aos processos que tramitaram nos três graus de jurisdição deste ramo da Justiça nos seus respectivos anos base. Analisando os relatórios dos últimos anos percebe-se um crescimento alarmante das execuções frustradas. Apesar de não haver números explícitos sobre o arquivamento de processos pela prescrição intercorrente, nota-se um aumento anual dos processos enviados ao arquivo provisório das varas, ou seja, dos processos em que não foram encontrados bens do executado, e ficarão no arquivo provisório aguardando que o exequente informe ao juízo bens possíveis de penhora. Não se pode dizer, entretanto, que tal crescimento se dá somente pelo aumento natural das demandas trabalhistas.
Com efeito, os números trazidos pelos relatórios da Justiça do Trabalho dos últimos 3 (três) anos mostram que de 2015 a 2016 houve aumento de aproximadamente 15% nas execuções iniciadas anualmente (de 629.430 processos em 2015 para 724.491 processos em 2016). Neste mesmo período, entretanto, houve aumento de aproximadamente 32% no número de processos enviados ao arquivo provisório (de 601.339 processos para 795.386 em 2016).
Esta tendência se repetiu no ano seguinte. De 2016 para 2017 houve o aumento de 16% nas execuções iniciadas, enquanto o número de processos no arquivo provisório em 2017 foi aproximadamente 34% maior que no ano anterior.
Outra análise que pode ser feita do Relatório Geral da Justiça do Trabalho é sobre a efetividade da execução dos processos trabalhistas. Em 2017, por exemplo, se encerraram 671.912 processos de execução. Entretanto, o total de processos a executar chega ao total de 3.355.378, aí inclusos os processos com a execução pendente e em arquivo provisório do ano anterior, além das execuções iniciadas no próprio ano de 2017. Ou seja, a relação entre as execuções encerradas e o total a executar é de somente 20%.
Percebe-se, portanto, que a execução na Justiça do Trabalho cada vez mais se torna um ambiente infrutífero, onde a grande maioria dos créditos reconhecidos na fase de cognição, mesmo tendo a inegável natureza alimentar, estão fadados a se tornarem uma expectativa frustrada.
Como já argumentado anteriormente, a Reforma Trabalhista instituída pela lei nº 13.467/17 não apresentou nenhuma mudança que venha a beneficiar o exequente que se vê diante da situação de ter reconhecido seu direito, mas não possuir nenhuma expectativa de receber os frutos deste reconhecimento, mesmo isto seja consequência de atos do executado que são manifestamente atentatórios à dignidade da justiça. Deste modo, a única opção do exequente é se valer dos institutos já consagrados pelo direito processual, a fim de identificar os ilícitos praticados pela parte contrária, a fim de que possam ser punidos e contornados. Tais institutos serão detalhados a seguir.
3.2 Fraude à execução e fraude contra credores
Conforme a definição de Pereira (2017) pode ser considerada fraude a manobra realizada com a intenção de prejudicar um terceiro.
No caso da fraude contra credores, se trata de um instituto do direito civil, sendo considerada um vício de ordem social do negócio jurídico. Como leciona Montenegro Filho (2018), a fraude contra credores “consiste na transferência do patrimônio do devedor ao terceiro ou na oneração desse patrimônio antes do aperfeiçoamento da citação na ação de conhecimento ou na ação de execução”
Por sua vez, os baianos Gagliano e Pamplona Filho (2012) acrescentam que a fraude contra credores também pode ocorrer no caso de remissão de dívidas, e que para ser caracterizada a insolvência do devedor não necessariamente precisa estar instalada, mas que esta seja iminente.
Sobre os pressupostos necessários para a sua caracterização, há consenso doutrinário no sentido de serem dois estes elementos. O primeiro e trata do eventus damni, ou seja, o real prejuízo do credor. Deste modo, o ato para somente será considerado uma fraude contra o credor se a sua realização realmente comprometer o pagamento da dívida, levando o devedor ao estado de insolvência.
O segundo elemento, este subjetivo, trata-se do consilium fraudis, que, conforme Schiavi, é o conluio entre o devedor e o terceiro que foi beneficiado pelo ato, a fim de prejudicar o credor.
Didier Junior, pontua, entretanto, que há ocasiões em que o elemento subjetivo do consilium fraudis é presumido. Tal ocorre quando o ato fraudulento foi gratuito, presumindo-se, portanto, a fraude e a má-fé. Se a transação, ao contrário, foi onerosa, o credor deverá se desincumbir do ônus de provar que o devedor tinha ciência de que produzia o dano e que o adquirente sabia da condição de insolvência a que esta alienação conduziria.
Para se chegar à anulação do ato praticado em fraude contra credores, o credor deverá necessariamente ajuizar uma ação revocatória, chamada de ação pauliana, que será proposta contra o devedor, em litisconsórcio passivo necessário com o terceiro beneficiado pelo negócio fraudulento, buscando a anulação de tal negócio por conta de vício social. Tendo sido julgada procedente a ação, o bem retornará ao patrimônio do alienante, beneficiando todos os credores do mesmo.
Já a fraude à execução se mostra como uma faceta da fraude contra credores, pois, conforme Didier Junior (2017), ambas advêm do mesmo princípio de limitação da disponibilidade dos bens do devedor. Segundo o mesmo autor, a primeira trata-se, porém, de instituto típico do direito processual, que causa dano não somente ao credor, mas também à própria atividade jurisdicional.
Como já citado neste trabalho, a fraude à execução está listada no rol do art. 774 do CPC como um ato atentatório à dignidade da justiça, visto se tratar de um comportamento em que o próprio estado também é prejudicado, não somente o credor, razão pela qual é considerada mais grave que a fraude contra credores.
Neste caso específico, o CPC disciplinou no art. 792 e seus parágrafos, o que deve ser considerado fraude à execução, bem como as consequências do seu reconhecimento, in verbis:
“Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V - nos demais casos expressos em lei.
§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.
§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
§ 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.”
Percebe-se que a fraude à execução é caracterizada quando o devedor aliena ou onera seus bens de modo a se tornar insolvente, enquanto existe contra si uma demanda judicial. Sendo reconhecida a fraude, o ato praticado continua válido, não sendo, porém, oponível ao credor prejudicado, de modo que passa a ser ineficaz perante a ação de execução. Tal entendimento, como lembra Neves (2016), é ponto pacífico para a doutrina.
Diferentemente da fraude contra credores, a fraude à execução não necessita de uma ação autônoma, como a pauliana, para ser reconhecida, visto ser aceito de maneira unânime que a alienação ocorrida em fraude durante o processo pode ser declarada ineficaz no próprio processo mediante requerimento da parte lesada. Este é o ensinamento, por exemplo, de Tartuce (2017) e Schiavi (2010).
De acordo com Abelha (2015) são três os requisitos para que se reconheça a fraude à execução. O primeiro seria a existência de uma demanda judicial condenatória ou executória, que existira a partir do momento em que o réu é citado, pois este é o momento em que se inicia a relação jurídica do processo. Cumpre-nos citar, no entanto, que em relação à Justiça do Trabalho há autores, como Schiavi (2010) que entende que já existirá a demanda pendente no momento da propositura da ação, visto nesta Justiça especializada não haver o despacho de recebimento da exordial, sendo do Diretor de Secretaria o ato da notificação inicial.
Ainda conforme Abelha, o segundo requisito para haver fraude à execução é insolvência do devedor, o que significa que o seu ativo deve ser menor que o seu passivo, sendo insuficiente para garantir a execução.
Já o terceiro pressuposto, seria a existência de má-fé por parte do terceiro que adquiriu o bem alienado. Há situações, entretanto em que a má-fé é presumida (quando há averbação da pendência do processo nos registros públicos do bem). Há, ainda, situações em que o terceiro deverá comprovar sua boa-fé, quando não há registros públicos referentes ao bem alienado, cabendo ao comprador demonstrar que tomou as cautelas mínimas quando o adquiriu. E, por fim, há a situação em que se presume a boa-fé do terceiro, que ocorre quando o credor tinha o dever de averbar a pendência do processo nos registros públicos e não o fez.
Outra situação explicada por Abelha é a hipótese trazida pelo inciso IV do art. 792 do CPC, conforme transcrito acima, admitindo ser a possibilidade mais complexa, pois admite a possibilidade de ser reconhecida a fraude à execução em um momento em que, apesar de existir a ação condenatória em curso, não seria possível o credor realizar nenhum tipo de registro sobre o bem a fim de publicizar a existência da demanda.
Em tais casos, segundo o mesmo autor,
“(...)deve o juízo sopesar as circunstâncias da causa, analisando em que condições o terceiro adquiriu o bem, subtraindo do patrimônio do réu/devedor, ou seja, se tomou todas as cautelas e medidas normais, se foi diligente, se buscou informações acerca do alienante, se foi assistido por um corretor etc. Só depois da análise desse contexto é que deve reconhecer a fraude, declarando ineficaz a alienação em relação ao credor ou rejeitando o incidente e mantendo o bem sob titularidade do terceiro.”
Em relação aos processos trabalhista, percebe-se que, salvo em casos de grandes empresas que possuem imóveis ou veículos próprios, a penhora para garantia da execução ocorre sobre bens de pequena monta, como mobiliário e equipamentos da atividade empresária, que não possuem qualquer tipo de registro público.
Em muitos casos isto ocorre, como já explicado no tópico anterior, por conta de artifícios largamente utilizados pelas empresas para ocultar seu patrimônio a fim de frustrar as execuções que correm contra a mesma na Justiça do Trabalho. Deste modo, é bastante comum que uma empresa que aparenta possui imóvel próprio e movimentação bancária constante na verdade nada possua registrado em seu nome, quedando-se infrutíferas as pesquisas realizadas pelos sistemas bacenjud, renajud e infojud, restando como alternativa para a execução somente a penhora dos bens que equipam o estabelecimento comercial. Tais bens, por sua vez, acabam por serem leiloados por valores insuficientes para garantir a condenação imposta ao executado.
Como leciona Saraiva (2011), vários são os artifícios utilizados pelos executados para impedir a efetividade das execuções trabalhistas, sendo os mais comuns o desvio dos bens da empresa para o patrimônio dos sócios e a utilização de sócios “laranjas”. Especificamente nestes dois casos, o patrimônio utilizado durante a atividade empresária e que poderia ser penhorado para a efetivação da execução (como imóveis, contas bancárias, veículos, ou equipamentos especializados), na verdade nunca fez parte do patrimônio oficial da executada, visto pertencerem ou aos sócios da empresa, ou a um terceiro, um sócio de fato que se utilizou de um “testa de ferro” para registrar a empresa que, na verdade, deveria lhe pertencer.
Deste modo, tanto o instituto da fraude à execução como o da fraude contra credores não são capazes de alcançar os fatos ocorridos neste tipo de execução frustrada, pois para serem caracterizados deverá ocorrer, necessariamente, a transferência do patrimônio do devedor para um terceiro. Uma vez que o devedor nunca possuiu, oficialmente, tal patrimônio, e nunca houve a real transferência dos bens, não é possível enquadrar tais características em nenhum dos dois institutos citados.
Como consequência, torna-se extremamente fácil aos empresários cujas empresas estão sendo executadas em processos trabalhistas encerrarem as atividades de tais empresas, e transferirem seus empreendimentos para novas empresas, se utilizando dos mesmos bens móveis, imóveis e insumos, que nunca pertenceram formalmente à empresa anterior, nem irão pertencer formalmente à nova empresa.
Tais características sofrem uma grande influência do curto prazo da prescrição intercorrente instituído pela Reforma Trabalhista, como será abordado no próximo tópico, que tratará da teoria que, possivelmente, poderia amenizar os efeitos da ocultação de patrimônio característicos do processo de execução trabalhista.
3.3 Desconsideração da personalidade jurídica do executado
Segundo Coelho (2012), “a pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial em que se atribui personalidade própria ao patrimônio segregado”, sendo sujeito não humano de direitos personificados, e tendo aptidão para ser titular tanto de direitos como de obrigações.
Como consequência desta definição, Coelho lembra que as pessoas jurídicas não podem ser confundidas com as pessoas que a integram, pois a pessoa jurídica e cada um de seus membros são sujeitos distintos e autônomos. Este é o princípio da autonomia, e, em razão deste princípio, a própria pessoa jurídica é parte em todos os negócios jurídicos que lhe dizem respeito, até mesmo processos judiciais.
Tal autonomia da pessoa jurídica, todavia, não deve servir para a prática de ilícitos, fraudes ou abuso de direito, como bem ensina Cassar (2008), que completa afirmando que o véu societário da personalidade jurídica não pode afastar a responsabilidade daquele sócio que a utilizou indevidamente e a desviou da sua finalidade.
Por esta razão, ainda conforme Cassar, a pessoa jurídica não poderá mais servir como meio de proteção da separação patrimonial entre esta e os seus sócios nos casos em que a personalidade jurídica foi utilizada como meio para se obter vantagens indevidas em detrimento de terceiros e não possuir patrimônio que baste para responder pelos prejuízos causados.
Sob tal ótica, o Código Civil trouxe, em seu art. 50, a possibilidade de a personalidade jurídica de uma empresa ser desconsiderada em certos casos. Esta é a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard of legal entity. Segundo o citado artigo:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Já o CPC regula o procedimento a ser tomado no caso de pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Em um capítulo específico, assim disciplina o CPC:
“Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.
§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.
Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.”
A aplicação de tal teoria, entretanto, não suprime a personalidade jurídica, mas torna a autonomia patrimonial da mesma temporariamente ineficaz, buscando nos sócios a possibilidade da solvência das dívidas cujo titular é a empresa, e autorizando que as suas obrigações recaiam sobre os próprios sócios. Como visto acima, porém, o Código Civil determina que isto somente ocorrerá nos casos em que for comprovado a fraude à lei ou o abuso do direito.
Esta teoria também é aplicada no direito do consumidor. O art 28 do Código de Defesa do Consumidor admite a desconsideração da personalidade jurídica quando houver, em detrimento do consumidor, abuso ou excesso de poder, infração da lei, ato ilícito, violação do contrato social, falência, estado de insolvência, e encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. Por fim, também se admite a desconsideração quando a personalidade da pessoa jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.
Percebe-se, portanto, que a legislação consumerista é bem mais ampla, admitindo a desconsideração até mesmo quando não há fraude, bastando, por exemplo, a insolvência da empresa. Isto se dá, principalmente, por conta do caráter protecionista que este ramo do direito dispensa à parte hipossuficiente da relação de consumo, ou seja, ao consumidor.
Já na seara trabalhista, esta teoria também tem sido aplicada de maneira mais ampla. Apesar de a CLT se omitir sobre o assunto, esta mesma lei determina, em seu art. 8, que o direito comum será fonte subsidiária do Direito de Trabalho, razão pela qual é aceita a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica nos mesmo moldes do permitido pelo Código de Defesa do Consumidor.
Como lembra Cassar, o direito consumerista tem feições protecionista semelhantes às encontradas no direito do trabalho, visto o trabalhador ser parte flagrantemente hipossuficiente em relação ao empregador. Ademais, a aplicação do disposto no art. 28 CDC não é incompatível com os princípios do direito trabalhista, o que autoriza a sua utilização, diante da omissão da CLT. Como último argumento, cabe aqui trazer o ensinamento de Barros (2010), que defende que o não pagamento dos créditos trabalhistas devidos ao empregado, e já reconhecido em sentença, constitui infração à lei, o que se adequa ao caput do art. 28 do CDC, que deve ser aplicado por analogia, o que admitiria, portanto, a desconsideração.
Segundo Saraiva (2011) este entendimento é comumente aplicado pelo TST, que tem aceitado a desconsideração da personalidade jurídica em todos os casos em que se verifique que o patrimônio da empresa é insuficiente para honrar suas dívidas trabalhistas, independentemente de comprovação de alguma fraude, desvio de finalidade, simulação ou confusão patrimonial.
A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica suspende o processo até a resolução do incidente, quando, em caso de acolhimento do pedido, os bens dos sócios da empresa responderão subsidiariamente pela execução dirigida à empresa.
Pode-se perceber, deste modo, que o direito processual trabalhista poderia ter na teoria da desconsideração da personalidade jurídica uma poderosa aliada na árdua tarefa de efetivamente disponibilizar ao exequente os valores advindos da relação de trabalho que já foram reconhecidos no processo de conhecimento.
Poder-se-ia, até mesmo, utilizar-se da desconsideração inversa da personalidade jurídica, também admitida pelo CPC, e que teria o condão de alcançar o patrimônio de empresas diversas à executada, cujos bens se confundam com o sócio executado.
Como já dito anteriormente, porém, a execução é terreno fértil para práticas contrárias à boa-fé, no qual os executados mais criativos lançam constantemente as suas sementes de fraudes.
Nos últimos anos, com o avanço da utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os empresários mais inclinados à atos de má-fé perceberam que não poderiam mais se utilizar da autonomia do patrimônio da empresa em relação ao seu próprio para ocultarem os bens utilizados na atividade empresária, pois qualquer bem penhorável que possuísse poderia ser utilizado para o pagamento de dívidas trabalhistas.
No mesmo período, entretanto, passou a ser cada vez mais aceita a utilização da prescrição intercorrente no processo trabalhista. Mesmo sem estar legalmente prevista antes da Reforma Trabalhista, este tipo de prescrição passou a ser amplamente aceita por varas do trabalho, que, sobrecarregadas de processos frustrados de execução, viram neste instituto a possibilidade de desafogar as secretarias, concentrando os esforços dos servidores em processos mais recentes e com melhores chances de uma execução bem-sucedida.
Diversas varas do trabalho passaram, portanto, a aplicar o artigo 40 da lei de execuções fiscais, de modo a suspender por um ano os processos de execução onde não foram encontrados bens do devedor, para, depois, utilizar o prazo de cinco anos para a aplicação da prescrição intercorrente.
Diante da convergência da utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e da aplicação da prescrição intercorrente, passou a ser praxe entre devedores trabalhistas costumeiros manter seus bens, tanto pessoais como profissionais, registrados em nome de terceiros, a fim de não serem alcançados pelas execuções da Justiça do Trabalho, nem mesmo no caso de a personalidade jurídica de suas empresas serem desconsideradas.
Do mesmo modo, caso se tornasse inviável a continuidade da atividade empresária pela empresa executada, bastaria abrir novo CNPJ, em nome de um terceiro, ou até mesmo de um empregado, para continuar suas atividades sem a possibilidade de ter seus bens alcançados pela execução. E mesmo que não fosse possível a constituição de nova empresa, o empresário poderia passar cinco anos sem registrar qualquer bem em seu nome, com a certeza de que ao fim deste período os seus processos trabalhistas seriam extintos, abrindo caminho para um novo empreendimento que de nenhum modo seria afetado pelas dívidas trabalhistas da sua empresa anterior.
Como já discutido anteriormente, a lei que instituiu a Reforma Trabalhista determinou que a prescrição intercorrente deverá ser reconhecida no prazo de dois anos após o exequente deixar de cumprir alguma determinação judicial no curso da execução.
Percebe-se, por conseguinte, que artifícios como a confusão do patrimônio da empresa e dos sócios; a ocultação de patrimônio; e a utilização de “laranjas” parecem ter se tornado ainda mais atrativos às empresas após a Reforma Trabalhista e, mais especificamente, após a inclusão do art. 11-A à CLT, que trata da prescrição intercorrente.
Isto porque, com a determinação do reconhecimento da prescrição intercorrente após somente dois anos do último ato do exequente, o empresário somente poderá se abster de registrar qualquer bem em seu nome apenas pelo prazo de pouco mais de dois anos, levando em consideração a tramitação do processo de conhecimento, a execução frustrada e o período necessário para o reconhecimento da prescrição. Agindo assim, qualquer execução trabalhista perpetrada contra sua empresa ou contra si próprio estará fadada ao fracasso, independentemente de qualquer esforço do exequente ou do magistrado.
Percebe-se, desta forma, que a mudança trazida pela introdução do artigo 11-A à CLT não proporcionou, de modo algum, melhores condições à execução trabalhista. Na verdade, a sua introdução na legislação trabalhista parece ter sido feita sem o devido conhecimento das características e especificidades deste ramo autônomo do direito e sem a necessária discussão a fim de melhor adaptar o dispositivo às necessidades do judiciário e dos trabalhadores. Não houve, portanto, a equalização de interesses ou o nivelamento de direitos. Mas houve sim, pelo que aqui se expôs, a ampliação de direitos e garantias de somente uma das partes da relação trabalhista, não somente facilitando a esquiva de seus deveres, mas até mais incentivando a conservação de atos fraudulentos e que claramente atentam contra à dignidade tanto da justiça como do trabalhador.